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Wicca Trans: Dianismo Sem Bucetismo

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Por Felícia Guerreiro, revisado por Ícaro Aron Soares

O que te vem à mente quando se fala sagrado feminino? Essas minas que falam disso não são aquelas feministas chatas que acham que mulher se resume a buceta e que homem trans também tem que aceitar a sacralidade da menstruação e gravidez?

E se falarem de Wicca ou Dianismo? O que te vem à mente? Provavelmente a mesma coisa, só adicionando adolescentes perdidas na internet e idosas transfóbicas com 90 anos de idade.

E eu não vou negar. É verdade que existem círculos de magia e espiritualidade “feministas” onde a transfobia e o bucetismo reinam. E mesmo que esses grupos sejam uma minoria, eles causaram muito barulho durante muitos anos no meio político e espiritual. Diante desse histórico, muita gente olha pra mim, uma moça trans/pessoa não binária que faz parte de um grupo Wicca Diânica bastante influente e antigo e pergunta, “Como????”

Se você não me conhece, oi! Meu nome é Felicia, eu sou trans, sou uma bruxa Wiccana, e sou dedicada da Tradição Diânica Nemorensis.

Pra quem não conhece, A Wicca é uma religião que foi fundada na Inglaterra na década de 50 por um homem chamado Gerald Gardner, onde se acredita que uma Deusa e um Deus primordiais foram as responsáveis pela criação de todo o Universo. E onde as bruxas – A palavra Wicca tem a mesma origem etimológica de Witch, então suas praticantes são chamadas de bruxas– se conectam com esses poderes divinos através da prática da feitiçaria e da adoração de antigos deuses pagãos.

A religião se popularizou bastante em todo o hemisfério norte, e muitas variações começaram a surgir ao redor do mundo. Uma das variações mais conhecidas se chama “Wicca Diânica”, fundada ao mesmo tempo por duas bruxas em partes diferentes dos Estados Unidos: Zsuzsanna Budapest e Morgan Mcfarland. Na Wicca Diânica, a Deusa toma o papel central da nossa adoração, enquanto o Deus tem uma presença mais secundária.

Essas religiões são parte de um movimento maior chamado “neopaganismo” que envolve vários tipos de fé e adoração de antigos deuses euro-asiáticos e nativo-americanos que perderam seus cultos graças à expansão do cristianismo e do islamismo.

Considerando que nos dias de hoje nós estamos o tempo todo cercadas por obras de cultura popular que usam esses deuses antigos como inspiração ou como personagens centrais das suas tramas, é bem fácil que você acabe se identificando com alguma deidade antiga ou outra.

Quando você sente a sua conexão com uma Deusa ou outra, nós costumamos dizer que isso faz parte do Chamado da Grande Deusa pra que você venha a conhecer seus segredos. E a primeira Deusa que me chamou pra conhecer esses segredos foi Hel.

Hel é uma entidade da mitologia nórdica que representa a morte. Metade do seu corpo é de uma bela e encantadora de uma mulher, mas a outra metade é de um corpo podre e fétido ou simplesmente de um esqueleto. Ela é filha de Loki – o Deus do fogo, da mentira e das injúrias –, que a rejeitou e abandonou no meio do reino dos mortos onde ela anfitriã para todos os mortos que não morreram com dignidade o suficiente para ir até Asgard.

O desenho acima é de um anime de 2003 chamado Matantei Loki Ragnarok, onde Loki foi expulso para o mundo mortal no corpo de uma criança, e num dos arcos tenta se reconciliar com sua filha, Hel, que no desenho dorme no seu colo.

Por todos os outros deuses ela era vista como um monstro. Seu pai simplesmente a rejeitou e a jogou no mundo sem nenhum apreço ou carinho. Sua aparência é grotesca, mas ela ainda tem algum aspecto de beleza. E ela dá as boas vindas ao seu reino para todas as almas que foram rejeitadas por Odin e seu bando de zé roelas. Como não me identificar com ela quando meu pai e todos meus colegas de escola faziam o mesmo comigo? Além do que eu adoro personagens góticas.

Depois que eu saí da escola, comecei a ter contato com várias pessoas que praticavam bruxaria. O álbum do Claudiney Prieto “Cânticos Sagrados da Religião Antiga” já era um dos meus favoritos. E eu resolvi pedir emprestado o livro de uma amiga minha chamado Rituais Celtas, do druida Andy Baggott.

Quando eu li esse livro pela primeira vez eu senti toda a energia de uma grande revelação correndo pelo meu corpo quando ele escreveu que, na realidade, pessoas LGBT tem uma facilidade muito maior de trabalhar magia e são incrivelmente abençoados por conhecerem a polaridade da Deusa e o Deus dentro de um corpo e alma só.

Outro livro, Os Mistérios Wiccanos, basicamente dizia a mesma coisa e através deles eu sabia, dentro da minha alma, que os Deuses estavam me chamando pra algo maior. Uma compreensão mais profunda da minha realidade.

Não é de se surpreender que pouco tempo depois eu tenha me assumido trans. Isso aconteceu mais ou menos na época que eu estava lendo Changeling: O Sonhar pela primeira vez. E conhecer a realidade das fadas, mesmo que um pouco distorcida pelo bem do jogo, me fez me sentir ainda mais próxima dessas entidades antigas de uma Europa pagã que deixou de existir há muito tempo.

Ao mesmo tempo, eu comecei a visitar terreiros de umbanda, e vários dos orixás e antigos espíritos africanos e brasileiros pareciam querer entrar em contato comigo, tanto quanto os europeus (essa conexão era um pouco distante por causa das imagens cristãs que tem na umbanda). Mas o que esses espíritos tinham em comum?

Elas eram todas mulheres.

De uma maneira intuitiva que eu não sei como explicar de forma lógica ou acadêmica, o mundo espiritual estava se revelando pra mim com uma forma feminina. Deusas, fadas e pombas-giras (Ora iê iê mamãe Oxum) moldaram todo meu conhecimento e experiência do mundo espiritual naquela época. E sempre que eu via alguém falando da sacralidade das bucetas e da menstruação, isso jamais vinha das próprias entidades. Só vinha, na verdade, de pessoas de carne e osso como eu e você.

Então por mais que ver o mundo como feminino estivesse funcionando na minha experiência interna e pessoal, era difícil pra caramba compartilhar isso com as pessoas. Eu participei de todas essas conversas genitalistas que falam da “força dos nossos ovários”. E mesmo que círculos de espiritualidade estejam superando o genitalismo aos poucos, todos os trabalhos formativos da espiritualidade feminista alternativa usam o artifício das “partes do corpo” e do ciclo menstrual pra “santificar” a experiência feminina, como se essas coisas todas fossem boas e preciosas por si só, independente de contexto. E não sei vocês, mas eu JAMAIS teria a coragem, ou melhor, a AUDÁCIA de olhar pra um homem trans querendo fazer procedimentos masculinizantes e dizer pra ele “mas as suas cólicas são um presente divino!” Ai gente… Presente divino é o teu cu. Se essas porra causam sofrimento pra ele, deixa ele ir atrás do que ELE acha importante, não do que VOCÊ acha importante. Cacete.

O que diferencia a experiência espiritual e religiosa da realidade científica é que, por mais que os cristãos queiram negar esse fato, não existem verdades objetivas e universais.

Várias pessoas que praticam feitiçaria e ocultismo, desde satanistas e maçons até druidas e galera do santo daime, tendem a acreditar que existe uma realidade universal para a experiência espiritual. O que essas pessoas não notam é que basicamente todos os conceitos que essas tradições tem e chamam de universais são baseadas em preceitos e preconceitos culturais.

No ocultismo ocidental e na espiritualidade chinesa, você provavelmente irá se deparar com a dualidade do claro e do escuro, Yang e Yin, e dependendo do quão maniqueísta for a tradição… Bem e Mau.

E dentro dessas classificações, as pessoas tendem a simplesmente colocar as coisas que elas gostam e se identificam no claro, e as coisas que eles não gostam ou não se identificam no escuro. Dessa forma você sempre vai acabar encontrando trabalhos ocultos e espirituais que classificam a masculinidade na parte clara dessa dualidade (O Sol, o Yang, etc…) e a feminilidade na parte escura (Lua, Yin, etc…) Mas o que inerentemente une a masculinidade à luz e a feminilidade às trevas? A única resposta lógica é a misoginia. Se você olhar pra Alemanha ou pro Japão, você verá que as figuras mitológicas associadas com o Sol são mulheres, e com a Lua são homens. Será que você teria realmente a coragem de olhar pra essas tradições espirituais tão ricas e antigas e simplesmente dizer que elas estão erradas?

Como a maior parte das pessoas trans provavelmente já observou, tudo aquilo que qualquer sociedade chama de feminino ou de masculino é extremamente arbitrário. E mesmo assim, cada uma de nós tem algum tipo de noção interna sem definição e provavelmente inexplicável do que significa ser homem ou mulher. E eu pessoalmente acredito que isso deve ter alguma conexão com o divino.

No livro “The Spiral Dance (A Dança Cósmica das Feitceiras)”, Starhawk descreve uma versão do mito da criação que nós também usamos na Wicca e que eu achei muito mais poético e ressonante com a minha alma do que versões anteriores dessa mesma história.

É dito que todas as coisas no universo surgiram da Deusa. Estrelas, planetas, o próprio tecido da Realidade. Você pode encontrar em todo aspecto da realidade uma parte da Deusa pois o “útero” dela é a fonte de todas as coisas e a sua própria essência é tudo que existe.

Para criar todas as criaturas vivas do universo, entretanto, Ela deu origem a um ser igual a ela em poder e essência. O Deus.

Copulando com esse Deus que Ela mesma deu a luz, A Deusa conseguiu gerar todas as plantas, fungos, animais, bactérias e qualquer outro tipo de ser vivo que a gente possa imaginar e talvez não conheçamos.

Na Tradição Feri – a tradição de bruxaria neopagã fundada por Starhawk – A Deusa e o Deus são vistos como seres de igual importância, e elas acreditam que todas as coisas nessa terra tem dentro de si tanto a energia da Deusa quanto do Deus.

Eu, entretanto, acabo indo por um caminho diferente. Durante praticamente todo meu caminho espiritual eu acabei compreendendo a criação da Deusa de maneira feminina, como disse alguns parágrafos atrás. Então acabei tirando umas conclusões bastante particulares da mesma história.

Se todo o universo vem da Deusa e tem algo da Deusa dentro de si, a base de toda a existência e da realidade é feminina. Entretanto, as partes mais belas e diversas da vida vem do experimento, das várias combinações de elementos novos e antigos que se misturam de maneiras imprevisíveis. Para ela criar algo que fosse belo além da sua própria percepção, a Deusa criou alguém igual a ela, mas com uma identidade e um papel diferente que ajudaria ela a trazer diversidade à sua criação.

Dessa forma, eu gosto de compreender a tal “energia feminina” e o anseio de se conectar com a Deusa como uma conexão com a energia criativa original. Como uma forma de se conectar com o Todo. E gosto ver a Deusa em si como a grande primeira artista, que usa desde um útero até pinceis e palavras para criar algo pelo bem de criar. E eu acredito que todos os seres humanos nessa Terra podem se conectar com a Deusa, pois todas nós temos o impulso de criar alguma coisa que vá além da nossa própria existência.

Em contrapartida, gosto de pensar que também existe uma “energia masculina” e caminhos de conexão com o Deus. Nessa minha interpretação pessoal, se a Deusa é uma artista, o Deus é a arte. E é através dele que nós conseguimos compreensão e contexto para tudo aquilo que a sua Mãe e Esposa criou.

Sim, essas são interpretações são extremamente voltadas para uma visão que centraliza a experiência “feminina”, mesmo que não explique o que essa feminilidade é, e deixa o que quer que seja masculino como um papel passivo diante dessa Deusa Mulher. Nem todo mundo vai concordar com essa visão de mundo, e pode soar problemático pra muita gente, mas pra mim funciona.

Lembra como eu falei que o mundo se revelou pra mim na forma de deusas e entidades mulheres? Como o universo começou a fazer sentido pra mim através de uma intuição feminina que eu não sabia e ainda não sei explicar? Essa história de criação, pra mim, parece uma ilustração muito útil de como o universo e o espírito se revelaram pra mim, mesmo que ele não se revele do mesmo jeito pra outras pessoas.

Não existem verdades universais. Cada mulher vai ter sua própria noção do que significa sagrado feminino. E cada pessoa, na realidade, vai ter sua própria noção do divino, qualquer que seja sua natureza.

Você ser trans não precisa te excluir das discussões sobre o sagrado feminino. E mesmo quando elas começam a falar de menstruação e gravidez, você não precisa se sentir excluída por ter um pênis. Se for um grupo eclético e inclusivo de verdade, as gurias cis vão ver as suas injeções mensais de forma tão sagrada quanto os ovários delas. Eu pelo menos transformei minhas hormonizações em rituais de lua cheia e tô bem plena com isso.

FONTE: https://felicia-guerreiro.medium.com/wicca-trans-dianismo-sem-bucetismo-304e5c4e6576

Icaro Aron Soares, é colaborador fixo do projeto Morte Súbita, bem como do site PanDaemonAeon e da Conhecimentos Proibidos. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares e @conhecimentosproibidos.


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