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por Raph Arrais
No sudoeste da França, no topo de uma colina arborizada, em torno de cinquenta quilômetros a leste de Bordeaux, há um castelo de pedras amareladas e telhado vermelho. Foi lá que Michel Eyquem de Montaigne nasceu (em 1533), residiu e morreu (em 1592, aos 59 anos).
A propriedade foi adquirida pelo seu avô, que atuava no ramo da pesca, em 1477. Mais tarde, seu pai adicionou algumas alas ao castelo e expandiu sua área de cultivo agrícola. Aos 35 anos, Montaigne tornou-se responsável pelo castelo, embora tivesse pouco interesse pela administração dos negócios familiares, e não entendesse praticamente nada de agricultura. Apesar de ter esposa, filha e um séquito de criados convivendo na mesma propriedade, ele preferia passar boa parte de seu tempo em uma biblioteca circular no terceiro e último andar de uma das torres laterais do castelo. Ela continha em suas prateleiras cerca de mil volumes de filosofia, além de algumas máximas (frases curtas) filosóficas que ele mandou gravar nas ripas de madeira do teto. Ademais, uma cadeira, uma escrivaninha e três janelas com vista para a natureza da região. Este era o seu mundo, e foi nele que encontrou forças para escrever seus Ensaios.
Montaigne viveu em plena Renascença, que marcou um grande reencontro da cultura europeia com os clássicos da Antiguidade. Através de um grande esforço de seus pais e preceptores, ele havia sido alfabetizado em latim, de modo que desde a tenra infância tinha mais facilidade para ler os clássicos do que os próprios livros franceses de sua época. Por volta dos sete ou oito anos, ele já havia lido As metamorfoses de Ovídio. Antes de chegar aos dezesseis, adquiriu a obra de Virgílio e passou a dominar a Eneida. Mas foi de filósofos e pensadores da Antiguidade que ele extraiu a maior inspiração para os seus escritos, particularmente das traduções recentes da obra de Platão para o latim, assim como das obras de Sêneca e Lucrécio, além da descrição de outros sábios dada em Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres, de Diógenes Laércio.
Tal como Epicuro, outro filósofo clássico, ele acreditava que a amizade era um componente essencial da felicidade humana. Durante poucos anos, ele teve a sorte de encontrar e conviver com um grande amigo. Aos 25 anos, foi apresentado a um escritor de 28 anos e membro do Parlamento de Bordeaux, seu nome era Étienne de La Boétie. Foi um caso de amizade à primeira vista: com La Boétie, Montaigne sentiu que não precisava ocultar os traços de personalidade que costumava ocultar dos demais. Em seus Ensaios, ele chegou a afirmar que apenas La Boétie “teve o privilégio de conhecer a sua verdadeira face”; isto é, ele foi a única pessoa com quem Montaigne se sentiu à vontade para falar de tudo, ou quase tudo, sem os costumeiros filtros do convívio social – particularmente entre a nobreza.
Infelizmente, tal encontro de almas foi um tanto breve. Em agosto de 1563, quatro anos após se conhecerem pela primeira vez, La Boétie caiu de cama com dores no abdômen, e morreu poucos dias depois. Montaigne passou o restante da vida buscando, sem sucesso algum, encontrar um substituto para o convívio com aquele amigo. No fim das contas, ao se retirar em seu castelo, em sua biblioteca circular, para se dedicar a escrita dos seus Ensaios, ele recriou por outros meios o verdadeiro retrato de si mesmo que La Boétie havia reconhecido. Afinal, conforme o próprio Montaigne nos comunica no início da obra, é sobre ele mesmo que ela trata.
É bem possível que Montaigne tenha começado a escrever para abrandar um sentimento pessoal de solidão, mas sua obra também serviu, de certa forma, para abrandar a solidão dos próprios leitores. Ao falar de si mesmo, da filosofia e do mundo com extrema elegância, bom senso, acidez e honestidade intelectual, Montaigne não apenas fundou um novo gênero literário (o ensaio), como demonstrou que os chamados pensadores, ou filósofos, não precisam falar somente de coisas grandiosas, muito sérias e cosmogônicas. Ele trouxe as reflexões do dia a dia para o grande palco da Filosofia, e se não conseguiu encontrar outro La Boétie enquanto vivo, na posteridade decerto fez incontáveis bons amigos: seus leitores.
A primeira edição dos Ensaios foi publicada em 1580, na cidade de Bordeaux, composta por dois livros. Após a segunda edição de 1582 e a terceira de 1587, em Paris no ano de 1588 é publicada a quinta edição dos Ensaios, já com três livros. Curiosamente, não há registros da publicação da quarta edição, mas um exemplar impresso da quinta edição contendo correções e alterações de Montaigne é conhecida como a Cópia de Bordeaux, hoje localizada na Biblioteca Municipal de Bordeaux. Com esta e as várias anotações deixadas por Montaigne, em 1595 é publicada por Marie de Gournay, espécie de discípula intelectual do autor, a primeira edição póstuma, onde ela acrescentou citações, notas e um longo prefácio; esta edição serviu como base para as diversas publicações dos Ensaios ao longo dos séculos. A edição completa traz 107 ensaios de tamanhos variados; nossa seleção traz 6 dos seus melhores ensaios, incluindo Filosofar é aprender a morrer e A amizade.
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Abaixo, trazemos na íntegra a tradução do último ensaio da edição (o mais curtinho), uma exclusividade do Morte Súbita:
Porque só devemos julgar nossa felicidade após nossa morte
Scilicet ultima semper
Expectanda dies himini est, dicique beatus
Ante obitum nemo, supremaque funera debet.
[Nunca se deve perder de vista o último dia do homem, nem declarar que alguém é feliz antes de sua morte e de seu funeral. Ovídio, Metamorfoses, III.]
Sobre este tema, as crianças conhecem a história do rei Creso. O rei, tendo sido aprisionado a mando de Ciro, também foi condenado à morte. Então, enquanto aguardava a execução, gritou: “Ó Sólon, ó Sólon!”.
Bem, isso foi informado a Ciro, e este, ao perguntar a Creso o que a frase queria dizer, ouviu que Creso passou a concordar com Sólon, que o tinha avisado de que os homens, seja qual for sua boa sorte na vida, não podem se considerar felizes até ver passar o seu último dia de vida, por conta da incerteza e da instabilidade das coisas humanas, que se movem, tão somente com um pequeno empurrão, de um estado a outro – muito diverso do anterior.
Foi também por isso que Agesilau respondeu dessa forma a alguém que havia declarado o rei da Pérsia feliz por ter alcançado um cargo tão poderoso sendo ainda tão jovem: “Sim, mas Príamo não era infeliz quando tinha a mesma idade”. Da mesma forma, os reis da Macedônia, sucessores do grande Alexandre, vieram a ser marceneiros e escrivães em Roma. Os tiranos da Sicília, por sua vez, acabaram como professores nas escolas de Corinto. E Pompeu, conquistador de meio mundo e chefe de tantos exércitos, tornou-se um fornecedor miserável para oficiais corruptos de um dos reis do Egito – esse foi o custo de mais cinco ou seis meses de vida. E também, na época de nossos pais, Ludovico Sforza, o décimo duque de Milão, cidade que foi por tanto tempo a força motora da Itália, morreu como prisioneiro em Loches – e isso após ter vivido dez anos aprisionado, o que foi sem dúvida a pior parte do seu destino. A mais bela das rainhas, viúva do maior dos reis da cristandade, não terminou morrendo pelas mãos de um carrasco?
Ora, tais exemplos existem aos milhares. Isso porque a mim me parece que, tal como as chuvas e as tempestades se chocam contra o orgulho e a altura de nossos prédios, lá no alto também existem espíritos invejosos da grandeza que existe cá embaixo.
Usque adeo res humanas vis ábdita quaedam
Obterit, et pulchros fasces saevasque secures
Proculcare, ac ludibrio sibi habere videtur.
[Tanto é verdade, que uma força secreta esmaga as coisas humanas, e parece ter prazer em pisar os nobres soldados e os machados sangrentos. Lucrécio, V (os soldados e os machados simbolizavam Roma).]
Parece que a sorte espera justamente o último dia de nossa vida para nos emboscar e demonstrar seu poder de transformar num momento tudo o que ela construiu através de longos anos, e assim nos impelir a gritar, como Labério:
Nimirum hac die uma plus vixi, mihi quam vivendum fuit.
[Certamente eu vivi este dia por tempo demais. Macróbio, Saturnais, II.]
Daí podermos acatar, com razão, o conselho de Sólon. No entanto, ele mesmo era um filósofo; e, como tal, os favores e as desgraças da sorte não eram considerados nem alegrias nem infelicidades. Assim, como para ela as grandezas e potências eram acidentes mais ou menos sem importância em nossa vida, creio que seja possível que ele estivesse olhando mais adiante, e quisesse dizer que a alegria em nossa vida – que depende da tranquilidade e do contentamento de uma mente bem-nascida e da resolução e da firmeza de uma alma disciplinada – nunca deve ser atribuída a um homem, a não ser no último ato de sua vida: sem dúvida, o mais difícil.
Em todo resto, ele pode vestir uma máscara. Os belos discursos da filosofia podem ser somente uma imagem, e os acidentes, quando não nos pegam de surpresa, nos permitem manter um semblante sereno. No entanto, na última cena, a que se encena entre nós e a morte, já não há mais como fingir. Então temos de falar de modo bem claro, e mostrar o que há de bom e correto no fundo de nós mesmos.
Nam verae voces tum demum pectore ab imo
Ejiciuntur, et eripitur persona, manet res.
[Então, por fim, palavras sinceras brotam do fundo do coração. A máscara cai, e resta o homem. Lucrécio, III.]
É por isso que todas as demais ações de nossa vida devem se relacionar com essa cena derradeira. É o dia principal, o dia que julga todos os outros. “É o dia”, diz um escritor antigo, “que julgará todos os meus anos passados”. Assim, a análise do fruto dos meus estudos se encontra adiada até a minha morte. Neste dia, veremos se minhas palavras vão sair da boca ou do coração.
Vi muitos darem uma boa ou má reputação a sua vida inteira por conta de sua morte. Cipião, sogro de Pompeu, em sua morte mudou a opinião ruim que todos tinham dele até ali. Epaminondas, ao ser indagado se gostava mais de Chabrias, Ifícrates ou dele próprio, respondeu: “Antes de decidir, é preciso ver como será nossa morte”. E é verdade que seria injusto julgar a vida de Epaminondas sem levar em consideração a honra e a grandeza de seu fim. Deus age de acordo com sua vontade; todavia, no meu tempo, as três pessoas mais execráveis que conheci, que tiveram vidas abomináveis e infames, tiveram mortes regradas e decentes, sob todos os aspectos.
Há mortes gloriosas, e até mesmo afortunadas. Eu vi a morte interromper, na flor da idade, a existência de alguém que estava na via de realizar as mais admiráveis ambições. Mas o seu fim foi tão honrado que, em minha opinião, suplantou em beleza todos os seus projetos. Morrendo, ultrapassou de modo mais grandioso e glorioso tudo o que aspirava em vida, e a sua reputação de fato tornou-se maior do que ele jamais poderia sonhar.
Ao julgar a vida de outra pessoa, sempre verifico como ela se portou no fim. E, quanto a minha morte, me esforço para que ela possa ser suportada com dignidade, isto é, que seja tranquila e silenciosa.
(trad. Rafael Arrais)
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Obs.: Texto destinado ao site Morte Súbita inc.
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