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Thiago Tamosauskas
“E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça.”
– Apocalipse 12:1
Em um mundo onde o fanatismo levanta muros cada vez mais altos pode parecer estranho pensar que já houveram alquimistas cristãos. Mas até o século XVI praticamente toda autoridade secular ou religiosa, inclusive os papas apoiavam ou se interessavam de uma forma ou de outra por hermetismo, astrologia ou pelo que se convencionou chamar hoje de ocultismo.
Na fase latina da alquimia que seguiu a fase islâmica, muitos grandes alquimistas eram clérigos. Roger Bacon era um frei franciscano, Basilio Valentim era cônego beneditino e Albertus Magnus era dominicano e bispo de Ratisbona. São Tomás de Aquino chegou a filosofar na Suma Teológica sobre as questões morais envolvidas no uso prático do ouro alquímico e em 1317 o papa João XXII emitiu a bula “Spondent quas non exhibent” onde fez a separação entre os alquimistas honestos e os charlatões em bisca de dinheiro fácil.
Durante toda essa fase da alquimia que persistiu até o iluminismo, a Pedra Filosofal era usualmente identificada com a própria figura de Jesus Cristo. Nada mais natural. Ambos tem o poder de transformar a matéria (chumbo em ouro, água em vinho), de curar todas as doenças e de conceber a imortalidade, mas mais do que isso, ambos representam a Grande Obra bem sucedida, a realização da consciência cósmica. Ocorre que igualar Jesus Cristo ao Azoth implica em dizer que ele precisou de um Vaso de Hermes que foi fertilizado por um raio de Sol. É fácil ver portanto, que neste sentido o Espírito Santo é o próprio Enxofre Filosófico e sua mãe, Maria, a personificação do Mercúrio Filosofal. E para conquistar a Pedra Filosofal – ou tornar-se como Jesus – é preciso primeiro trabalhar o Mercúrio, ou em termos cristãos, tornar-se como Maria, o modelo perfeito de adepto.
Isso está longe de ser uma novidade. A primeira geração de alquimistas greco-egípcios contaram com muitas figuras femininas: Maria a Judia, Paphnutia, a Virgem, Cleópatra, a alquimista, entre outras. A própria origem da alquimia é, segundo alguns relatos um presente de uma deusa, Isis, a humanidade. No tratado Core Cosmu (o 23º do Corpus Hermeticum), a deusa declara:
“Ouça com atenção, Hórus, meu filho, pois aqui eu lhe digo a doutrina secreta que meu avô Kamephis aprendeu com Hermes…. e eu de Kamephis, quando ele me honrou com o dom da negritude perfeita.”
Isis foi o modelo inicial da Madona Negra. A cor é importante, pois era uma referência a cor escura do povo e da terra de Ke-Met, nome nativo do Egito onde a antiga arte primeiro floresceu. A Madona Negra existe até hoje na forma de ícones como Santa Maria de Częstochowa, Virgem de Montserrat e aqui no Brasil como Nossa Senhora Aparecida, entre tantas outras.
Mas a partir da influência islâmica e daí para frente até o século XIX houve um predomínio de alquimistas homens. Mas independente disso a importância do elemento feminino dentro da alquimia permaneceu inalterada. A dificuldade em entender isso talvez explique porque os alquimistas islâmicos eram mais poetas do que experimentais. Por isso, quando começaram a surgir os primeiros alquimistas operativos cristãos, eles não puderam deixar e notar na figura de Santa Maria, um símbolo e um modelo bastante apropriado para o trabalho do Mercúrio. Sendo a figura feminina de maior destaque do período, a Virgem foi quem melhor oferecia um caminho para todo processo de integração masculino e feminino sem o qual o Casamento Alquímico simplesmente não pode acontecer.
Façamos aqui uma pausa para entender a importância do Mercúrio Filosofal. Trata-se de – ao lado do Enxofre e do Sal – um dos três elementos básicos que compõem a Prima Matéria. É o aspecto passivo e receptivo de tudo o que existe e que é trabalhado de uma forma ou de outra em todas as operações do alquimista. É a parte da consciência que recebe as impressões do instinto do Chumbo, acolhe as emoções do Cobre, testemunha as conclusões do Ferro e suporta os ditames do Estanho. É o Mercúrio também que, uma vez purificado recebe as impressões superiores da intuição da Prata e da inspiração do Ouro. É o ser interno que “Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”
Por essas razões as imagens marianas não são nada raras nos textos e na iconografia da alquimia latina e renascentista. Por exemplo tanto no “Utriusque Cosmi Historia” de Robert Fludd como o “Traité des figures hieróglifos d’Abraham le juif “do pseudo-Nicholas Flamel usam o tema e a iconografia da Imaculada Conceição. Já as iluminuras de “Buch der Heiligen Dreifaltigkeit” e o famoso “Rosarium Philosophorum” usam tanto a imagem da Maria apocalíptica, vestida de luz e esmagando a serpente como sua Coração Celestial pela Santíssima Trindade, um retrato da Conjunção final.
A imagem de Nossa Senhora com a Lua sob os pés e a cabeça coroada de estrelas que aparece no Apocalipse é a mesma encontrada no Tarô, ambas corredentoras e medianeiras não apenas na porta do templo mas presentes em todo processo de iniciação do batismo aos pés da cruz. Assim como o Mercúrio, ela está presente em todas as operações da manjedoura a ressurreição e não se ausenta nem mesmo aos pés da Cruz. A única exceção é talvez a tentação de Cristo no deserto, que equivale ao abismo do Secretum Secretorum, ou seja a tentação do adepto em abandonar a mística de sua vontade superior pela prática mágica de seus desejos menores. Tirando isso, Mercúrio e Maria sempre estão presentes. Fulcanelli, por exemplo, a encontra no Nigredo quando fala das estátuas de ‘Nossa Senhora Subterrânea’ como representação da matéria sobre a qual o alquimista deve trabalhar. Jean Hani a encontra no Albedo, quando em seu livro “A Madona Negra”, relaciona a dissolução que o alquimista promove em seu ego e personalidade com a humildade e submissão de Maria. o Citrinitas pode ser visto assim que Jesus nasce, pois é Maria que o leva no colo enquanto ele “crescia tanto em tamanho como em sabedoria, achando graça aos olhos de Deus e dos homens.” Por fim, na tradição do cristianismo esotérico Maria-Sophia, que recebe Sophia no dia de Pentecostes e se torna Maria Rainha dos Céus é a própria definição do Rubedo bem sucedido.
Isso tudo não significa que os alquimistas latinos não tivessem a fé canônica de Jesus Cristo e Maria como personagens históricos. Os ensinamentos esotéricos e exotéricos não são excludentes. A possibilidade de fazer uma leitura alquímica dos acontecimentos do evangelho era vista como uma forma de comprovar a origem sublime e divina destes fatos e permitiu que a alquimia prosperasse quando outras tradições esotéricas foram perseguidas ou abandonadas. Para os alquimistas latinos, a Virgem Maria é tanto a mãe histórica de Jesus Cristo, a buscadora que foi buscada primeiro e a mulher que esmaga a cabeça da serpente como a personificação do Mercúrio Filosofal em todas as fases da alquimia.
A veneração a Maria é assim idêntica a fixação do Mercúrio. Isso porque se alguém que não passou primeiro pela purificação do Nigredo, depois pela disciplina do Albedo e ainda pelo trabalho do Citrinitas então se essa pessoa se comportar como deus estará de fato sendo um herege. Antes de dizer Fiat Luz (Faça-se a Luz) é preciso primeiro dizer o Fiat Mihi (Faça-se em mim) como disse Maria ao receber a anunciação do Anjo Gabriel de que seria a Mãe de Deus. O ego não trabalhado só pode dizer coisas como “Eu sou a Luz do mundo” ou “Eu sou o Sal da Terra” se estiver mentindo ou se estiver se enganando. A humildade é a chave para não cair nessas duas armadilhas é Maria é seu exemplo perfeito.
Uma intepretação Alquímica do Rosário
A principal forma de veneração de Maria é o rosário. Note que os mistérios gloriosos não terminam com a Ascensão de Jesus Cristo aos céus, mas com a Coroação da Virgem Maria como Rainha dos Céus. Quando feito da forma correta, visualizando os mistérios e com atenção e reverência muitas virtudes marianas úteis a Grande Obra como Paciência, Disciplina, Amor e Docura são exercitadas. Mas além disso o próprio texto da Ave Maria pode ser lido de formula alquímica de fixação do Mercúrio:
Ave Maria gratia plena Dominus tecum
(Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco)
Essa primeira parte foi tirada da boca do Anjo Gabriel ao encontrar com Maria pela primeira vez. Ao exaltarmos Maria exaltamos também tudo o que ela representa, que é antes de qualquer coisa uma abertura para que seja feito dentro de nós a Obra de Deus e a concepção de um novo tipo de ser humano. Ela é cheia de graça pois nela encontramos às três virtudes cardeais da igreja (fé, esperança e amor) de onde nascem todas as virtudes capitais: castidade, caridade, temperança, diligência, paciência, bondade e humildade. Dizer que “O Senhor é convosco” é uma forma de dizer que Deus estava com ela desde o início. Assim como o Mercúrio é parte da Prima Matéria (o imanifesto manifesto) também, segundo o catecismo romano “desde toda eternidade, Deus escolheu, para ser a Mãe de Seu Filho”. Ou seja, de alguma forma o final das operações alquímicas está presente desde o início ou como diz o jargão alquimista “é preciso ouro para fazer ouro”.
Benedicta tu in mulieribus et benedictus fructus ventris tui Jesus.
(Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre, Jesus)
Esta segunda parte foi tirada da passagem em que Maria é recebida e saudada por Santa Isabel, quando ambas já estavam gravidas respectivamente de Jesus e São João, que treme na barriga quando Maria chega ao recinto. Aqui o aspecto feminino ao mesmo tempo tão buscado e tão em falta no alquimistas latinos é destacado. Marie-Dominique Massoni chegou até mesmo a definir a alquimia desta época como a busca do patriarcado pelo feminino. De fato, às ilustrações das laminas alquimistas mostram o feminino de uma maneira bastante diferente do que era comum na época. Dizer que Maria é bem aventurada entre às mulheres e criar um espaço de aceitação deste feminino. O bendito o fruto do vosso ventre é Jesus, a conclusão da Grande Obra e personificação da Pedra Filosofal. Essa bem aventurança é confirmada na resposta que Maria dá no que ficou conhecido como o Magnificat, a Oração de Maria:
“Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador, porque olhou para sua pobre serva. Por isso, a partir de agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações, porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso e cujo nome é Santo. Sua misericórdia se estende de geração em geração sobre os que o temem. Manifestou o poder do seu braço. Desconcertou os corações soberbos. Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos. Acolheu a Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia, conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua posteridade, para sempre. (cf. Lc 1, 46-55)”
Sancta Maria, Mater Dei
(Santa Maria, Mãe de Deus)
A geração de uma criança, de um homúnculo ou de um novo homem (ou filho do homem) é uma ilustração comum do processo da Grande Obra tal como descrito na alquimia medieval. Na doutrina romana Maria não é apenas Mãe de Jesus, é também Theótokos, a Mãe de Deus. O alquimista latino via aqui não apenas uma afirmação do mistério da encarnação, mas uma afirmação de que o novo ser gerado pela Grande Obra tem sua gênese e gestação no Mercúrio Filosofal com todos os seus aspectos e virtudes femininas citados acima.
Ora pro nobis, peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae, amen.
(Rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte. Amem.)
O alquimista católico romano podia ver nesta última parte da oração tanto um pedido de interseção da Virgem Maria pelas almas como um lembrete de que uma certa porção de sua consciência, na verdade aquela porção mais pura e central deveria sempre rogar e cuidar das demais partes que compõem o ser, pois certamente veria a morte de cada uma deoas. Pois em cada uma das doze operação algo do ser anterior, o ser pecador, de fato falece uma vez que como disse São Francisco séculos depois “É morrendo que se vive para a vida eterna” De fato, segundo a doutrina católica Maria é a única que não morre dentre todos os personagens do evangelho. Até Jesus morre, mas Nossa Senhora é levada em vida para o céu em seu corpo de glória. O mesmo pode ser dito do Mercúrio. Enquanto às impressões dos metais menores como vontades, sentimentos e crenças mudam, surjam e morram o tempo todo e enquanto às inspiração dos metais superiores podem nunca chegar a brotar em um coração que não às busque, os aspectos do Mercúrio, ou seja, a percepção de si, a autoconsciência, o sentimento de presença estão sempre presentes mesmo quando nos identificamos com ilusões ou somos pregados na cruz da provação
Santa Maria é aquela que recebe o Espírito Santo e se torna mãe de Deus. O Mercúrio é aquele que recebe o Enxofre e se torna receptáculo do Azoth. Maria é a Prata que reflete o Ouro, toda orientada ao Filho, que é também seu Senhor. Por isso, para os alquimistas latinos, quando ela recomenda “Fazei tudo o que ele lhes disser.” está prenunciando a transformação da Água em Vinho e exortando todos a seguir os mandamentos do evangelho, mas está também sendo símbolo da submissão dos desejos e impulsos menores em prol de uma vontade e verdade superior.
* Thiago Tamosauskas autor do Principia Alchimica, um manual simples e práticos dos principais conceitos e práticas da alquimia.
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