Leia em 53 minutos.
Este texto foi lambido por 323 almas esse mês
Por Devdutt Pattanaik, The Man Who Was a Woman and Other Queer Tales from Hindu Lore, Cap. 3, tradução por Ícaro Aron Soares.
No quinto dia das celebrações anuais de Brahmotsavam em Tirumala, no sul do estado de Andhra Pradesh (o templo mais rico da Índia), a divindade presidente, Vishnu (conhecido localmente como Venkateshwara Balaji), é levado em uma grande procissão enfeitada como a feiticeira celestial Mohini. [NOTA 1] Em outra cidade ao norte da Índia, Nathdvara, no estado desértico do Rajastão, no templo de Shrinathji, a deidade que preside, Krishna, está envolta em roupas femininas (sakhi-vesha) em uma cerimônia secreta, longe de olhos curiosos. [NOTA 2] Para contextualizar a transgenereidade ritual das duas divindades, é essencial entender o papel que Vishnu e Krishna desempenham no panteão hindu. Isso não pode ser feito sem esclarecer o conceito de deus, deusa e divindade no hinduísmo.
Vishnu não é um deus comum, ou Deva, como o deus da chuva Indra ou o deus do fogo Agni que encontramos nos capítulos anteriores. Ele é a personificação da divindade, Bhagavan. Para alguns, Bhagavan não tem forma e para outros, a divindade tem forma – tanto masculina quanto feminina. A forma masculina incorpora o aspecto transcendental sobrenatural do divino (a causa), enquanto a forma feminina incorpora o aspecto terrestre tangível do divino (a manifestação). O aspecto masculino da divindade é instrumental; ele cria (Brahma), sustenta (Vishnu) e destrói (Shiva) o mundo, colocando assim a roda da existência (samsara) em movimento. O aspecto feminino da divindade (Devi) é a expressão, a própria roda da existência. Ela também é a fonte de conhecimento (Saraswati), generosidade (Laxmi) e poder (Kali) que permite aos deuses criar, sustentar e destruir. [NOTA 3]
A maioria dos hindus adora o divino na forma de Vishnu (a tradição Vaishnava), Shiva (a tradição Shaiva) ou Devi (a tradição Shakta). Vishnu, como sustentador, afirma a vida mundana instituindo e mantendo a ordem social (dharma) à maneira de um rei cósmico. Shiva, como destruidor, rejeita todas as coisas mundanas e se manifesta como o asceta cósmico. Devi se manifesta em uma forma selvagem e independente (Kali ou Durga), ou como uma consorte domesticada e submissa (Laxmi ou Parvati), ou como uma shakti, uma emanação de poder divino corporificada na forma feminina. Brahma, o criador do mundo de prazer e dor, é geralmente ignorado. [NOTA 4]
Vishnu sustenta o universo com a ajuda de sua consorte Laxmi, a deusa da riqueza e da fortuna, uma manifestação de Devi. Vishnu é visualizado pelos artistas como um deus de cor azul (azul sendo a cor do céu, portanto onipresença), que carrega em suas quatro mãos (estendendo-se pelos quatro cantos do universo) uma concha (sua trombeta que avisa a todos os transgressores para cumprir a lei), um disco (que garante a manutenção do ciclo da vida), uma maça (seu cetro com o qual ele atinge os infratores da lei) e um lótus (que acena a todas as criaturas para desfrutar do néctar da vida). A deusa Laxmi é descrita como uma bela dama vestida com um sari vermelho (o vermelho é a cor da fertilidade), enfeitada com pedras preciosas, segurando um pote (uma cornucópia) que transborda ouro e grãos, sentada em uma flor de lótus em um lago, ladeada por elefantes brancos (símbolos de fertilidade, riqueza e poder real) que a consagram com água (símbolo do elixir da vida). Vishnu, semelhante ao céu azul enquanto cuida do bem-estar de sua consorte, a terra vermelha. Ela é o meio pelo qual ele expressa sua divindade.
De tempos em tempos, sempre que a estabilidade universal é ameaçada por forças perturbadoras, Vishnu desce de sua morada celestial, Vaikuntha, para consertar as coisas. Ele descende em muitas formas: às vezes animal, às vezes humano, principalmente masculino, ocasionalmente feminino. Toda vez ele restaura a ordem e retorna para Vaikuntha.
MOHINI ENGANA BHASMA:
Bhasma, o Asura, certa vez agradou Shiva com sua devoção e obteve o poder de reduzir a cinzas qualquer um em cuja cabeça ele colocasse a mão. O Asura decidiu testar seus poderes no próprio Shiva. Shiva fugiu aterrorizado e procurou a ajuda de Vishnu, que se transformou em Mohini e distraiu Bhasma. Dominado pela luxúria, Bhasma implorou a Mohini que se casasse com ele. “Só se você dançar como eu”, disse Mohini. Bhasma concordou. Durante o curso de sua dança, Mohini tocou sua cabeça. O iludido Bhasma, cego pelo desejo, também fez isso e foi reduzido a cinzas, para o deleite de Shiva.
Apesar de se transformar em mulher, Vishnu mantém sua identidade masculina. Sua forma feminina é mais um disfarce, tornando suas ações um subterfúgio de transgenereidade. Como mulher, ele flerta, ele encanta, ele oprime. A transformação sexual aqui deve ser contrastada com as do Capítulo 2, onde os homens transformados perdem a memória de sua existência anterior.
A história anterior lança luz sobre a diferença entre Vishnu e Shiva. Como um deus que deve administrar os assuntos do mundo, Vishnu usa não apenas a força, mas também a astúcia para conseguir o que quer. O Shiva do outro mundo, desacostumado com os caminhos do mundo, permanece crédulo (em hindi, bhola). Assim, enquanto o astuto e sempre sorridente Vishnu é chamado de Mayin (o enganador), o sereno e simplório Shiva é carinhosamente chamado de Bholenath (o inocente). A história de como Mohini enganou Bhasma chegou ao sudeste da Ásia e forma o prelúdio do Ramakian, o Ramayana tailandês. [NOTA 5] No Ramakian aprendemos como o Vishnu de quatro braços na forma de Mohini encantou e matou um demônio chamado Nontok, que fez mau uso do poder divino concedido a ele por Shiva. O demônio o acusou de espancá-lo em uma luta injusta. “Você me seduziu como mulher, depois me atacou com quatro mãos.” Então Vishnu decretou que em sua próxima vida Nontok renasceria como Ravana, o rei Rakshasa de dez braços, enquanto ele nasceria como um homem mortal de dois braços chamado Rama. “Vamos lutar então e ainda vou derrotá-lo.” Assim, o épico torna-se uma série predeterminada de eventos moldados pelas leis do carma.
Na tradição hindu, as forças disruptivas são muitas vezes personificadas como Asuras e Rakshasas. Não há palavra em inglês e português que possa descrever perfeitamente esses arautos da desordem. A palavra “demônios” é mais uma tradução conveniente do que correta, pois demônios são “seres malignos” em uma construção cristã, enquanto o “mal” como conceito não tem lugar no mundo hindu. [NOTA 6]
O mal significa a ausência de divindade, mas para um hindu tudo é uma manifestação do divino. No Bhagavad Gita, quando Krishna mostra sua forma cósmica para Arjuna, ele diz. “Eu contenho tudo o que é, foi e será. Eu sou a fonte e o destino de tudo.” Todos os personagens de uma narrativa hindu – até mesmo o demônio e o vilão – contêm a centelha da divindade. Um Satã não é obrigado a explicar as ações indesejáveis, pois todos os eventos são aceitos como reações a eventos passados. Quando os demônios derrotam os deuses, é porque os deuses foram enfraquecidos por uma maldição ou porque os demônios foram fortalecidos por uma dádiva.
Quem são então os demônios do hinduísmo – os Asuras que são enganados pelos deuses, os Rakshasas que são mortos pelos heróis? Eles são, como os deuses ou Devas, os filhos do criador, Brahma. Os Puranas afirmam que no alvorecer do cosmos, o mago primordial Kashyapa, uma manifestação do autocriado Brahma, gerou em suas muitas esposas várias criaturas que povoam o cosmos. Assim ele se tornou Prajapati, senhor da progênie. Uma de suas esposas, conhecida como Aditi, deu à luz os Adityas. Os Adityas residem nos reinos celestiais conhecidos como Swarga (mal traduzido como céu) e são os guardiões da luz, portanto conhecidos como Devas (div = luz, em sânscrito). Esta palavra Devas é comumente traduzida erroneamente como “deuses”.
Outra esposa, Diti, deu à luz os Daityas. Os Daityas residem nas regiões inferiores conhecidas como Patala (traduzido incorretamente como inferno), são desprovidos de seiva e, portanto, conhecidos como Asuras (de acordo com o Mahabharata, a = não; sura = seiva, elixir, ambrosia). Esses Asuras tornam-se “demônios” em traduções populares para o inglês e português do folclore hindu – como a série de quadrinhos Amar Chitra Katha – com base no fato de que eles são inimigos eternos dos deuses, portanto, como o discurso ocidental nos informa, maus.
Reduzir a batalha dos Devas e dos Asuras como a eterna batalha do bem e do mal é reduzir o conhecimento hindu a um conveniente dualismo ocidental. O antagonismo escapa a tais explicações simplistas, já que ambas as partes são filhos de Brahma, e todos eles são divinos. Muitos Asuras e Rakshasas são reverenciados como devotos de Bhagavan (por exemplo, o príncipe Asura, Prahalad, é um devoto de Vishnu enquanto o rei Rakshasa, Ravana, é um devoto de Shiva) e são até considerados dignos de adoração (por exemplo, o rei Asura, Bali, é adorado no estado de Kerala porque ele se eleva de seu reino subterrâneo junto com a colheita).
Tanto os Devas quanto os Asuras desempenham papéis cruciais na produção da deusa Laxmi do oceano de leite, como nos informa a seguinte história dos Puranas. As muitas recontagens da história podem ser encontradas no livro Goddess Lakshmi: Origin and Development, de Upendra Nath Dhal.
MOHINI ENGANA OS ASURAS:
Grandes tesouros jaziam dissolvidos no oceano de leite. Os Adityas queriam produzi-los. Eles procuraram a ajuda de Vishnu, que os aconselhou a buscar a cooperação de seus meio-irmãos, os Daityas, uma vez que tal grande empreendimento só poderia ser realizado com o apoio deles. Juntos, eles montaram uma batedeira gigante, usando Meru, o rei das montanhas, como o fuso e Vasuki, rei das serpentes, como a corda de bater. Garuda, rei dos pássaros e montaria de Vishnu carregou a batedeira para o oceano. Teria afundado, mas no momento crucial, Akupara, rei das tartarugas e uma encarnação de Vishnu, veio em socorro. Ele segurou a batedeira em suas costas poderosas. Os Daityas então pegaram a ponta da cabeça do rei-serpente enquanto os Adityas pegaram a ponta do pescoço do rei-serpente e começaram a bater. A agitação durou eras. Finalmente, o oceano leitoso coagulou e revelou seus segredos. Surgiram muitas coisas maravilhosas: uma árvore que realiza desejos chamada Kalpataru; uma joia que realiza sonhos chamada Chintamani; uma vaca cujo úbere estava sempre cheio de leite chamada Kamadhenu; um arco que nunca errava o alvo chamado Saranga; um cavalo de sete cabeças que sempre cavalgava para a vitória chamado Ucchaishrava; um elefante imparável de pele branca real e seis presas chamado Airavata; e, finalmente, Laxmi, a deusa da riqueza e da fortuna, que escolheu Vishnu como marido. Finalmente surgiu um pote contendo o elixir da imortalidade – o Amrita. Os Daityas o agarraram e fugiram. Os Adityas apelaram para Vishnu, que assumiu a forma da feiticeira celestial Mohini e se aproximou dos Daityas, excitando-os com seu andar sensual. “Posso servir o líquido divino”, ela pediu graciosamente. Os Asuras, enfeitiçados por sua beleza, não puderam recusar. Deram-lhe o pote. Eles ficaram tão obcecados por seu sorriso sensual e sua figura voluptuosa que não perceberam que ela estava distribuindo o Amrita apenas entre os Adityas. O Daitya Rahu suspeitou das intenções desta donzela e sentou-se entre os Adityas como um deles. Quando ele estava prestes a tomar um gole do elixir, o sol e a lua o reconheceram e alertaram Mohini. Ela lançou um disco, cortou a garganta de Rahu e impediu que o líquido divino entrasse no corpo do Daitya. Os outros Daityas perceberam que Vishnu os havia enganado. Eles declararam guerra aos Adityas. Liderados por Vishnu, os Adityas levaram os Daityas aos reinos inferiores. Então, reivindicando todos os tesouros que emergiram do oceano de leite, os Adityas ascenderam ao reino celestial onde estabeleceram sua cidade, Amravati, a cidade dos imortais.
Ao consumir o elixir da imortalidade, os Adityas conquistam a morte. Cercados pelos tesouros do oceano, eles se tornam resplandecentes guardiões da luz e da fertilidade, daí Devas. Desprovidos da bebida divina, os Daityas se transformam em Asura e são forçados a buscar refúgio nas regiões inferiores. Mas os Asuras não são totalmente mortais. Seu preceptor, o sábio Shukra, possui o segredo de reviver os mortos (ver Capítulo 2). Assim, os Devas e Asuras estão empatados e os dois lutam constantemente pelo controle do cosmos.
A maioria das narrações começa com os Asuras – fortalecidos por benefícios obtidos por austeridades que agradam a Brahma – subjugando os Devas. Elas terminam com os Devas – defendidos por Vishnu, Shiva ou Devi – contra-atacando e reclamando sua cidade. Os Asuras estão no controle quando os Devas estão fracos: à noite, na metade minguante da lua, quando as marés baixam e na metade mais fria e escura do ano. As batalhas são constantes e os resultados impermanentes. As fortunas vacilantes garantem o fluxo e refluxo cíclico da energia cósmica que traz um dinamismo previsível no ciclo da vida.
Em nenhum momento os Devas esquecem que Mohini é Vishnu. A palavra Mohini, que significa ilusão personificada, vem da raiz moha – encantamento. Uma mente fraca e não iluminada, incorporada no Daitya, falha em descobrir a verdade de Vishnu e é seduzida por Mohini. Assim, outro atributo dos demônios hindus é sua incapacidade de reconhecer o divino. Isso, as escrituras implicam, resulta da ignorância, do egoísmo e de seu estado terreno. Sua morada subterrânea é ainda mais distante – quando comparada ao mundo dos humanos – dos reinos celestiais do conhecimento e da verdade.
Segundo a cosmologia hindu, o universo é uma estrutura vertical com o espírito em cima e a matéria embaixo. [NOTA 7] Quanto menos apegados estivermos ao prazer terrestre, mais semelhantes a Devas nos tornamos e ascendemos aos reinos celestiais; quanto mais apegados somos às coisas mundanas, mais semelhantes a Asura nos tornamos e afundamos nos reinos ctonianos inferiores. Olhando a narrativa como uma alegoria, existem Devas e Asuras dentro de nós e Mohinis ao nosso redor. Cabe a nós não sucumbir ao encanto de Mohini, reconhecer a verdade divina e obter um gole de Amrita. Só então possuiremos aquilo que nos liberta dos prazeres e dores transitórios da existência mundana.
Em um conto menos conhecido de Mohini do Ganesha Purana (900-1400), recontado na Puranic Encyclopaedia de Vettam Mani, aprendemos como até mesmo o sábio Virochana sucumbiu aos encantos de Mohini e perdeu sua coroa (sua cabeça, sua inteligência?).
MOHINI MATA VIROCHANA:
Virochana, rei dos Asuras, recebeu uma coroa mágica do deus-sol Surya. Enquanto a coroa repousasse em sua cabeça, ninguém poderia machucá-lo. Então Vishnu assumiu a forma de Mohini, encantou Virochana e roubou sua coroa. Sem a proteção da coroa, Virochana era vulnerável a todas as armas. Vishnu aproveitou isso e o matou.
Na próxima história, não são os demônios, mas os sábios que se encantam com Mohini. Esta história é essencialmente um conhecimento dos Shaiva, mas aqui Vishnu se junta a Shiva para ensinar uma lição aos pomposos sábios. Essa recontagem tira o toque homoerótico em que mulheres e homens são despertados pela beleza de Shiva. Nesta narrativa, os sábios e suas esposas são forçados a enfrentar suas fraquezas. Eles podem conhecer rituais mágicos que lhes dão grande poder externo, mas estes se revelam inúteis na ausência de força interior. Esta história vem do Skanda Purana e foi recontada em Shiva: The Erotic Ascetic, de Wendy Dongier O’Flaherty, e na história em quadrinhos de Amar Chitra Katha, Elephanta.
MOHINI ENCANTA OS SÁBIOS:
Um grupo de sábios realizava rituais na floresta e acreditava ser tão poderoso quanto os deuses. Para humilhá-los, Shiva e Vishnu entraram nesta floresta disfarçados de um belo mendigo chamado Bhikshatan e uma bela donzela chamada Mohini. Os sábios e suas esposas viram esse casal e ficaram cheios de desejo. Os homens correram atrás de Mohini enquanto as mulheres perseguiam Bhikshatan. Algum tempo depois, eles recuperaram o controle de seus sentidos e responsabilizaram Bhikshatan e Mohini pelo lapso momentâneo de sua razão. Usando seus poderes mágicos, eles tiraram do fogo uma serpente, um leão, um elefante e um duende. Shiva pegou a serpente e a enrolou no pescoço. Ele esfolou o leão e o elefante e envolveu suas peles em volta de seu corpo. Ele então pulou nas costas do duende e começou a dançar, exibindo seu esplendor divino. Os sábios assistiram fascinados e perceberam sua loucura.
Durante as festividades de Brahmotsavam, quando a imagem de Vishnu é enfeitada como Mohini, o devoto é presenteado com a forma feminina do senhor, a encarnação que encanta e ilude os gananciosos e famintos Asuras e os sábios egoístas. O devoto é exortado a olhar além das aparências que iludem (Mohini) para a realidade que liberta (Vishnu).
Mohini é a divindade da família de Gauda Saraswat Brahmins, que se referem a ela como “Shri Mahalasa Narayani”. [NOTA 8] Embora a divindade seja vista como feminina e seja adorada como uma manifestação da deusa-mãe, o devoto é constantemente lembrado de que a deusa é, em essência, uma forma de Vishnu. Assim, a fluidez de gênero prevalece na visão do divino, que confere ao santuário mistério e sacralidade. Leituras sociológicas sobre a adoração de Mahalasa-devi sugerem uma tentativa consciente de reconciliar escolas teístas hindus rivais – os Shaktas e os Vaishnavas.
Essa necessidade de sincretismo é comum no hinduísmo e é alcançada simbolicamente pela fusão das identidades de várias divindades por meio da união sexual. A seguinte história do Shiva Purana faz exatamente isso. Foi recontada em Shiva: The Erotic Ascetic, de Wendy Doniger O’Flaherty.
VISHNU EXCITA SHIVA:
Quando Vishnu se transformou em Mohini, a feiticeira celestial, Shiva ficou tão dominado pelo desejo que abandonou sua consorte Parvati e correu atrás de Mohini até que ele tivesse derramado sua semente. Dessa semente nasceu o poderoso deus-macaco Hanuman, que os deuses decretaram que derrotaria demônios e até a morte. Conforme predito, Hanuman ajudou Rama a resgatar sua esposa Sita das garras do rei Rakshasa Ravana.
Nos tempos medievais, havia grande rivalidade entre os adoradores das tradições de Shiva e Vishnu. Cada uma abordava a vida de maneira diferente: os Shaivas viam valor na tradição ascética enquanto os Vaishnavas defendiam a tradição do chefe de família. Diferenças filosóficas e ritualísticas às vezes levavam a confrontos violentos. Deuses como Hanuman ajudaram a preencher a lacuna. Hanuman nasceu de Shiva, mas Vishnu inspirou seu nascimento. O estilo de vida (celibato) e a personalidade de Hanuman (humildade e inocência surgindo da sabedoria) endossam a filosofia Shaiva; seu papel cósmico (lutar contra demônios, ajudar as pessoas) reflete as ideias Vaishnava. Assim se consegue a união de duas ordens rivais.
O derramamento da semente de um sábio ao ver uma ninfa ou Apsara é um tema recorrente na tradição hindu. As Apsaras são cortesãs celestiais que cantam, dançam e divertem os deuses. Sábios determinados a obter poder sobre os elementos e, portanto, sobre os Devas, controlam os cinco sentidos e praticam austeridades. Para frustrar sua ambição, os Devas recrutam a ajuda das Apsaras. Na maioria das vezes, os sábios sucumbem ao encanto de ninfas sensuais e derramam sêmen. Mas as ninfas falharam miseravelmente quando tentaram encantar Shiva. Quando seu patrono, o deus do amor Kama, ousou atirar seu dardo de amor no deus eremita, Shiva abriu seu terceiro olho, soltou um míssil de fogo e reduziu Kama a cinzas. Percebendo que Shiva não era um sábio comum, os Devas – que precisavam desesperadamente de um senhor da guerra nascido da semente de Shiva – invocaram a deusa-mãe. Ela assumiu a forma da princesa da montanha Parvati e conquistou o coração de Shiva por meio de austeridades. Embora os dois se unam, eles nunca conceberam um filho juntos. Metafisicamente, isso significa que espírito e matéria mantêm identidades distintas. Shiva e Parvati criam filhos de forma autônoma. Kartikeya nasceu da semente de Shiva, mas não foi nutrido no útero de Parvati (ver Capítulo 2) e Ganesha nasceu não da semente de Shiva, mas de esfregações da pele de Parvati (ver Capítulo 5).
Mohini personifica mais uma tentativa de tornar Shiva mundano. Como as Apsaras não são páreas para Shiva, Vishnu assume o papel da feiticeira. Nas paredes do palácio Mattencheri em Kerala há um mural de Shiva abraçando Mohini apaixonadamente enquanto Parvati, a consorte de Shiva, observa a interação deles com um sorriso resignado. Ela sabe que seu marido é um simplório e um fumante de cânhamo, sua sobrenaturalidade decorrente de sua sublimação de todas as construções. Ela entende seu fascínio por Mohini e seu envolvimento na teia encantadora de Vishnu. Talvez ele esteja muito embriagado para saber que Mohini é Vishnu. Talvez ele não se importe. De qualquer forma, o objetivo é alcançado e Shiva entra no ciclo da vida.
Claro, apenas Vishnu tem o poder de encantar Shiva, tornando-se uma mulher. Quando um demônio tentou fazer o mesmo, ele falhou miseravelmente.
A MORTE DE ADI:
O demônio Adi queria matar Shiva. Certa vez, aproveitando a ausência de Parvati, ele assumiu a forma dela e conseguiu entrar na morada de Shiva. Quando Shiva expressou seu desejo de fazer amor, Adi colocou dentes afiados em sua vagina. Shiva adivinhou que a mulher em seu braço não era sua consorte, mas uma impostora, mas continuou com a farsa para ensinar uma lição a Adi. Ele colocou um raio em sua masculinidade e penetrou Adi. Percebendo que seu jogo havia acabado, o demônio tentou escapar do abraço de Shiva, mas não conseguiu. Ele foi forçado a suportar o amor fatal.
O Agni Purana (c. 850) afirma que depois que a semente é derramada, Shiva recupera seus sentidos, fica frio e se afasta desse ato de conduta imprópria. [NOTA 9] Nunca fica claro se o ato impróprio está na perda do controle de seus sentidos ou em ser seduzido por alguém que não é bem uma mulher. Uma vez que Mohini é em essência um deus masculino (e Adi é um demônio masculino) Vishnu, muitas pessoas apontaram para o flagrante homoerotismo aqui. Mas o homoerotismo aqui é crucial ou apenas incidental? Focar apenas no homoerotismo tende a desviar toda a atenção do significado metafísico mais profundo da narrativa.
Na tradição hindu, a feminilidade sempre personificou a vida material e mundana. Quando Vishnu se torna uma mulher, ele incorpora os prazeres e responsabilidades da vida de um chefe de família. O objetivo de seu subterfúgio encantador é atrair o transcendente Shiva para o samsara. Como o deus que exorta todas as criaturas a fazerem parte da vida mundana, Vishnu encontra seu maior desafio no deus-eremita. Shiva se recusa resolutamente a fazer parte do mundo, meditando obstinadamente nos picos gelados do Monte Kailas. As duas manifestações da divindade incorporam abordagens opostas da vida. Vishnu quer participar da vida mundana (pravritti marga), Shiva quer ficar longe dela (nivritti marga). A sedução visa resolver esse antagonismo transformando o ermitão em chefe de família, ou pelo menos encantando-o a ponto de não transcender completamente a mundanidade.
Conforme discutido no Capítulo 1, de acordo com as ciências ocultas hindus conhecidas como Tantra, quando o sêmen é retido, ele ajuda o homem a se libertar do ciclo da vida; quando é derramado, aprisiona o homem nele. A tradição dos Shaiva gira em torno das tentativas desesperadas dos deuses de fazer Shiva derramar sua semente e tornar-se mundano. No Capítulo 2, os Devas imploram a ele para derramar seu sêmen e gerar o divino senhor da guerra Kartikeya, que derrotará os Asuras. No Agni Purana é dito que as gotas do sêmen de Shiva, que caíram no chão enquanto ele seguia Mohini, tornaram-se lingas (emblemas anicônicos de Shiva). Seus símbolos, assim, tornam-se terrestres. O sêmen derramado ao ver Mohini gera o viril deus guerreiro Hanuman, um deus que ajuda Vishnu a lutar contra as forças sociais perturbadoras e estabelece o dharma.
A história de Shiva derramando sua semente ao ver Mohini também explica a origem de Ayyappa, o deus consagrado em Sabarimalai em Kerala. Ayyappa também é conhecido como Manikantha e Hari-Hara-suta (o filho de Hari ou Vishnu e Hara ou Shiva). Ayyappa também une as tradições Shaiva e Vaishnava. Ele é um vira, o monge-guerreiro viril que evita os prazeres materiais, evita as mulheres, luta contra os demônios e vive como um iogue. A seguinte história de Ayyappa é parcialmente baseada no Brahmanda Purana e parcialmente no folclore. Recontagens podem ser encontradas na história em quadrinhos Ayyappa de Amar Chitra Katha, em Splitting the Difference de Wendy Doniger, Gods of Love and Ecstasy de Alain Danielou e em Same-Sex Love in India editado por Ruth Vanita e Saleem Kidwai.
O FILHO DE SHIVA E VISHNU:
Shiva uma vez viu Vishnu na forma de Mohini. Dominado pelo desejo, ele abraçou Mohini e derramou seu sêmen. Da semente derramada nasceu uma criança que foi entregue aos cuidados de um rei sem filhos. O menino foi chamado de Manikantha, porque ao nascer ele tinha um sino de joias em volta do pescoço. O menino cresceu e se tornou um guerreiro sábio, corajoso e viril que defendeu seu reino dos saqueadores, conquistando o amor e o respeito do povo. Durante sua busca, ele fez amizade com um guerreiro muçulmano chamado Vavar e um guerreiro de casta inferior chamado Kadutha. Enquanto isso, a mãe adotiva de Manikantha, a rainha, engravidou e deu à luz um filho. De repente, a ambição mostrou sua cara feia. A rainha queria que seu filho, não o Manikantha adotivo, sucedesse seu marido. Para se livrar do rival, ela fingiu estar doente e afirmou que só o leite de tigre coletado por um jovem casto a curaria. Manikantha partiu imediatamente para a missão. Ele domou os tigres com sua aura divina, ordenhou a tigresa e fez sua jornada de volta ao palácio em tigres. No caminho, ele conheceu uma ogra chamada Mahishi, que o desafiou para uma luta. Manikantha lutou e a matou. Do cadáver emergiu uma ninfa chamada Leela. Ela havia sido amaldiçoada por vagar pela floresta como uma ogra até que um jovem casto a derrotasse em batalha. Ela implorou a Manikantha em casamento. “Eu irei”, disse ele, “no dia em que nenhum jovem casto visitar meu santuário.” Manikantha voltou para o reino de seu pai sentado sobre tigres, aplaudido pelo povo. Ele deu à rainha o leite que ela queria e então, tendo adivinhado sua verdadeira intenção, renunciou à coroa, refugiou-se no topo do Monte Sabarimalai e começou a meditar. O rei implorou-lhe que voltasse, mas ele recusou. Não querendo perder seu filho, o rei amarrou um pedaço de pano em volta das pernas de Manikantha e mandou construir um santuário para sua glória no topo do Monte Sabarimalai. Dezoito degraus levavam a este santuário, indicando os dezoito anos que Manikantha passou como príncipe antes de se transformar em um ser divino, um guerreiro casto, um vira, um deus. As pessoas chamavam o menino-deus Ayyappa (pai).
O nascimento de Ayyappa não é biológico. Mohini/Vishnu não engravida; ele apenas desperta Shiva para derramar a semente. Ayyappa é, portanto, um ayonija vira, um herói que não nasceu no útero. Conforme explicado no Capítulo 2, o sêmen despertado por austeridades e restrições torna-se tão poderoso que pode se transformar em uma criança masculina pura por conta própria, sem a intervenção da semente feminina ou a incubação fornecida pelo útero.
A história de Manikantha/Ayyappa tem conotações misóginas e (portanto?) homoeróticas. Os inimigos do herói são duas mulheres (a rainha e a ogra). Ele evita a companhia de mulheres, evita o casamento e prefere a companhia de homens, especialmente seus amigos guerreiros (um muçulmano e um guerreiro de casta inferior) [NOTA 10] e seus castos devotos do sexo masculino. Essas características fazem sentido dentro do contexto do eterno conflito hindu entre desejos mundanos e aspirações sobrenaturais. Como um vira, o poder espiritual de Ayyappa reside em sua castidade e continência. Ao se opor às mulheres que personificam a ambição mundana (a rainha) e o sexo e a violência desenfreados da Natureza (a ninfa e a ogra), Ayyappa se inclina para o monaquismo e aspirações sobrenaturais. Ele simboliza a liberdade do prazer terreno transitório e incorpora a felicidade espiritual eterna. Claro, como acontece com todas as coisas hindus, isso não é absolutamente verdade, pois existem santuários satélites de Ayyappa onde ele é retratado como um homem casado com duas esposas – Poorna e Pushkala (como em Achankovil). [NOTA 11]
Sociologicamente falando, o culto de Ayyappa une não apenas as tradições Shaiva e Vaishnava, mas também a Shakta. A ninfa (alter ego de Mahishi) que espera para se casar com Ayyappa está consagrada no templo de Malikapurathamma em uma colina próxima, como sua shakti, o poder personificado. [NOTA 12] Além disso, ao vincular Ayyappa a um muçulmano e a Kadhutha, é feita uma tentativa consciente de reunir hindus e muçulmanos, bem como hindus de castas superiores e inferiores. Os peregrinos a Sabarimalai são obrigados a visitar uma mesquita dedicada à memória de Vavar antes de visitar o santuário de Ayyappa. No santuário principal, Ayyappa é um iogue celibatário, portanto nenhuma mulher em idade fértil pode visitar o santuário. Somente homens, purificados após semanas de jejum, oração e continência, podem escalar a montanha e render-se à graça de Ayyappa.
A não associação de Ayyappa com as mulheres é, em certo sentido, a não associação com o ciclo de nascimento e morte. Ayyappa personifica a imortalidade. Como resultado, quando Ayyappa substitui Brahma como o deus-criador, ele aproveita sua nova posição para conceder imortalidade a todos os seus devotos, irritando os deuses. Esta história vem de uma canção Kannada mencionada no livro Same-Sex Love in India. O sábio travesso Narada salva o dia perguntando a Ayyappa: “Se Shiva é seu pai e Vishnu é sua mãe, então como você é parente da esposa de Shiva, Parvati, e da esposa de Vishnu, Lakshmi?” Incapaz de responder à pergunta, Ayyappa abandona seu papel como criador, renuncia ao céu e retorna à terra. A história capta a tensão decorrente da ideia de que Ayyappa é filho de duas divindades masculinas, não importa qual seja o subtexto sociológico.
A tendência de usar a metamorfose de gênero e a união sexual para alcançar o sincretismo também é vista na seguinte história do Mahabhagvata Purana (c. 1100), um texto de Bengala. Wendy Doniger O’Flaherty refere-se a isso em seu ensaio “Androgynes” em seu livro Sexual Metaphors and Animal Symbols in Indian Mythology.
KALI SE TORNA KRISHNA:
A pedido dos Devas, a deusa Kali desceu à terra como Krishna, o vaqueiro, para livrar a terra de reis ambiciosos. Shiva orou a Kali e teve permissão para descer como Radha, a consorte de Krishna, a fim de fazer amor ao contrário, com ela na posição dominante. Assim, Shiva e Kali estavam juntos na terra como estavam no Monte Kailas.
Na Bengala, as tradições Vaishnava e Shakta se manifestam como a adoração de Krishna e Kali. Ambas as tradições dominaram a vida e foram igualmente respeitadas por séculos, criando uma profunda necessidade de tornar essas escolas teístas complementares, especialmente em vista dos paradigmas contrastantes associados a ambas as divindades. Enquanto Krishna é um deus vaqueiro cativante, astuto e vegetariano que faz as mulheres dançarem ao som de suas músicas nos prados, Kali é a deusa assassina selvagem, autônoma e sedenta de sangue que fica nua em seu consorte Shiva enquanto ele está deitado no chão. As diferenças são reconciliadas quando Kali (feminino) se manifesta como Krishna (masculino) e Shiva (masculino) torna-se Radha (feminino). Como Radha, Shiva se senta em Kali e faz amor ao contrário. A transformação sexual permite que o devoto se relacione com duas divindades como uma.
Outra história tenta conciliar a adoração de Shiva na cidade de Krishna, por meio da metamoifose de gênero. Esta história é única porque é uma das poucas em que Shiva se torna uma mulher (portanto, subordinada à divindade que preside a cidade). Foi-me contado por Ann Kim, que estava fazendo pesquisas em Mathura, a cidade sagrada de Krishna, às margens do rio Yamuna, no norte da Índia. Ela me informou que a história foi recontada em Journey Through the Twelve Forests, de David L. Haberman, e mencionada brevemente em Braj, Centre of Krishna Pilgrimage, de A. W. Entwistle. Braj, ou Vraja, a terra ao redor de Mathura nas margens do rio Yamuna, está associada à vida de Krishna. A história é um Sthala Purana, uma crônica relacionada a um santuário particular, sem nenhum outro testemunho das escrituras. Refere-se a um pequeno templo de Shiva nas margens do Yamuna, onde a pedra sagrada linga é vestida todas as noites como uma gopi, ou vaqueirinha, na privacidade do sanctum sanctorum.
SHIVA, A VAQUEIRINHA:
Todas as noites as vaqueirinhas de Vraja circulavam Krishna e dançavam nos prados de Madhuvana enquanto ele tocava flauta. Esta foi a dança mística de união com o princípio divino supremo conhecido como Maharaas. Shiva, encantado com o esplendor dessa dança, resolveu participar dela. Ele chegou às margens do Yamuna junto com Parvati. Parvati juntou-se à dança sagrada, mas Shiva foi impedido de entrar no círculo mágico por ser um homem. Nos Maharaas, apenas Krishna era homem, todos os outros eram mulheres. Determinado a se juntar aos Maharaas, Shiva se banhou no rio Yamuna e a deusa do rio o transformou em uma mulher. Nesta forma feminina, Shiva entrou no círculo mágico e começou a dançar. Enquanto a dança continuava noite adentro, as vaqueirinhas notaram que Krishna dava mais atenção ao recém-chegado. Radha, a favorita de Krishna, exigiu uma explicação. “Ele é Shiva, o dançarino cósmico supremo, meu professor. Eu danço com ele para ele.” As vaqueirinhas saudaram Shiva e observaram, encantadas, a dança divina de Nataraja (Shiva, o dançarino) e Natwara (Krishna, o dançarino).
Assim como Mohini, Krishna é uma encarnação de Vishnu. Mas, ao contrário de outras encarnações, Krishna superou até mesmo Vishnu em popularidade a ponto de ser considerado a manifestação terrena perfeita de Vishnu, a única forma pela qual Vishnu pode ser compreendido, abordado e realizado. Ao longo dos tempos, Krishna tem sido visualizado como uma criança adorável, um brincalhão cativante, um filho amoroso, um flautista encantador, um libertino encantador, um amigo carinhoso, um amante encantador, um marido nobre, um guerreiro feroz, um filósofo sábio. , um diplomata determinado, um estrategista astuto e um deus incrível. Diz-se que até visualizar Krishna como um inimigo manipulador é uma forma de devoção, pois a inimizade faz com que a pessoa pense em Krishna tantas vezes que a pessoa acaba sendo abençoada. [NOTA 13]
Para os hindus, assim como a palavra Shiva evoca serenidade e a palavra Vishnu evoca admiração, a palavra Krishna evoca amor, todos os tipos de amor, do sublime ao sensual. Na adoração de Krishna, os devotos são instruídos a amar o divino em termos humanos, considerando o senhor como seu filho, amigo, professor, mestre ou amante. Olhar para Krishna como o amante divino de alguém não é difícil em vista da forma erótica descarada atribuída a ele – rosto gentil, cabelo encaracolado, pele escura, olhos acolhedores, sorriso misterioso, membros ágeis, enfeitado com seda amarela, joias, pavão penas, guirlandas brilhantes e pasta de sandália. Em Krishna, o espiritual e o erótico não podem ser diferenciados.
O amor por Krishna levou alguns devotos do sexo masculino a rejeitar sua masculinidade, de modo que, assim como Shiva se tornou uma vaqueirinha para se juntar aos Maharaas, eles também tiveram a chance de se juntar ao seu amado divino na dança mística. Esses devotos vestem roupas femininas, comportam-se como mulheres e chamam a si mesmos de Sakhis, companheiros de Radha, a amada vaqueirinha de Krishna. Em sua reverência por Radha, eles não se identificam com ela. Ao se identificarem como suas servas, elas acreditam que terão maior acesso ao senhor. [NOTA 14] É interessante notar que, ao contrário de outras ordens religiosas onde a biologia masculina é considerada essencial para a libertação do ciclo da vida, a ordem dos Sakhis insiste em rejeitar a identidade masculina para se libertar da realidade material e se fundir com O divino. Não que essa prática seja apreciada. Comentando sobre eles em seu livro Vaisnavism, Saivism and Minor Religious Systems (Vaisnavismo, Saivismo e Sistemas Religiosos Menores), R. G. Bhandarkar disse:
Suas aparências e atos são tão repugnantes que eles não se mostram muito em público, e seu número é pequeno… Eles merecem atenção aqui apenas para mostrar que, quando o elemento feminino é idolatrado e feito objeto de adoração especial, tais corrupções repugnantes devem ocorrer. [NOTA 15]
Krishna nasceu para livrar os reis cuja ganância e ambições sobrecarregavam a terra. A história diz que a deusa da terra se aproximou de Vishnu na forma de uma vaca e implorou para que ele a salvasse: as ambições do homem estavam quebrando suas costas e a ganância estava deixando seus úberes doloridos. Vishnu concordou em descer à terra como Krishna e livrá-la do fardo. Tendo essa história em mente, uma explicação dada para a homossexualidade por um Tamil Vaishnava Brahmin adquire grande significado. Suas opiniões aparecem no livro de Shakuntala Devi, The World of Homossexuals. Segundo ele, o rápido crescimento da população humana e o declínio da população animal sobrecarregaram a Terra e criaram um desequilíbrio cósmico. O nascimento de seres humanos que se desviam naturalmente das práticas de procriação (por exemplo, homens e mulheres que desejam o mesmo sexo) é a maneira da Natureza de controlar a fertilidade humana descontrolada. [NOTA 16]
Krishna foi criado entre vaqueiros e cresceu protegendo suas vacas e sua aldeia dos demônios. Quando criança, ele invadiu laticínios, roubou manteiga e conquistou o coração das vaqueirinhas com suas travessuras. Quando jovem, encantava as mulheres com seu sorriso, sua música e sua dança. Todas as noites de lua cheia, ele ia para o belo prado conhecido como Madhuvana, nas margens do Yamuna, e tocava flauta. A música despertava amor nos corações das vaqueirinhas que corriam para Madhuvana, circulavam Krishna e dançavam ao som de sua música. Esta não era uma dança comum; este foi o Maharaas, a dança da união mística. Aqui, Krishna era o espírito-guia, a própria consciência, enquanto as mulheres encarnavam as partículas que compõem a realidade material. Eles se moviam ritmicamente ao som da música de Krishna até que não houvesse diferença entre a dança e a música, entre o dançarino e o músico. Todos se tornaram um.
O Maharaas é aberto apenas para mulheres. Krishna é o único homem. Para os homens entrarem nela, eles precisam se tornar mulheres. Na história anterior, Shiva se torna uma vaqueirinha para dançar com Krishna. O Padma Purana narra uma história semelhante sobre Arjuna. A história foi traduzida e compilada no livro Same-Sex Love in India. Semelhante a Shiva, quando Arjuna expressa seu desejo de participar da dança mística de Krishna, ele é primeiro transformado em uma mulher e depois pode entrar. Tal como acontece com Shiva, a transformação sexual ocorre após um mergulho no rio. Arjuna experimenta o que nenhum homem experimentou e é exortado por Krishna a não compartilhar seu encontro secreto com ninguém.
O Maharaas sempre acontece à noite, fora da aldeia, em segredo. Há algo de mágico e clandestino nisso, pois rompe com todas as normas sociais. É um evento onde todos os limites são rompidos, todas as identidades destruídas. É um retorno à inocência primordial quando o amor reina sozinho e tudo o mais é deixado de lado. As mulheres deixam seus maridos e correm o risco de desonra ao virem para Krishna. No entanto, eles vêm, pois Krishna é o divino que só pode ser alcançado quando se abandona todas as pretensões e fachadas. Durante o dia, na aldeia, as vaqueirinhas vivem como mulheres comuns, como esposas, irmãs e filhas, defendendo os valores sociais. À noite, no deserto, elas trocam identidades sociais, tornam-se mulheres livres e dançam sem vergonha nos braços do senhor. Assim, o conflito entre demandas culturais e impulsos naturais é reconciliado. Os dois coexistem. Tanto a inerente liberdade de vida quanto a necessária repressão da sociedade se aceitam e se respeitam.
De todas as vaqueirinhas, havia uma que era muito querida por Krishna. Ela era Radha. Em uma tradição, a parakiya parampara, Radha é considerada a mais velha para ele e a esposa do tio materno de Krishna. Assim, o relacionamento é adúltero, incestuoso e não convencional (mulher mais velha, homem mais jovem). [NOTA 17] Esta tradição às vezes insiste que o marido de Radha era impotente e seu encontro secreto com Krishna foi um encontro com seu verdadeiro (divino) marido (tentando assim minimizar o adultério). Na tradição de Bengala discutida anteriormente, onde Krishna é identificado com Kali e Shiva com Radha, Shiva pede a Kali para tornar seu marido terreno impotente, evitando assim sua violação mesmo em sua forma feminina. Em outra tradição, a svakiya parampara, que considera até mesmo a sugestão de adultério e incesto blasfêmia, Radha é a esposa mística de Krishna, uma manifestação de seu deleite, nascida quando Krishna olhou no espelho e experimentou o desejo. [NOTA 18] Diz-se que o anseio de Radha por Krishna é uma alegoria do anseio da alma individual pelo divino. Essa ideia é trazida na seguinte história baseada na poesia devocional medieval.
KRISHNA USA AS ROUPAS DE RADHA:
Todas as noites Radha arriscaria tudo para estar com Krishna. Ela escapava de casa no meio da noite e atravessava a floresta até as campinas de Madhuvana, às margens do rio Yamuna, onde Krishna tocava flauta e a encantava com seu sorriso cativante e abraço apaixonado. Em seu amor por Krishna, Radha às vezes era ciumenta, possessiva ou briguenta. Ela sentiu que Krishna nunca entenderia sua angústia e desejo até que ele pudesse se tornar ela. Então, para pacificar Radha, Krishna decidiu que uma noite eles deveriam trocar de papéis. Na hora marcada, Krishna vestiu as roupas de Radha e Radha vestiu as roupas de Krishna. Ela tocava flauta e ele dançava ao seu redor. Ela assumia a liderança quando faziam amor e ocupava a posição ativa. Ela o dominou. “Mesmo assim, Krishna, você não pode me entender”, Radha disse a seu amado, “Você pode se vestir como eu, falar e dançar como eu, mas nunca poderá sentir o que eu sinto, pois nunca podemos trocar corações.”
Ao se tornar Radha, Krishna faz a declaração final de seu amor. Este episódio inspirou rituais, como a cerimônia secreta em Nathadvara, onde Krishna-Srinathji está vestido de mulher. Ninguém além do padre participante viu a imagem de Srinathji vestida de mulher. Uma pintura desta forma do senhor pode ser vista no livro de Amit Ambalal sobre pinturas Rajasthani de Nathdvara, Krishna As Srinathji. Ambalal nos informa que a pintura foi feita com base nas descrições dadas pelo chefe do templo, Govardhanlalji, já que ninguém mais havia visto o traje. Depois que a pintura foi feita no início do século XX, Govardhanlalji proibiu os pintores, proibindo-os de retratar Srinathji como uma mulher.
A imagem de Krishna vestido como Radha captura as tensões inerentes entre realidade espiritual e material, entre homem e mulher, entre realidade e aparência, entre representação e realidade, entre sexo e gênero, entre cultura e natureza. Embora Krishna e Radha troquem roupas e papéis sexuais, as diferenças biológicas essenciais permanecem. Ao amanhecer, Radha deve vestir roupas de mulher, comportar-se como mulher, deixar o deserto da lei natural e retornar à aldeia sob o manto da lei social. A vida de Krishna como pivô dos Maharaas chega a um fim abrupto quando o dever o chama para a cidade de Mathura. Em um instante, ele se afasta das alegrias bucólicas da aldeia e entra no mundo perverso da política urbana. Ele desiste de Radha e sua flauta. O romance de Madhuvan perde prioridade quando a corrupção de Mathura se revela. Krishna, o amante, deve se tornar Krishna, o restaurador do dharma. As vaqueirinhas choram e imploram para que ele fique. Mesmo assim, Krishna vai embora. Ele precisa, pois o deus brincalhão também é a personificação do desapego.
A primeira parte da vida de Krishna foi descrita pela primeira vez no Harivamsa e o restante faz parte do épico Mahahharata. A recontagem mais importante da vida de Krishna é o Bhagavata Purana, mas as informações mais próximas da maioria dos seguidores vêm de canções devocionais e histórias compostas ao longo dos tempos. Neles aprendemos como, depois de deixar a aldeia de vaqueiros, Krishna une forças com os Pandavas e começa a destruir os reis perversos da terra, recorrendo mais frequentemente à astúcia e subterfúgios. A seguinte história de como Krishna, em sua busca para estabelecer o dharma, derrotou um demônio ao se tornar uma mulher é contada pelos Alis de Tamil Nadu e foi contada por Wendy Doniger em seu livro Splitting the Difference.
KRISHNA MATA ARAKA:
O demônio Araka nunca tinha visto uma mulher. Sua castidade o tornava invulnerável. Um dia ele conheceu uma linda mulher chamada Mohini e foi dominado pelo desejo. Três dias depois desse incidente, Krishna encontrou Araka em batalha e conseguiu matá-lo. Krishna revelou aos deuses que Mohini era uma de suas muitas formas. Ele declarou que na era das trevas, Kali Yuga, haverá muito mais criaturas que não são nem masculinas nem femininas e quaisquer palavras que saiam de suas bocas, sejam boas ou más, se tornarão realidade.
É claro que na história anterior, os narradores não diferenciam entre Vishnu e Krishna. Esta tendência é comum no folclore. A história não deixa claro se a transformação é biológica ou meramente cosmética. Uma trama semelhante é encontrada na seguinte narrativa onde Krishna e seu companheiro, o Pandava Arjuna, tornam-se mulheres para enganar um feiticeiro. A história vem dos distritos do norte de Tamil Nadu, onde Draupadi, a esposa comum dos Pandavas (ver Capítulo 1) é adorada como uma manifestação da deusa-mãe. As muitas variantes desta história foram recontadas em The Cult of Draupadi, de Alf Hiltebeitel.
KRISHNA E ARJUNA COMO MÃE E FILHA:
Um feiticeiro possuía cinco objetos sagrados que os Pandavas precisavam para derrotar seus inimigos, os Kauravas. Ele vivia em um forte inexpugnável e poderia ser morto por ninguém menos que seu filho. Krishna e Arjuna bolaram um plano para matar o feiticeiro, destruir seu forte e adquirir os objetos sagrados. Krishna se disfarçou de velha enquanto Arjuna se enfeitou como uma encantadora donzela chamada Vijayampal. Elas se aproximaram do filho do feiticeiro Pormannan, apresentando-se como mãe e filha. Encantado com a aparência de Vijayampa, Pormannan pediu sua mão em casamento. “Se você quiser se casar com ela, você deve matar seu pai, destruir seu forte e nos trazer os cinco objetos sagrados que ele possui”, disse Krishna. Pormannan, dominado pelo desejo, matou seu pai, destruiu o forte, roubou os objetos sagrados e correu atrás de Krishna e Arjuna. Quando descobriu que não eram mulheres, ficou furioso. “Quem vai satisfazer meu desejo agora?”, perguntou ele. Sentindo pena do jovem, os Pandavas o deixaram se casar com sua irmã e o tornaram um oficial sênior de seu exército.
Embora não explícito, Arjuna e Krishna estão claramente envolvidos em um subterfúgio de transgenereidade. Elas se tornam mulheres para seduzir o vilão à sua destruição. A questão pode ser levantada: “Por que eles não usaram uma mulher em vez disso?” O frustrado Pormannan fica tão excitado com a beleza de Vijayampal que exige satisfação. Qualquer mulher serve. Assim, qualquer sugestão de união homoafetiva entre o herói e o vilão é descartada. O herói pode seduzir o vilão, mas não dorme com ele.
Na história a seguir, de uma recontagem popular do Mahabharata, a transgenereidade ajuda outro Pandava a ganhar o dia. A história envolve o filho de Arjuna, Abhimanyu, e o filho de Bhima, Ghatotkacha. Uma versão da história pode ser encontrada na história em quadrinhos de Amar Chitra Katha, Ghatotkacha.
GHATOTKACHA EM ROUPAS FEMININAS:
Krishna pertencia ao clã Yadava que tinha laços estreitos com o clã Kuru. Infelizmente, o clã Kuru se dividiu em Kauravas e Pandavas. Krishna queria que os Yadavas apoiassem os Pandavas, mas seu irmão mais velho, Balarama, ficou do lado dos Kauravas. Para estabelecer uma forte aliança com os Kauravas, Balarama decidiu que sua irmã, Subhadra, deveria ser dada em casamento ao Kaurava Duryodhan mais velho. Krishna não apoiou isso e ajudou Subhadra a fugir com Arjuna, o Pandava. Anos depois, Balarama decidiu dar sua filha Vatsala em casamento ao filho de Duryodhana, Laxman. Vatsala, no entanto, queria se casar com o filho de sua tia Subhadra, Abhimanyu. Balarama não apenas recusou, como também colocou guardas para impedi-la de fugir. Desesperado, Vatsala mandou uma mensagem a Abhimanyu, que procurou a ajuda de seu meio-irmão Ghatotkacha, rei dos Rakshasas. No dia do casamento, Ghatotkacha voou para o palácio de Balarama, lançou um feitiço de sono e carregou Vatsala para sua residência na montanha, onde Abhimanyu a esperava. Ghatatkocha então retornou ao palácio de Balarama, transformou-se na própria imagem de Vatsala e tomou o lugar da verdadeira Vatsala para que ninguém sentisse sua falta. Durante a cerimônia de casamento, quando Balarama deu a mão de sua filha para Laxmana, Ghatotkacha apertou a mão do noivo com tanta força que ele desmaiou. Então, revelando sua verdadeira forma, ele riu dos convidados reunidos e voou para longe.
Assim como seu filho Ghatotkacha, Bhima também está envolvido em um subterfúgio de transgenereidade. Este evento ocorre durante o último ano do exílio Pandava após a perda de seu reino para os Kauravas em um jogo de dados. A história é encontrada em todas as recontagens populares do épico.
BHIMA EM ROUPAS FEMININAS:
No décimo terceiro ano de seu exílio, quando foram obrigados a viver incógnitos, os cinco Pandavas se refugiaram na corte do rei Virata. O nobre Yudhishtira, o poderoso Bhima, o arqueiro Arjuna, o belo Nakula e o sábio Sahadeva se disfarçaram de sacerdote, cozinheiro, dançarino eunuco, cavalariço e vaqueiro. A esposa deles, Draupadi, disfarçou-se como uma empregada do palácio chamada Sairandhri e conseguiu um emprego nos aposentos da rainha Sudeshna de Virata. A rainha a tratou com gentileza. Após cerca de dez meses, o irmão da rainha, Kichaka, que também era o comandante-em-chefe, viu Draupadi e, apaixonado por sua beleza, fez propostas sexuais para ela. Quando ela recusou, ele se recusou a desistir. Dominado pelo desejo, ele forçou sua irmã a enviar Draupadi para seus aposentos sob o pretexto de coletar vinho. Lá ele tentou estuprar Draupadi, mas ela conseguiu escapar dele. Ela correu para o rei e implorou proteção. Mas, o rei temia seu poderoso cunhado. Ele não fez nada quando Kichaka correu para o tribunal, pegou Draupadi pelos cabelos e a espancou em público. Mesmo Yudhishtira, que se sentava ao lado do rei, nada fez por medo de revelar sua identidade, ato que teria forçado os Pandavas a permanecerem no exílio por mais treze anos. Cheio de fúria, Draupadi foi até Bhima, que servia nas cozinhas do palácio e exigiu que ele cumprisse seu dever como marido. Juntos traçaram um plano. Draupadi enviou uma mensagem para Kichaka pedindo-lhe para encontrá-la em um canto solitário do teatro à noite. Bhima esperou por ele disfarçado de mulher. Quando Kichaka chegou, ele confundiu Bhima com Draupadi e se aproximou luxuriosamente. Bhima retribuiu o abraço com tanta força que Kichaka foi reduzido a uma polpa.
A história da morte de Kichaka é um tema popular em peças e balés. A trama do poderoso Bhima vestido de mulher seduzindo Kichaka e depois “lutando” com ele até a morte é vista como cômica. Em nenhum momento sua transgenereidade lança calúnias sobre sua orientação sexual. Assumir a transgeneridade é aceitável, desde que ajude a matar vilões e salvar donzelas. Quando apóia qualquer coisa que não seja uma agenda heterossexual, encontra hostilidade, conforme sugerido na seguinte história compilada por Ki. Rajanarayanan de Pondichevry e narrado para mim por C.S. Lakshmi. [NOTA 19] É a história de uma deusa popular de Tamil Nadu. O que se segue é o meu entendimento da narrativa.
SANTOSHI E SEU IRMÃO:
Certa vez, um rei viu uma linda garota no campo. Dominado pelo desejo, ele ordenou que ela viesse ao jardim real à noite enfeitada como uma noiva. Para salvar sua honra, seu irmão gêmeo entrou em seu lugar vestido de mulher. A irmã viu o rei fazer amor com seu irmão. Os dois pareciam estar gostando. Até um cachorro que estava por perto ficou excitado com o que estava acontecendo. Irritada com o desenrolar dos acontecimentos, ela se transformou em uma deusa ardente, ergueu sua espada, matou o rei, seu irmão e até o cachorro, e se refugiou na floresta.
Provavelmente, Santoshi esperava que seu irmão matasse o rei, assim como Bhima matou Kichaka em defesa da honra de Draupadi. O que realmente acontece não tem a aprovação dela. Em sua raiva, ela se torna um ser malévolo semelhante a uma deusa.
Na história a seguir, Krishna não apenas se torna uma mulher, mas também tem relações sexuais com um homem. Nunca fica claro se a transformação de Krishna em Mohini é biológica (tornando a relação sexual heterossexual) ou outro caso de transgenereidade (tornando a relação sexual homossexual). A história prevalece apenas no norte de Tamil Nadu e é recontada em The Cult of Draupadi, de Alf Hiltebeitel.
KRISHNA TORNA-SE A ESPOSA DE ARAVAN:
Os Kauravas e os Pandavas travaram uma grande batalha nas planícies de Kurukshetra. Ambos estavam empatados. Os oráculos do lado Pandava adivinharam que o sacrifício humano era a única maneira de agradar a deusa da guerra e garantir a vitória. Três homens no acampamento Pandava foram considerados dignos de sacrifício: Krishna, o guia divino, Arjuna, o comandante e Aravan, filho de Arjuna com a princesa serpente. Como Krishna e Arjuna eram indispensáveis, os Pandavas decidiram sacrificar Aravan. Mas Aravan queria uma esposa antes de ser sacrificado, pois o casamento lhe dava direito a uma cremação e oferendas funerárias adequadas. Nenhuma mulher estava disposta a se casar com um homem condenado a morrer no dia seguinte ao casamento. Então Krishna se transformou em uma bela mulher chamada Mohini, casou-se com Aravan, passou a noite com ele e, ao amanhecer, depois de ter sido sacrificado, lamentou-o como uma viúva.
Na aldeia de Koovagam, North Tamil Nadu, Aravan é consagrado como Khoothandavar (que às vezes é visto como uma manifestação paroquial de Shiva). Todos os anos, na noite de lua cheia do mês de Chaitra (fevereiro-março), Alis reencena ritualmente o casamento e a viuvez de Krishna/Mohini tornando-se a esposa de Khoothandavar. As noivas se autodenominam Aravanis. Depois que o cordão sagrado é amarrado em seu pescoço, elas fazem amor com homens que substituem Aravan. No dia seguinte, o ídolo de Khoothandavar é sacrificado ritualmente e os Aravanis lamentam sua morte quebrando pulseiras, batendo no peito e jogando fora todos os enfeites de noiva. [NOTA 20]
A encenação ritual da viuvez é comum em muitos ritos dedicados às deusas da aldeia ou Grama-devis. Esses ritos devem ser diferenciados das sofisticadas cerimônias bramânicas de casta superior dedicadas a deuses superiores como Shiva e Vishnu. Esses ritos rústicos são bastante toscos e terrenos, onde as castas inferiores desempenham papéis significativos. Estudos sociológicos sugerem que, uma vez que a deusa da aldeia mata seu próprio marido (ver Capítulo 4), sua viuvez é essencialmente sua libertação da restrição patriarcal. Ele retorna ao seu estado selvagem primitivo por um período temporário. O período entre a viuvez e o novo casamento é marcado por orgias (não mais praticadas hoje) e sacrifícios de sangue (predominantes até hoje) para restaurar a fertilidade da deusa e, portanto, da aldeia. Acredita-se que a natureza orgiástica desenfreada do ritual seja catártica para a comunidade que se reúne uma vez por ano durante esta cerimônia. [NOTA 21]
O sacrifício de Aravan garante o sucesso dos Pandavas na grande guerra. Depois que os Pandavas são reis coroados, Krishna retorna à sua cidade, onde vive como um chefe de família, cercado por suas oito esposas mais velhas e 16.100 esposas mais novas. Esta vida carece do erotismo descarado dos Maharaas. É doméstico, contido e comum. Dentro desta vida doméstica comum, ocorrem eventos que significam a destruição do clã Yadava.
A GRAVIDEZ DE SHAMBA:
Krishna, senhor do clã Yadava, tinha um filho chamado Shamba, que adorava pregar peças. Certa vez, ele e seus amigos decidiram se divertir às custas de alguns sábios que visitavam sua cidade. Shamba disfarçou-se de grávida e aproximou-se timidamente. Seus amigos perguntaram: “Sábios senhores, ela dará à luz um filho ou uma filha?” Os sábios adivinharam o mal e não acharam graça. “Nenhum dos dois”, eles responderam, “Ele carregará uma maça de ferro que destruirá o clã Yadava.” Para seu horror, alguns meses depois, Shamba experimentou uma dor excruciante e lançou uma maça de ferro. Quando os anciãos Yadava souberam do que havia acontecido, eles aconselharam os jovens a bater a maça e jogar o pó de ferro no mar. Infelizmente, o pó se depositou na praia de Prabhasa e se transformou em folhas afiadas de grama. Um peixe engoliu um pedaço afiado de ferro que não podia ser pulverizado. O peixe foi capturado por um pária chamado Jara, um caçador, que transformou o fragmento de ferro em uma ponta de flecha. Algum tempo depois, os Yadavas foram para a praia em Prabhasa para um piquenique. Eles consumiram álcool e começaram a discutir a guerra em Kurukshetra. Aqueles que se aliaram aos Pandavas começaram a discutir com aqueles que se aliaram aos Kauravas. Logo os Yadavas foram divididos em dois grupos, cada um determinado a afirmar seu ponto de vista. Quando as palavras falhavam, a discussão tornava-se violenta. Os homens arrancaram as folhas de grama e começaram a bater uns nos outros com elas. Infelizmente, essas não eram folhas de grama comuns. Eles eram afiados como navalhas e matavam as pessoas. Antes que os eventos pudessem ser controlados, os homens Yadava estavam se matando. Percebendo a futilidade de tentar detê-los, Krishna foi para a floresta, onde foi acidentalmente morto pela flecha de Jara.
Enquanto a transgenereidade de Krishna serve a um propósito positivo – enganar o inimigo, apaziguar o amante – a transgenereidade de Shamba tem uma intenção negativa. Ele procura zombar dos sábios. Os sábios não se divertem. Em vez de expor o engano, eles o transformam em realidade por meio do poder de suas austeridades. Shamba engravida e entrega uma maça de ferro que acaba destruindo a raça Yadava. Krishna, divindade personificada, testemunha os eventos sem levantar um dedo. Ele não detém a marcha do tempo. Os deuses também estão sujeitos à lei de ação e reação. O que é determinado pelo karma deve ser aceito e suportado por todos.
Quando a guerra em Kurukshetra terminou e Krishna ficou cercado pelos cadáveres dos guerreiros caídos, ele teve que enfrentar a ira das viúvas Kauravas. Gandhari, mãe dos Kauravas, responsabilizou Krishna pela morte de seus filhos. Em sua dor, ela amaldiçoou Krishna dizendo que ele também testemunharia impotente a morte de seus filhos e parentes e morreria uma morte vergonhosa nas mãos de um homem de casta inferior. O carma também rege a vida dos deuses. Krishna graciosamente aceita as reações às suas ações. O preço de estabelecer o dharma deve ser pago.
A história também revela que o caráter de um homem não depende de sua linhagem ou criação. Embora Shamba seja filho de Krishna, ele não exibe qualidades de herói. No Varaha Purana (c. 750), aprendemos que Shamba foi amaldiçoado com uma doença de pele porque cedeu às atenções amorosas de suas madrastas, as esposas juniores de Krishna.
O comportamento de Shamba e a morte de Krishna anunciam o Kali Yuga, a quarta e última idade no ciclo de vida do cosmos, quando o dharma desmorona e o caos reina. De acordo com as escrituras, assim como os humanos morrem e renascem, o cosmos também passa por ciclos de renascimento. Cada ciclo de vida cósmico (conhecido como Kalpa) é dividido em quatro eras ou Yugas. Primeiro vem o Yuga conhecido como Krita, no final do qual o “touro do dharma” perde uma de suas quatro patas. Depois vem o Treta e o Dvapara Yuga, quando o touro perde a segunda e a terceira pata. Finalmente, no Kali Yuga, a ilegalidade é abundante e o touro perde sua perna final e o mundo se desintegra. Uma grande inundação afoga o mundo, após o que o cosmos ressurge purificado. Em cada idade sucessiva, a expectativa de vida e a altura dos humanos diminuem. Enquanto no Krita Yuga, as crianças são produzidas apenas pelo pensamento; no Treta Yuga, eles são produzidos pelo toque; e no Dvapara Yuga, eles são produzidos pelo sexo que ocorre da maneira ritualmente prescrita: entre homem e mulher da mesma casta unidos por casamento durante o período fértil. No Kali Yuga, as crianças são produzidas através do sexo profano (adharma) entre homens e mulheres que não pertencem à mesma casta e não estão necessariamente ligados pelo casamento. No Kali Yuga, homens e mulheres fazem sexo mesmo quando o útero não é fértil. Homens derramam sêmen como aberturas de base (ânus e boca) de mulheres e homens. Eles até copulam com animais. [NOTA 22]
Pode-se concluir que as quatro Yugas marcam uma transição da perfeição para a imperfeição e da justiça para a injustiça, da ordem para a desordem, o “mundo do dharma” servindo como padrão de tudo o que é perfeito, correto e ordenado. Implícito na conclusão está o desejo de que a tendência regressiva possa ser revertida. Eles não podem. Nem mesmo os deuses podem controlar eventos predeterminados. Samsara, de muitas maneiras, é uma entidade autossustentável. Até os deuses seguem seu curso.
Em cada Kalpa, Vishnu desce como Parashurama, Rama e Krishna no final dos Krita, Treta e Dvapara Yugas. Todas as encarnações têm a mesma missão (manter a ordem), mas cada uma enfrenta um mundo com uma medida diferente de dharma. Portanto, embora a essência permaneça a mesma, a identidade muda. Em cada era, conforme as regras do dharma mudam, também muda a posição social (determinada pela casta) das encarnações de Vishnu. Ele é um sacerdote no primeiro trimestre, um guerreiro no segundo e um vaqueiro no terceiro. No Krita Yuga, o sacerdote Parshurama obedece a seu pai a ponto de decapitar sua mãe (com base em que ela teve pensamentos adúlteros) e castrar seus irmãos (com base em que eles se recusaram a matar sua mãe como seu pai queria que eles fizessem). Na Treta Yuga, o guerreiro Rama obedece ao pai, dá a coroa ao irmão, vai para o exílio na floresta, permanece fiel à esposa, resgata-a das garras do sequestrador, mas a manda deixar o palácio alegando que sua reputação foi comprometida por sua associação com seu sequestrador. Na era de Rama, sexo além dos limites do casamento e sexo com membros do mesmo sexo é visto apenas entre os Rakshasas, descritos como bárbaros e demônios. O episódio a seguir vem da tradução de Makhan Lai Sen do Ramayana. [NOTA 23]
O HARÉM DE RAVANA:
Hanuman voou para o reino da ilha de Lanka em busca da esposa de Rama, Sita, que havia sido sequestrada por Ravana, rei dos Rakshasas. Ele entrou no palácio de Ravana e encontrou muitas mulheres em sua cama. Algumas delas, sob a influência de sua esposa, estavam beijando os lábios de outras mulheres, pensando ser o rosto de Ravana. As mulheres embriagadas retribuíram o beijo, acreditando terem sido beijadas por Ravana. As mulheres dormiam nos braços umas das outras, descansando suas cabeças nos seios umas das outras, entrelaçadas como uma guirlanda e uma trepadeira primaveril. Confiante de que a esposa de Rama não entregaria sua virtude a Ravana, Hanuman deixou o palácio e procurou por Sita em outro lugar, finalmente encontrando-a no pomar real cercada por guardas femininas.
A relação entre pessoas do mesmo sexo aqui não é uma manifestação de amor entre pessoas do mesmo sexo. É um pobre substituto para as relações sexuais cruzadas usadas por mulheres intoxicadas. O autor considera esse comportamento apropriado para mulheres identificadas como Rakshasas. As mulheres Rakshasa (e homens) no épico são retratadas como criaturas com apetite sexual insaciável e desenfreado, bem diferente de Rama e Sita, cujas vidas sexuais são reguladas por códigos sagrados. A tendência de descartar relações sexuais lésbicas como comportamento condizente com demônios ou bárbaros sexualmente insaciáveis é verificada pelo fato de que a rainha Rakshasa Mandodari, esposa de Ravana, é considerada uma mulher sagrada nos hinos hindus. Ela é descrita como uma “Sati”, ou esposa casta, digna de veneração porque permanece fiel ao marido mulherengo e porque o apoia, apesar de suas inúmeras deficiências.
Os homens que, encantados pela aura divina de Rama, desejam ser seus amantes são instruídos a encontrá-lo apenas no próximo Yuga. Uma recontagem dessa história baseada no Ramayana, Padma Purana (c. 600-750) e no Bhagavata Purana, de Wendy Doniger, pode ser encontrada em Splitting the Difference.
AS VIDAS PASSADAS DAS VAQUEIRINHAS:
Quando Rama entrou na floresta, os sábios que o viram, até mesmo as árvores e os animais que o contemplaram, quiseram se tornar mulheres e fazer amor com ele. Rama, eternamente fiel a sua esposa Sita, rejeitou suas solicitações, mas prometeu que quando ele encarnasse na terra como o vaqueiro Krishna, elas nasceriam como vaqueirinhas de Vrindavana e dançariam com ele. E assim aconteceu. Quando Krishna tocava flauta em Madhuvana nas noites de luar, elas vinham como mulheres e dançavam ao seu redor. Os vaqueiros que se juntaram à dança desejaram ser mulheres também. Quando Krishna desapareceu, as vaqueirinhas em sua incapacidade de suportar a tristeza da separação, imaginaram que outras vaqueirinhas eram Krishna e se abraçaram.
O que estava confinado aos demônios no Treta Yuga de repente fez sua presença ser sentida nas imediações da divindade no Dvapara Yuga. As mulheres na cama de Ravana são as esposas de outros homens. As mulheres que dançam ao redor de Krishna também são esposas de outros homens. As mulheres em ambas as situações expressam desejos do sexo oposto em termos do mesmo sexo. Mas a tendência geral tem sido ignorar a natureza queer óbvia, despojar as impressionantes imagens de seu erotismo e olhar para os Maharaas como uma alegoria, insistindo que o amor de Krishna é espiritual (prema) e não carnal (kama). Tais interpretações, por mais justificadas que sejam, não podem retirar a bissexualidade codificada.
Em muitos Puranas, tudo o que é socialmente inaceitável é considerado adharma. Sua existência é explicada como uma manifestação de Kali Yuga. Como os eventos em Kali Yuga são predeterminados, nada pode ser feito sobre eles. Com o típico fatalismo hindu, portanto, enquanto a homossexualidade, o a transgenereidade, a mistura de castas e a liberação das mulheres são condenadas, elas também são aceitas como eventos inevitáveis na marcha do tempo.
A transformação de Vishnu em Mohini e a decisão de Krishna de se vestir como Radha inspiram rituais porque sustentam a vida mundana. Essas transformações enganam ou matam demônios, vilões e outras forças perturbadoras. Eles também ajudam a apaziguar os amantes, reconciliar diferenças cósmicas e unir diferentes escolas teístas. Mas quando a transgenereidade não serve ao dharma, quando se opõe aos deuses (Adi), irrita os sábios (Shamba) e enfurece as mulheres (irmão de Santoshi), significa a desgraça e até anuncia o caos e a anarquia. Esta é a mensagem transmitida através de contos em que os homens se disfarçam de mulheres.
NOTAS:
1. Information from a Web site on Tirumala-Tirupati, <http://www.tirupati.org>.
2. Ambalal, Amit. Krishna As Srinathji. Ahmadabad, India: Mapin Publishing Pvt. Ltd., 1995, p. 160.
3. Walker, Benajmin. God. In Hindu World, Volume 1. New Delhi, India: Munishiram Manoharlal Publishers Pvt. Ltd., 1983, pp. 393-397.
4. Flood, Gavin. An Introduction to Hinduism. New Delhi, India: Cambridge University Press, 1998, pp. 17-21.
5. Ramakian [Ramayana]. The Government Lottery Office of Thailand, 1995.
6. O’Flaherty, Wendy Doniger. The Origins of Evil in Hindu Mythology. New Delhi, India: Motilal Banarsidass Publishers Pvt. Ltd., 1988.
7. Hindu World, Volume 1, pp. 252-255.
8. Information from a Web site on the goddess Shri Mahalasa Narayani, <http:// www.mahalasa.org>.
9. Doniger, Wendy. Splitting the Difference. New Delhi, India: Oxford Univer- sity Press, 2000, p. 265.
10. Bhoothanadha Puranam quoted m the Web site <http://www. saranamayyappa.org/harikochat3.htm>.
11. Information from a Web site listing temples of Ayyappa, <www.ayyappan- ldc.com/indexl.html>.
12. Information from a Web site on Ayyappa, <http://www.ayyappan.com/history/>. 138 THE MAN WHO WAS A WOMAN
13. Varma, Pavan K. Krishna, the Playful Divine. New Delhi, India: Penguin Books, 1993.
14. Hartsuiker, Dolf. Sadhus, Holy Men of India. London: Thames and Hudson, 1993, pp. 58-59.
15. Bhandarkar, Ramkrishna Gopal. Vaisnavism, Saivism and Minor Religious Sytems. New Delhi, India: Asian Educational Services, 1983, p. 122.
16. Devi, Shankuntala. The World of Homosexuals. New Delhi, India: Bell Books, 1978, pp. 145-147.
17. Kinsley, David. Radha. In Hindu Goddesses, Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition. New Delhi, India: Motilal Banarsidass Publishers Pvt. Ltd., 1987, pp. 81-94.
18. Ibid., pp. 81-94.
19. C.S. Lakshmi heads an organization called SpmTow, which compiles oral histories of Indian women.
20. Niklas, Ulrike. The Mystery of the Threshold: “Ali” of Southern India. A documentary project in collaboration with Pondicherry University (Indo-German Project of Cultural Anthropology) with the support of Deutscher Akademischer Austavschdienst (DAAD). A Preliminary Account reported in <http://www.rrz.uni- koeln.de/phil-fak/indologie/kolam/kolaml/alieng.html>.
21. Kinsley, David. Village Goddesses. In Hindu Goddesses, Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition. New Delhi, India: Motilal Banarsidass Publishers Pvt. Ltd., 1987, pp. 197-208.
22. Walker, Benajmin. Aeons. In Hindu World, Volume 1. New Delhi, India: Munishiram Manoharlal Publishers Pvt. Ltd., 1983, pp. 6-9.
23. Sen, Makhan La!. The Ramayana ofValmiki. New Delhi, India: Munishiram Manoharlal Publishers Pvt. Ltd., 1978, p. 322.
Icaro Aron Soares, é colaborador fixo do projeto Morte Súbita, bem como do site PanDaemonAeon e da Conhecimentos Proibidos. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares e @conhecimentosproibidos.
Alimente sua alma com mais:
Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.