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por Sar Naquista
“o homem é masculino por fora e feminino por dentro; a mulher é feminina por fora e masculina por dentro”
– Carl Gustav Jung
Dentro do martinismo e outras correntes esotéricas o mito da androginia original simboliza a perda da harmonia entre a natureza divina e a natureza terrestre e a ruptura da unidade interior em prol de uma vivência de dualidades. Por isso Louis-Claude de Saint-Martin, assim como muitos alquimistas antes dele, insistia no ponto básico de que devemos reconciliar estas realidades por meio do Casamento Alquimico, a consagração de nosso corpo e vida mundanos à nossa vida interior e assim restaurar a separação entre o espiritual e o material, entre o macrocosmo e o microcosmo.
O Não-Binário Sagrado
O conceito de androginia sagrada é tão antigo quanto a narrativa bíblia, na qual encontramos duas narrativas da criação do ser humano.
Em Primeiro em Gênesis 1:27 lemos
“E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.”
Porém em Gênesis 2:7 encontramos
“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.”
Segundo Filon de Alexandria, Máximo, o Confessor e Gregorio de Nisse e outras autoridades da igreja primitiva a razão para isso é que Adão foi originalmente criado sem divisão (homem e mulher ele os criou) e só posteriormente dividido em homem e mulher, mas que originalmente era ao mesmo tempo macho e fêmea. A etimologia grega para “andrógino”, significa justamente isso homem + mulher (andres+gunê). Adão é apresentado como inicialmente andrógino também no Midrashim “Bereshit rabba“ em diversos escritos gnósticos e tardiamente em tratados cabalistas como o e Leão, o Hebreu.
O tema é quase onipresente nas gravuras e literatura alquímica de todos os séculos. A própria Pedra Filosofal é frequentemente descrita como uma figura que reúne em si as qualidades do homem e da mulher em um mesmo ser coeso. Algumas vezes é usado o termo “hermafrodita”, mas é necessário um esclarecimento aqui. Ovídio em “Metamorfoses”, provavelmente o clássico romano mais influente na alquimia descreve história do personagem Hermafrodite, cujo nome deve ao seu pai Hermes e sua mãe Afrodite. Um dia, Hermafrodite se banhava em uma fonte quando foi visto e cobiçado por Salmácis uma ninfa apaixonada que desejou unir-se a ele, literalmente. A diferença entre o hermafrodita de Ovídio e o hermafrotia alquímico-martinista é que o primeiro nasceu dividido e se tornou uno enquanto que o primeiro é um ser que desde sua origem possui ambas as polaridades e do qual o homem e a mulher representam um afastamento.
Lemos mais sobre esta questão no “Banquete” de Platão, dentro do discurso de Aristófanes. Em sua alegoria feita a Sócrates, ele explica que o amor humano tem sua fonte seres que eram originalmente unos, perfeitos e coesos e dotados de um pode extraordinário. A história é muito semelhante ao mito da Torre de Babel pois estes seres andróginos eram tão fortes e poderosos que queriam empilhar montanhas para alcançarem a morada dos deuses. Quando Zeus percebeu isso, decidiu enfraquecê-los, separando em seres com natureza masculina e feminina. E como na torre de Babel cada um começou a não entender mais a linguagem e a natureza dos outro. Por fim Platão esclarece que a saudade deste unidade e o desejo de reestabelecer essa natureza perdida fez nascer no ser humano o desejo por união. Segundo Platão, é Eros, o deus do amor, a única divindade que permite que esta união entre as duas metades. Assim, a recuperação deste estado primordial de felicidade passa antes de tudo por rejeitar a arrogância e a impiedade que causaram a separação para começo de conversa.
Já no século IX, o teólogo e filósofo neoplatonico, Scot Érigène sugere que a divisão do Adão Andrógino original em macho e fêmea é uma das consequências nefastas da Queda, primeiro da Criação como um todo e em seguida do ser humano. E que a Reintegração do Adão Primordial iniciará um processo que seria seguido por toda a natureza e um retorno de todos os seres na Unidade Divina.
Mais recentemente foi Carl Gustav Jung que deu ar de modernidades ao assunto ao considerar que o psiquismo humanos tem uma parte masculina, que ele chamou de “Animus’, e uma parte feminina, chamada ‘Anima’. Para ele, todo homem leva dentro de si a imagem da mulher arquetípica e toda mulher traz consigo a imagem do homem eterno. Esta imagem não se refere a esta ou aquela pessoa, mas sim a imagem bem definida e inconsciente que projetamos sobre a pessoa amada. Segundo sua teoria no caminho da individuação, uma das etapas mais importantes é encontramos essa imagem dentro de nós mesmos promovendo assim a conjunção entre estes dois lados, ou seja entre as duas naturezas opostas em cada um de nós.
Androginia Martinista
Falando especificamente de Martinismo, a noção de Androginia Sagrada não aparece com todas as palavras no trabalho de Martinès de Pasqually. Contudo o “Tratado da Reintegração” ensina que Adão era um ser puramente espiritual e portanto não podia ser nem macho nem fêmea. Segundo o tratado as características sexuais só surgem após a queda no mundo material quando então surgiram as manifestações corporais de ‘macho’ e ‘fêmea’.
É entretanto na obra de Jacob Boehme que a ideia de androginia está mais presente. No livro “A Eleição da Graça”, ele ensina que
Adão “era uma imagem muito bonita, clara e cristalina, nem homem, nem mulher, mas os dois reunidos, como se fosse uma virgem viril. ” (Cap. V, p. 84).
Ao ser colocado no Éden Adão ficou fascinado pelo mundo material e então projetou seu próprio pensamento na natureza, o que lhe provocou uma profunda inquietação e atração pelo estado material. A consequência inevitável deste processo foi o desejo de provar o fruto proibido. Para sua proteção Deus então o coloca em um torpor profundo e o divide em duas polaridades, dois seres: um homem e uma mulher. Assim, a diferença nos ensinamentos de Jacob Boehme do que tínhamos até então é que em sua história a separação tem o objetivo de impedir a queda absoluta. Além disso ela ocorre antes do episódio do fruto proibido, geralmente considerado o grande marco da queda adâmica.
Influenciado pelos livros de Boehme, Louis-Claude de Saint-Martin falou também sobre o tema do Homem primitivo como ‘Hermafrodita’ em seus livros e nas cartas trocadas com seus alunos. Para Saint-Martin, a principal perda foi a da capacidade de gerar uma prole sozinho. Mas se fisicamente isso é impossível ao homem e a mulher, no poder do pensamento dentro de cada um de nós, o Filósofo Desconhecido enxergou este poder gerador original, o que explica por que sentimos prazer em criar coisas.
Realmente o pensamento que conserva as virtudes originais do Adão Primordial é no Martinismo uma chave para a humanidade estabelecerem ligações entre o fomos um dia e o que somos agora, ou melhor colocando, entre o que somos hoje e o que poderemos ser amanhã.
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