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Vampirismo e Licantropia

Um deus que morde

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Shirlei Massapust

Em 18/01/2023 acordei num baita calor, 28º na sombra, bebi água quente do filtro e acho que as gigogas do rio Guandu fermentaram pois cai em crise de labirintite. Tudo começou a girar. Voltei para a cama e um sonho falou: “Verifique Jó 16:9”. Pois bem, esse versículo contém a única menção bíblica aos dentes de Yhwh. A tradução de Luiz Inácio Stadelmann na Bíblia de Jerusalém verte: “Sua ira persegue-me para dilacerar-me, range contra mim os dentes, meus inimigos aguçam os olhos contra mim”.[1]

Esta seria a bíblia católica mais precisa, segundo o pessoal do LHIA/UFRJ. Porém a bíblia protestante mais vendida em nosso país diz assim: “Na sua ira me despedaçou, e tem animosidade contra mim; contra mim rangeu os dentes e, como meu adversário, aguça os olhos”.[2] Eu não perderei tempo discutindo se o verbo está no tempo presente ou tempo pretérito. Isso não mudaria o contexto narrativo. Todavia faz muita diferença se quem aguça os olhos são os desafetos de Jó ou Yhwh antropomorfo.

Sem checar o hebraico fui logo imaginando alguém rangendo os dentes e com olhos arregalados igual ao padrão iconográfico de deuses furiosos na arte oriental. Lembrei dum tópico quando um amigo anônimo comentou trechos do Drônnaparuvá, do Marrabáratâ, onde Śiva é adjetivado virūpākam (विरूपाक्षम् em 7.172.65) e virūpāka (विरूपाक्षं em 7.173.29). Éramos nós contra o mundo contestando interpretações de ufólitos esotéricos sobre olho pineal visível porque dicionários de devanágari definem a raiz virūpa (विरूप) como malformação, deformação ou uma careta proposital; de modo a inspirar medo, horror, estranhamento, etc. (Tudo menos serenidade e índole pacífica).

Quando verifiquei a versão hebraica massoreta de Jó 16:9b no qBible, lá estava escrito tzäriy yil’tôsh ëynäyw liy (צָרִי יִלְטוֹשׁ עֵינָיו לִי), onde tzäriy yil’tôsh (צָרִי יִלְטוֹשׁ) parece descrever o atrito duma pederneira (tsar צַר) que produz faíscas e acende fogo. Mas isso necessariamente teria de falar em olhos (‘ayin עַיִן) de modo a não encontrar lugar no contexto, a menos que lembremos de Daniel 9:10, verbete que descreve um homem divino da cor do crisólito polido cujos olhos chamejam de modo a fazê-lo parecer uma estátua oca de pedra verde com um mecanismo iluminador no interior da cabeça.

Yhwh está mirando Jó com um olhar que solta faíscas. O védico Agni e outros deuses do fogo que lhe sucederam e imitaram em diferentes sistemas religiosos tinham a mesma capacidade. Na época do Império Arsácida os persas já usavam baterias para galvanoplastia (pesquise sobre a bateria de Bagdá). Mesmo assim, que deus nos livre de imaginar algum malandro inventando a vela de ignição antes de 1898 e metendo isso dentro do crânio dum autômato. Uma menção tão explícita a um aparelho acendedor de olhos queimaria a mufa não do abajur, mas do pobre devoto que espera algo mais milagroso e menos tecnológico do povo do céu. Aceitamos, portanto, que tsar (צַר) deixe de ser uma pederneira e vire uma suave metáfora para inimigo, seja este divino ou mais preferencialmente humano… Na frase anterior Jó 16:9a verte:

אַפּוֹ טָרַף וַיִּשְׂטְמֵנִי חָרַק עָלַי בְּשִׁנָּיו

aPô täraf waYis’t’mëniy chäraq älay B’shiNäyw[3]

No hebraico antigo o termo ‘aph (אף) significa literalmente narina. Pode ganhar nuances metafóricas na designação de uma face completa, porém tão próxima que lhe vemos as narinas inspirando, aspirando, bufando. No contexto de Jó 16:9a poderia talvez se mostrar como interpretação de alguém que está arfando. Deus está irado, entendem os tradutores. Parafusos pulariam de seus cérebros se a deidade arfasse por qualquer outro motivo como, por exemplo, quando egressos do BOPE representantes da lei e da ordem escreveram sobre “um puta tesão[4]” de torturar meliantes favelados.

Eu nem precisei ir ao Morfix ou a outros dicionários para verificar que taraph (טדף) é o ato de fatiar alimento, possivelmente a primeira ação antes de mastigar carne. Apesar do fatiamento de Jó, a ferida não deve ter sido das grandes porque nosso herói não segue esquartejado após a ofensiva. Jó termina o livro recuperado e bem de saúde.

Suponhamos que Jó haja levado, no mínimo, uns suaves arranhões doloridos e, no máximo, uma mordida. A palavra charaq (חָרַק) tem como único significado o ato de ranger os dentes e seu uso é estável no Salmo 35:16, Salmo 37:12, Salmo 112:10 e Lamentações 2:16. Na bíblia hebraica ranger os dentes é uma expressão costumeira para debochar da má sorte dum desafeto. Não há nada na palavra shen (שֵׁן) que especifique se deus tem dentes iguais aos dos humanos, ou dentes modificados ou dentes pintados ou mesmo se são dentes semelhantes aos dos animais. A palavra shen (שֵׁן) designa qualquer qualidade de dentes, até o marfim de hipopótamos e elefantes.

A propósito, talvez não seja totalmente inútil acrescentar que, por volta do ano 701 a.C., enterraram num cemitério em Tell Duweir (Lachish) uma mulher com mutação dental, tendo cinco dentículos extra e distema[5] destacando os caninos ao lado dos incisivos laterais. Essa ossada é hoje conhecida como esqueleto nº 437.[6] Na mesma época e lugar, no mesmo cemitério, também enterraram, dentro da Tumba 120, uma família de oito pessoas com crânios alongados por procedimentos estéticos à moda egípcia. Segundo L. D. Risdon, os crânios alongados “são exemplos típicos de deformação fronto-occipital, sendo os dois ossos achatados e uma depressão pós-coronal aparente em cada caso”.[7]

Não dá para saber se temos em Jó 16:9a algo semelhante aos dentes de Agni ou à forma Bhairava (भैरव) de Śiva cujas esculturas deixam o fã de cultura pop acabrunhado em razão da semelhança com o padrão iconográfico do mitologema dos dentes de vampiro cinematográfico dos séculos XX e XXI. Todavia eu não esperaria menos de Yhwh do que da bíblica Zārāh, mulher com arcada dentária afiada como uma espada de dois gumes (chaDäh K’cherev PiYôt, חַדָּה כְּחֶרֶב פִּיּוֹת), segundo Provérbios 5:4. Pois a boca de Zārāh é a cova profunda onde Yhwh faz cair os objetos de sua ira (Provérbios 22:14).

Ainda sobre Jó 16:9a, percebemos uma relação de cacofonia entre satam (שָׂטַם), que é o verbo perseguir, e śāān (שָׂטָן), verdadeiro responsável pelo estado de penúria de Jó. Pois o tempo inteiro o bom homem comete erro de pessoa. Está maldizendo Yhwh, parte inocente, quando quem duvidou de sua fé e o testou severamente foi Satã.

Notas:

[1] STADELMANN, Luiz Inácio. Jó. Em: A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo, Paulus, 1995, p 903.

[2] A BÍBLIA SAGRADA: ANTIGO E NOVO TESTAMENTO. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Edição revista e atualizada. Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, p 547.

[3] JÓ 16:9. Em: Qbible. Acessado em 15/01/2023 11h12. URL: <http://www.qbible.com/hebrew-old-testament/job/16.html#9>.

[4] SOARES, Luiz Eduardo; BATISTA, André e PIMENTAL, Rodrigo. Elite da Tropa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p 21.

[5] Diastema é um espaço entre os dentes ou uma ausência de contato interproximal que ocorre entre dois ou mais dentes. Trata-se de um problema que, comumente, está associado a fatores genéticos ou anomalias nos dentes, sobretudo de tamanho e forma.

[6] RISDON, D. L. A study of the cranial and other human remains from Palestine excavated at Tell Duweir (Lachish) by the Welcome-Marston Archaeological Research Expedition. Great Britain, University Press Cambridge, July 1939, p 119 and Plate XX, fig. A and C.

[7] RISDON, D. L. A study of the cranial and other human remains from Palestine excavated at Tell Duweir (Lachish) by the Welcome-Marston Archaeological Research Expedition. Great Britain, University Press Cambridge, July 1939, p 115-116.

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