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Mary Butts: A Deusa da Tempestade

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Por Phil Hine

“Tenho uma queda por Queer Street[1], e pessoas que têm isso  ficam logo surpresas com qualquer coisa.”
– “Imaginary Lettersicam”, Ashe of Rings and Other Writings

“Estas semanas fui impedida de querer uma fórmula. Esses livros, um ocultismo com suas palavras bastardas, credulidades, falsidades sobre fatos, emoções e falsidades estéticas, revoltam-me interiormente. Os símbolos, exceto quando eram puramente numerais e abstratos, pareciam correspondências medíocres. Então voltei em uma curva repentina. Lembrei-me dos “Prolegômenos[2]” e dos outros, o estudo mais profundo da minha adolescência – cultos misteriosos da Trácia a Elêusis. Lembrei-me das “Bacantes”. Aí estão minhas fórmulas, aí estão minhas palavras de poder. Estou relendo os “Prolegômenos” – desenrola-se diante de mim em caligrafia simples (ainda mais porque foi escrito por uma mulher, sem nenhuma tese mágica a provar). Lá encontrarei o caminho.”
– Anotação do diário, 21 de abril de 1920.

Às vezes, as peças que planejei escrever para este blog simplesmente não parecem se encaixar. O que parecia uma boa ideia há dois meses agora parece plano e sem vida. Meu entusiasmo pelo ensaio ‘x’ voou para longe – e qualquer um que tenha lido os meus artigos regularmente saberá que tenho várias séries de artigos não totalmente concluídos por aí. Voltarei a eles um dia, ou assim continuo dizendo a mim mesmo.

O plano alternativo é examinar minhas inúmeras pastas de ‘escrita’ e ver o que aparece. Outro dia encontrei uma coleção de anotações e arquivos relacionados em uma pasta chamada “Mary Butts 2013”. Parece que há apenas oito anos eu planejava escrever algo sobre Mary Butts, uma romancista e mágica cuja vida e obra sempre me interessaram, e que eu sinto que poderia receber mais reconhecimento e atenção por parte dos ocultistas contemporâneos . Daí este post, uma breve introdução à vida e à carreira literária de uma das mais extravagantes praticantes do ocultismo do século XX, de quem o compositor Virgil Thomas disse que ela era capaz de “incitar os outros com bebidas, drogas e encantamentos mágicos”, chamando-a de: “a deusa da tempestade.”

Quem, então, era Mary Butts? Romancista modernista, poetisa, ensaísta, mágica, boêmia, bissexual – ela se casou duas vezes, mas teve vários casos amorosos com mulheres e homens. Uma diarista ávida e diligente, seus diários começaram em 1916 e continuaram quase até sua morte. Ela nasceu em Dorset em 1890 e morreu na Cornualha em 1937. Ao longo de sua carreira, ela publicou 3 romances, 3 coleções de contos, uma novela, poesia, 2 narrativas históricas, dois panfletos, vários ensaios, uma autobiografia parcial , e um grande número de comentários. Seu trabalho foi elogiado e admirado por contemporâneos como E. M. Forster, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald, Marianne Moore, Charles Williams e Virginia Woolf.

Sua infância foi passada em Salterns, uma grande casa perto de Parkstone, em Dorset. Seu bisavô, Thomas Butts, tinha sido o patrono de William Blake, e Saltern continha 34 obras de Blake. Estes foram vendidos por sua mãe em 1906 para cobrir os impostos sucessórios – o que Mary se ressentiu amargamente. De seu pai, ela ganhou um amor duradouro pelos mitos gregos e um amor intenso pelo campo inglês. Sua infância foi, como ela escreveu em sua autobiografia publicada postumamente, “The Crystal Cabinet (O Armário de Cristal)”, “saturada com as artes”.

Foi em 1906 que seu primeiro poema (“The Heavenward Side, O Lado Celestial”) e um ensaio foram publicados por um periódico chamado “The Outlook, O Panorama”. De Salterns, Mary escreveu mais tarde:

“…em Salterns, no alvorecer da minha vida, Poder e Beleza caminharam nus por East Dorset, lado a lado. Deite-se para dormir juntos como deuses em Purbeck, erguidos do mar banhado pela aurora.” [3]

Em 1909, Mary matriculou-se no Westfield College, na Universidade de Londres. Em 1912 ela foi expulsa depois de ter ido para Epsom Races na companhia de uma professora, Gwen Ingrams, com quem havia pernoitado no dia anterior. É possível que Mary tenha tido um caso com Ingrams, ou que seus sentimentos em relação à professora não tenham sido correspondidos, como sugere um poema de 1912:

You're poor, she's poorer, and you're both alone.
She's the utmost pain and glory of your life,
You'd give her bread and all she asks a stone,
And tries to cut your love out with a knife."

“Você é pobre, ela é mais pobre e vocês duas estão sozinhas.
Ela é a maior dor e glória da sua vida,
Você daria a ela pão e tudo o que ela pede é uma pedra,
E tenta cortar seu amor com uma faca.”

Durante a década de 1910, Mary escreveu uma série de poemas com temas sáficos, alguns sob o pseudônimo de Mark Bacon Drury (ainda não publicados) e em 1916 ela também escreveu um romance intitulado “Unborn Gods (Deuses Não Nascidos)” – um triângulo amoroso entre um homem e duas mulheres, que tratou abertamente sobre homossexualidade, incesto, abortos e casos extraconjugais. Sem surpresa, ela não conseguiu encontrar um editor disposto a publicar o romance durante sua vida, e ele permanece inédito até hoje.

Em 1913 ela escreveu um poema de amor dedicado “a Hal” (seu primeiro amante masculino) intitulado Dionysiac (Dionisíaco). Aqui estão as 2 últimas estrofes:

"Child of the mysteries am I my Lord,
The cup wherein a strange God's wine is poured,
A winnowing-fan, a thyrsos, and a sword.

I am your Wife, who once initiate,
To Dionysos priestess consecrate
May know not fear or scorn or pride or hate."

“Filha dos mistérios eu sou meu Senhor,
O cálice onde é derramado o vinho de um Deus estranho,
Um leque, um tirso e uma espada.

Eu sou sua esposa, que uma vez iniciada,
À sacerdotisa de Dionísio consagra
Poder não conhecer o medo, o desprezo, o orgulho ou o ódio.”

Em 1914 ela se formou na London School of Economics com um Certificado de Ciências Sociais, e começou a trabalhar no East End de Londres no Children’s Care Committee (onde conheceu a pintora Stella Bowen) e mais tarde para o National Council for Civil Liberties, que apoiou “ Objetores de Consciência” que resistiram ao recrutamento militar. Foi também em 1914 que ela conheceu sua amante, Eleanor Rogers. Eles tiveram, pela leitura dos diários de Mary, um relacionamento tempestuoso e difícil. Mary era uma pacifista e apoiava as “conchies” como eram zombeteiramente conhecidas; enquanto Eleanor (de acordo com Mary) acreditava que qualquer um que não apoiasse a guerra deveria ser privado de direitos.

Em 1916, quando Mary começa seus diários aos 25 anos, ela está morando em Hampstead com Eleanor, mas se correspondendo diariamente (e se apaixonando por) John Rodker, um escritor que, na época, se escondia das autoridades como objetor de consciência. As anotações do diário de Mary descrevem com eloquência suas tentativas de equilibrar seus dois relacionamentos:

“Eu tento e me convenço de que o amor de John vai durar. Não vai, não deveria, mas eu quero muito. Às vezes Eleanor é menos importante que a ponta de uma agulha, às vezes ela me ofusca como o próprio céu.

Mary se casou com John Rodker em 1918. Em 1920, ela deu à luz uma filha, Camilla, momento em que o casamento já estava naufragando. Ela se separou de Rodker logo depois, e eles se divorciaram formalmente em 1927. Rodker é mais conhecido por sua pequena editora, The Ovid Press, publicando T.S. Eliot, Ezra Pound e desenhos de Wyndham Lewis. Após o fim da Ovid Press, Rodker publicou textos ocultos como o “Malleus Maleficarum, O Martelo das Feiticeiras” e “A Descoberta da Bruxaria”.

O interesse de Mary pelo ocultismo parece ter aumentado em 1919. Uma entrada no diário de junho registra seus pensamentos sobre a tradução de Waite de A história da magia de Levi. Nessa época, ela era amiga do compositor e mágico Philip Heseltine – também conhecido como Peter Warlock (1894-1930), a quem ela credita por encorajá-la no estudo da magia. Ao longo de seu diário de 1920, há muitas referências a seus interesses ocultos – como praticar a escrita automática e ler O Livro da Magia Sagrada de Abramelin. Foi também em 1920 que ela começou um caso com Cecil Maitland, e uma anotação de 29 de março de 1920 relata um tipo de ritual de “casamento mágico” entre os dois:

“Eu o fiz buscar uma navalha de milho e cortei uma cruz em seu pulso e no meu. 3 cortes para cada na minha ânsia de tirar sangue. Chupamos os cortes um do outro e os beijamos, e deitamos lambendo nossos próprios pulsos.

Agora, com isso – não há mais ritual do que eu disse, risadas mascarando ansiedade – algo estalou – algo que não era arbitrário, ‘não da vontade da carne’. Tive certeza da realidade de nossa associação.”

Em 7 de março de 1921, enquanto em Paris Maitland, Mary conheceu Aleister Crowley e parece ter recebido iniciação dele na O.T.O alguns dias depois. O registro de seu diário de 15 de março diz:

“Nenhum sucesso com o aterial recibo de Crowley para ir para o plano astral. Mas quando escrevo ou me comovo de certas maneiras oblíquas, faço isso inevitavelmente.”

Em sua entrada de 19 de abril, ela lista o que gostaria de realizar com sua prática mágica, incluindo:

“I. Eu quero estudar e aproveitar e entrar, se puder, no mundo das fadas, no mundo mitológico e no mundo das boas histórias de fantasmas. Eu as faço aparecer como três triângulos se movendo em um círculo.

II. Eu quero, por meio de várias práticas e estudos místicos, produzir minha verdadeira natureza e ampliar minhas percepções.

III. Não quero apenas encontrar minha Verdadeira Vontade, quero realizá-la. Então eu quero aprender como formar um elo mágico entre mim e os fenômenos que me interessam.

V. Quero fazer deste mundo o material para a arte de escrever.

VII. Quero escrever um livro não apenas sobre a teocracia primitiva e a queda do homem (os ocultistas mais respeitáveis ​​falham aqui, como Stanislaus de Guaita), mas um livro escrito sobre esse assunto, historicamente sob os termos da falibilidade humana sem a deificação de Pitágoras ou dos escritores da Cabala. Um livro sem bailes sobre segredos ou zombaria dos não iniciados. Acima de tudo, sem adoração do passado. Um livro para mostrar a relação da arte com a magia e mostrar o artista como o verdadeiro, porque é  oblíquo, o adepto.”

Em junho, Mary e Maitland se juntaram a Aleister Crowley em Cefalu para o que viria a ser uma estada de dez semanas. Durante seu tempo em Cefalu, ela editou seu romance, Ashe of Rings, experimentou uma variedade de drogas e se comprometeu a seguir o regime de exercícios mágicos de Crowley. Seu diário registra algumas de suas viagens astrais enquanto estava em Cefalu, e em agosto, que ela estava lendo o manuscrito de Crowley de Magick in Theory and Practice (Mágicka em Teoria e Prática). Crowley, em suas Confissões, comentou que

“mostrei os manuscritos [do livro “Mágicka”] para Sóror Rhodon [Mary Butts] e pedi a ela para criticá-lo minuciosamente. Sou extremamente grato a ela por sua ajuda, especialmente ao indicar um grande número de assuntos que eu não havia discutido. Por sugestão dela, escrevi ensaio após ensaio para cobrir todas as fases do assunto. O resultado foi a expansão do manuscrito em um vasto volume, um tratado completo sobre a teoria e prática da Mágicka, sem nenhuma omissão.” [4].

De acordo com Nathalie Blondel, Mary ficou cada vez menos encantada com Crowley durante sua estada em Cefalu. Qualquer conhecimento que ela sentisse que ele possuía não era compensado pelas condições de vida, que ela considerava terríveis. Ela fez várias sugestões, como a instalação de instalações sanitárias adequadas, já que a Abadia de Thelema carecia de detalhes como banheiros. Quando ela e Maitland deixaram Cefalu em 16 de setembro, ela havia decidido que aqulio era uma “farsa” e que

“preferia ser a escritora que sou capaz de me tornar do que uma adepta iluminada, mágica, magus, mestre deste templo ou de outro.”

O registro de seu diário em 11 de janeiro de 1922 – época em que ela estava de volta a Londres, diz:

“Mas eu vi em Cefalu as características familiares da religião voltarem. E obscenidade. E algo excessivamente mal (não obsceno) e algo poderoso. Faze o que tu queres será tudo da lei. Tudo bem. Mas as pessoas feitas cientes disso pelo medo, suborno, coerção, etc., um movimento religioso reencenado. O fundador será Crowley e suas mulheres enganadas e dopadas. Não duvido que a maioria das novas religiões teve esse começo, mas sinto que até Maomé era melhor.”

Alguns anos depois, em 1925, Mary tentou resumir seus anos de estudo e prática ocultista:

“Cinco anos atrás, pela primeira vez, fiquei ansiosa para fazer um estudo dos fenômenos que sentia não serem explicáveis ​​por leis físicas compreendidas – dato esse desejo consciente de meu primeiro contato com Cecil Maitland, embora anteriormente eu tivesse estudado ‘ocultismo’ e o achasse emocionante, mas insatisfatório, um labirinto de becos sem saída. Fiz várias tentativas, scrying (vidência), escrita automática, li sobre espiritismo, cultos misteriosos, algo sobre neoplatonismo e nenhuma conclusão. Crowley, se  fez alguma coisa, teria me convencido de que não havia nada nisso. Depois de cinco anos, & ultimamente não tenho me interessado tanto, percebo que observei, durante toda a minha vida, uma série de fenômenos, nem todos subjetivos nem tecnicamente relacionados aos problemas, mas que agora acredito fazer parte de uma corrente  embora a conexão entre elas não seja clara. Eles ainda são inconclusivos, apenas observações e as observações podem ser fornecidas incorretamente, mas é impossível realizá-las sem emoção, pois agora sei que são os eventos cardeais da minha vida.

O estágio a que cheguei é conectar esses eventos entre si e chegar a uma teoria para eles. Não tenho dúvidas sobre eles (como poderia ter duvidado se tivesse visto um ‘anjo’ na bola de vidro azul) e minha percepção veio lentamente como um crescimento na natureza, não por uma tentativa de bisbilhotar.”

Mary Butts parece, a essa altura, ter abandonado o projeto da prática mágica e, em vez disso, decidiu infundir suas ideias e experiências mágicas em sua escrita.

E é aí que vou deixar isso (pelo menos por enquanto). Quem quiser ler mais sobre a extravagante carreira literária e mágica de Mary Butts deve consultar os textos originais abaixo.

Fontes:

  • Nathalie Blondel, Mary Butts: Scenes from the Life (McPherson & Company, New York, 1998)
  • Nathalie Blondel (ed), The Journals of Mary Butts (Yale University Press, New Haven and London, 2002)
  • Mary Butts, The Crystal Cabinet: My Childhood at Salterns (Beacon Press, Boston, 1988)
  • Laura Doan and Jane Garrity (eds) Sapphic Modernism: Sexuality, Women and National Culture (Palgrave MacMillan, New York and Basingstoke, 2006)
  • Christopher Wagstaff (ed), A Sacred Quest: The Life and Writings of Mary Butts (McPherson & Company, New York, 1995)
  • NB: Scenes from the Life, The Crystal Cabinet, and A Sacred Quest are all available through the “books to borrow” option of archive.org. Editions of some of Mary Butt’s novels, short stories and essays are published by McPherson & Company

Notas:

[1] Queer street é um termo coloquial que se refere a uma pessoa que está em alguma dificuldade, geralmente financeira. É frequentemente associado à Carey Street, onde ficavam os tribunais de falências de Londres.

[2] Prolegomena to the Study of Greek Religion escrito por Jane Ellen Harrison em 1908)

[3] Butts, 1998, p22.

[4] The Confessions of Aleister Crowley, ed. John Symonds & Kenneth Grant, Bantam Books, 1971.

Fonte: http://enfolding.org/introducing-mary-butts-storm-goddess/

Texto enviado por Ícaro Aron Soares. Revisão Thiago Tamosauskas


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