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Lucas Oltmann de Oliveira
“Se a fêmea não tivesse se separado do macho, ela e o macho não morreriam. A separação deste ser tornou-se fonte da morte. O Cristo veio para retificar a separação que tinha estado presente desde o princípio e unir os dois componentes; e dar vida àqueles que tinham morrido pela separação, e juntá-los. Ora, a mulher se une ao seu marido no Quarto Nupcial, e aqueles que se uniram no Quarto Nupcial não se separarão de novo. Assim Eva tornou-se separada de Adão porque não foi no Quarto Nupcial que se uniu a ele.”
(EVANGELHO SEGUNDO FELIPE, 70)
Um dos sacramentos mais importantes da literatura gnóstica universal – o da Câmara Nupcial – aparece como central na obra “O Demônio do Deserto”, sendo o local cósmico em que se desenvolve a experiência de Ashurmani-pá (União Mística) da protagonista Innana e de seu consorte divino (O Profeta de Abrukir). No desenvolver da história, Innana é compelida – pelo contato com o demoníaco, personificado em Haru-da (O Demônio do Deserto) – a entrar em contato os aspectos eróticos-desejantes da sua personalidade. É o contato com a natureza erótica do ser, com a sexualidade em seu nível mais intrínseco, que despertará Innana para a experiência do sagrado, para a imersão meditativa no transcendente. O erotismo é, em O Demônio do Deserto, a porta de entrada para a experiência do Self, para a reintegração da divindade na personalidade, para o mesclar-se do eu na identidade profunda do Eu.
Eros, o desejo erótico, entendido enquanto desejo-pela-união, passa a se mostrar enquanto um dos mecanismos de ação da divindade na sua busca por unificar-se: o desejo erótico é entendido enquanto uma imagem do desejo da alma por unir-se novamente ao seu princípio, por reintegrar-se na totalidade divina. A repressão à sexualidade, neste aspecto, é manifestada enquanto uma restrição às potencialidades mágicas do eu, como um entrave à imersão unificadora da experiência espiritual. O desejo por unir-se ao divino é uma forma de libido transcendental: o(a) aspirante espiritual almeja entregar-se eroticamente ao Bem-Amado, à experiência transcendental da realização última.
O local simbólico em que este estado unitivo é alcançado, por este motivo, não poderia ser outra coisa além de uma Câmara de Núpcias: leito da consumação do casamento da alma com sua essência. A alma é apresentada na Câmara Nupcial como a Noiva, prestes a ser fecundada pelo potencial criativo do Espírito, o Noivo Celeste que, depois de tanto almejar o reencontro com sua alma perdida, agora se deleita na consumação da Núpcia Sagrada. Este estado, expressão máxima da união do particular com o universal, do profano com o sagrado, do humano com o divino, é capaz de dar à luz – para usar a metáfora da fecundação e do nascimento – a um ser espiritual, o Gahomenym, personificação da natureza não-dual da Iniciação.
O Gahomenym, entendido enquanto o filho que emerge das núpcias da consciência egóica com a divindade, constitui um estado para além de qualquer dualidade – é a manifestação concreta de uma vida que é simultaneamente sagrada e profana, divina e humana, masculina e feminina, consciente e inconsciente. Em Gahomenym, o espírito se torna matéria e a materialidade é espiritualizada; o eu se mescla com o não-eu, atingindo a universalidade, que se particulariza na individuação dos sujeitos conscientes; tudo aquilo que era profano se converte em sacralidade e vice-versa. As dualidades que constituem o mundo são suspensas: anjos e demônios passam a manifestar o mesmo ser; as alturas e as profundezas coincidem; o pecado e a redenção se apresentam como o mesmo fenômeno.
Para além do livro, relacionando O Demônio do Deserto ao ocultismo contemporâneo, o estado de consciência personificado por Gahomenym pode ser comparado à fórmula da Criança Coroada e Conquistadora, força hierofântica por detrás da Lei de Thelema. Na leitura que aqui proponho, o Éon de Hórus, longe de se constituir enquanto uma era historicamente e temporalmente determinada, é compreendido enquanto manifestação pura do estado não-dual representado pela Criança (Gahomenym), quando os atributos duais da realidade são diluídos em um tipo de experiência de mundo que transcende os binômios sagrado-profano, bem-mal, eu-outro, espírito-matéria, criador-criatura.
A Câmara Nupcial partilhada entre Innana e o Profeta de Abrukir, sendo o espaço mítico e simbólico onde esta união acontece, pode ser interpretada como uma representação imagética do Conhecimento e Conversação com o Santo Anjo Guardião, seu hieróglifo literário, encarnado nas descrições de “O Demônio do Deserto”. A experiência ritual descrita no Livro de Abramelin, no qual o eu se une consciente ao seu Anjo, pode ser assim compreendida como o itinerário para a Câmara Nupcial, para o ato sacramental que acontece no leito do Santo Anjo Guardião. É a produção da experiência ultimal da Iniciação: a reintegração com o Esposo, do deixar-se ser fecundado pelas Sementes da Divindade, para a fecundação e a encarnação, no mundo, de um novo Gahomenym.
Para fazer nascer um Novo Éon: o Reino da Criança Divina entronada no Leste, para além de toda contradição.
In Nomine Babalon et Gahomenym,
Lucas Oltmann de Oliveira (@odemoniododeserto) é escritor, historiador e professor. Autor dos livros “A Festa das Máscaras” e “O Demônio do Deserto“.
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