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Vampirismo e Licantropia

Os vampiros de Bethenykörös

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Shirlei Massapust

No periódico Neues Wierner Journal, edição nº 5615, de 10 de julho de 1909, lemos sobre a destruição de um castelo situado num local da Valáquia cujo nome, em húngaro, significaria “cercania de Betânia”, topônimo inspirado na cidade bíblica Betânia (Βηθανία) onde Jesus realizou o milagre da ressurreição de Lázaro (João 11:1-46). Este lugar não pode ser encontrado no Google Maps pois, ao menos atualmente, não existe.

Destruição de um castelo por supersticiosos. Recebemos a notícia de Hermannstadt (Sibiu) que o castelo Bethenykörös, situado numa aldeia homônima, na Valáquia, foi vítima duma estranha superstição popular. Bethenykörös está situado em uma área selvagem e romântica na encosta sudeste das montanhas dos Cárpatos e uma vez representou um sólido baluarte contra os turcos. Esteve desabitado por longa data; somente um castelão vivia com sua esposa numa ala lateral. Várias histórias sobre os habitantes do castelo foram espalhadas entre a população. Entre outras coisas, era crença geral que o último Conde Bethenykörös morreu como um “vampiro”. Nas últimas semanas numerosos filhos de agricultores vieram a óbito num curto período de tempo, como resultado de uma epidemia. Então supersticiosos alegaram que o Conde os assassinou, e decidiram destruir o lugar onde o “vampiro” estaria enterrado. Nesta ocasião, o incêndio provavelmente eclodiu por descuido, sendo que o patrimônio histórico foi consumido desde as fundações. Diz-se que o castelo pertenceu a um jovem oficial de cavalaria que vive em Viena, e que o adquiriu por herança.[1]

É estranho que um “sólido baluarte contra os turcos” haja sido tão facilmente consumido por um incêndio, da fundação ao teto, como se os soldados otomanos do passado não conhecessem o fogo nem tivessem o costume de usá-lo na guerra. Enfim, se o prédio era fraco contra fogo certamente não era forte contra o exército do sultão. Tal narrativa contraditória somada à dificuldade de localizarmos o condado sugere que isto deveria fazer fronteira não com a Transilvânia, mas com a Terra Média e o Reino de Oz. Todavia, quando sentado numa cafetaria em Viena, o famoso ocultista alemão Franz Hartmann (1838-1912) encontrou o editor dum “jornal bastante conhecido” que alegou haver passado uma temporada de seis meses habitando os arredores do castelo, antes do incêndio. Ele coletou a narrativa do amigo, que preferiu se manter em anonimato, mas lhe forneceu como prova a fotografia de um quadro que decoraria o castelo.

Com estes dados Franz Hartmann escreveu o artigo “An Authenticated Vampire Story”, publicado pela primeira vez como não-ficção por Ralph Shirley no periódico Occult Review, edição de setembro de 1909. Contudo isso é tão bom como ficção que, desde 1977, tem aparecido em várias compilações de contos de horror.

Meu amigo disse: — “Há dois anos (1907) eu morava em Hermannstadt (Sibiu), estando empenhado em construir uma estrada através das colinas. Muitas vezes me aproximava do antigo castelo, onde conheci o velho castelão, ou caseiro, e sua esposa, que ocupavam uma parte da ala da casa, quase separada do corpo principal do edifício. Eles eram um casal de velhos quietos e bastante reticentes em dar informações ou expressar uma opinião sobre os ruídos estranhos que eram frequentemente ouvidos à noite nos salões desertos, ou das aparições que os camponeses da Valáquia alegavam ter visto quando vagavam no arredores depois de escurecer. Tudo o que pude apurar foi que o velho Conde era viúvo e tinha uma linda filha, que um dia morreu ao cair de seu cavalo. Logo depois o velho faleceu misteriosamente e os corpos foram enterrados num cemitério isolado localizado numa aldeia vizinha. Pouco depois de sua morte notou-se uma mortalidade incomum entre os habitantes da aldeia: várias crianças e até alguns adultos morreram sem nenhuma doença aparente; eles simplesmente definharam; e assim começou um boato de que o velho Conde havia se tornado um vampiro após sua morte. Não há dúvida de que não era um santo, pois era viciado em bebida, e circulavam algumas histórias chocantes sobre sua conduta e a de sua filha; mas se havia ou não alguma verdade neles, não estou em condições de dizer”.[2]

O herdeiro ausente foi descrito de forma tão vaga e anônima quanto na fonte primária. Homem que preferia o risco de ir à Guerra do que viver num castelo. Segundo Franz Hartmann, o castelão ofereceu sua hospitalidade ao editor construtor de estradas que se apresentou acompanhado do Dr. E—, um jovem advogado, e do Sr. W—, um literato, ambos interessados na investigação de fenômenos paranormais. Certa noite o Dr. E— experimentou uma alucinação visual ao observar um quadro a óleo, cópia dum original de autoria do célebre pintor austríaco Hans Makart (1840-1884), retratando uma bela senhora usando casaco de peles e um grande chapéu. A mulher no retrato piscou os olhos e sorriu para o observador, que relatou o estranhamento aos companheiros.

Questionado a respeito, o castelão alegou ignorar a identidade da modelo, sendo a obra de arte adquirida pelo velho Conde “porque seu olhar demoníaco lhe aprazou bastante”.[3]  Logo todos os visitantes decidiram realizar uma sessão espírita, formando um círculo ao redor duma mesa. A mobília se moveu e uma voz vinda de não se sabe onde afirmou que “Elga” é “a dama cujo retrato vocês contemplaram”.[4]  Sem responder se Elga era pessoa viva ou morta, a voz marcou um encontro com o Sr. W— e a mesa se pôs a esfregar nele como uma amante. Rapidamente o Sr. W— saiu daquele castelo e tornou a se hospedar numa pousada localizada a meia hora de viagem. Mesmo assim, por volta das duas horas da madrugada ouviu passos na escada, a porta se abriu, houve um farfalhar de vestido de seda e o som de calçados femininos no corredor.

Pode-se imaginar que ele ficou um pouco assustado; mas, tomando coragem, disse a si mesmo: “se esta é a Elga, que ela entre”. Então a porta de seu quarto se abriu e Elga entrou. Ela estava vestida com mais elegância e parecia ainda mais jovem e sedutora do que na foto. Havia uma sala do outro lado da mesa onde W— estava escrevendo, e lá ela posou silenciosamente. Ela não falava, mas seus olhares e gestos não deixavam dúvidas sobre seus desejos e intenções.

O Sr. W— resistiu à tentação e permaneceu firme. Não se sabe se ele o fez por princípio, timidez ou medo. Seja como for, ele continuou escrevendo, olhando de vez em quando para sua visitante e silenciosamente desejando que ela fosse embora. Por fim, depois de meia hora, que lhe pareceu muito mais longa, a senhora partiu da mesma maneira que veio.[5]

O Sr. W— relatou sua aventura aos amigos que decidiram marcar várias outras sessões espíritas no castelo, onde tornou a ocorrer fenômenos estranhos. Assim, por exemplo, uma vez a criada estava prestes a acender o fogo no fogão, quando a porta do apartamento se abriu e Elga estava ali. A menina, apavorada, saiu correndo do quarto, rolando pelas escadas com a lamparina de petróleo na mão. Lâmpadas e velas acesas se apagaram quando aproximadas do quadro, e tantas outras “manifestações” aconteceram que o autor julgou por bem omitir as menos interessantes.

Poucos dias após a aventura acima narrada, à época em que Sr. W— desejava obter o cargo de coeditor dum determinado jornal, ele recebeu uma carta na qual uma nobre dama de alta posição lhe ofereceu seu patrocínio para esse fim. O escritor pediu-lhe que fosse a um determinado lugar na mesma noite, onde encontraria um cavalheiro que lhe daria mais detalhes. Ele atendeu e foi recebido por um estranho desconhecido, que lhe disse que a Condessa Elga lhe pedira para convidar o Sr. W— para um passeio de carruagem e que ela o esperaria à meia-noite em um certo cruzamento de duas estradas, não muito longe da aldeia. O estranho então desapareceu de repente.

Então pareceu que o Sr. W— teve algumas dúvidas sobre a reunião e a viagem. Ele contratou um policial como detetive para ir à meia-noite ao local designado e ver o que aconteceria. O policial foi e relatou na manhã seguinte que não tinha visto nada além da conhecida e antiquada carruagem do castelo com dois cavalos pretos presos a ela parada lá como se esperasse por alguém, e que ele não teve ocasião de interferir e apenas esperou até a carruagem seguir em frente.

Quando perguntado ao castelão, ele jurou que a carruagem não tinha saído naquela noite e, de fato, não poderia ter saído, pois não havia cavalos para puxá-la. Mas isso não é tudo, pois no dia seguinte encontrei um amigo que é um grande cético, não acredita em fantasmas e costumava sempre rir dessas coisas. Agora, porém, ele parecia muito sério e disse: “Ontem à noite aconteceu algo muito estranho comigo. Por volta de uma hora da manhã voltei de uma visita tardia e ao passar pelo cemitério da aldeia, vi uma carruagem com ornamentos dourados na entrada. Eu me perguntei sobre isso acontecer em uma hora tão incomum, e curiosa para ver o que aconteceria. Esperei. Duas senhoras elegantemente vestidas saíram da carruagem. Uma delas era jovem e bonita, mas me lançou um olhar diabólico e desdenhoso quando ambas passaram e entraram no cemitério. Lá eles foram recebidos por um homem bem vestido, que saudou as senhoras e falou com a mais nova, dizendo: ‘Dona Elga, por que você voltou assim tão cedo?’ Um sentimento tão estranho tomou conta de mim que eu saí abruptamente e corri para casa”.[6]

O editor construtor de estradas tanto ouviu dos assistentes que começou a se sentir desconfortável diante do suposto retrato de Elga. Após ele propor a destruição da obra de arte, a mesa objetou e propôs sua exclusão do grupo de médiuns. O homem amedrontado apanhou uma Bíblia e leu João 1 enquanto seus assistentes viam o quadro fazer cara de nojo. Ao furar o quadro com seu canivete os amigos Sr. E— e Sr. W— sentiram todas as picadas como se estivessem sendo atacados na própria carne. O editor construtor de estradas desenhou um decaedro estrelado no verso do quadro e a figura feminina tornou a contorcer a musculatura da face. Então tudo acabou e eles se foram.

Franz Hartmann ilustrou seu artigo com a fotografia recebida das mãos do editor construtor de estradas. Ainda que a existência do Conde Bethenykörös e de seu castelo fossem por si só questionáveis, reparem que na narrativa coletada o castelão desconhece uma filha do antigo senhorio chamada Elga. Foi o próprio espírito quem se apresentou para um grupo de espíritas impressionáveis, o que poderia indicar alucinação auditiva.

Quando, em maio de 2022, Doris V. Sutherland investigou o caso, ela foi incapaz de encontrar quaisquer documentos históricos atestando a existência da Condessa Elga de Bethenykörös. Por outro lado, achou informações relevantes sobre o quadro de Hans Makart. O retrato em questão foi amplamente divulgado sob vários nomes, incluindo “Patrizierin”, “A Patrícia” e “Uma Patrícia Leal”. Uma edição da Britain’s Magazine of Art, impressa em 1882, imprimiu uma gravura baseada na pintura para representar o trabalho de Makart, e a imagem entrou em um programa de música diária de Brighton Beach do mesmo ano. Na Alemanha, a pintura foi transformada em um cartão postal produzido em massa. O livro de Bettina Weitner, Das Kostüm bei Hans Makart (2017), afirma que a pintura com o nome de “Die Patrizierin” foi apresentada na capa da publicação de moda austríaca Neue Wiener Modebriefe (edição de fevereiro de 1882). Reconhecendo um toque de mistério sobre a pintura, sua lista de detalhes termina com a nota “unbekannter Besitz” – “propriedade desconhecida”.

Hoje, ainda outra cópia da pintura pode ser encontrada no site oficial do Instituto Holandês de História da Arte, cujo curador julgou por bem identificar a modelo como Imperatriz Elisabeth da Áustria. Diante do exposto, Doris V. Sutherland ficou convencida da identificação positiva e concluiu que “um brincalhão empreendedor teria ampla oportunidade de incorporar a pintura em uma farsa editorial”.[7]

Quanto a mim, não vi tanta semelhança entre o quadro e a imperatriz conforme representada noutra arte. Portanto não há meios de provar tal conjectura. Talvez não seja absolutamente impossível que houvesse uma aldeia romena chamada Bethany ou Bethenykörös, desaparecida do mapa por êxodo rural. Descendentes de hajduk crentes em vampiros eram assim mesmo, vagavam dum lado para outro fugindo de seus medos e perigos em época de epidemia. Sei lá se seriam capazes de incendiar um velho castelo por ouvir histórias sobre teósofos evocando espíritos. Há duzentos anos eles executavam cadáveres por cremação. Quanto ao retrato, a probabilidade da modelo se chamar “Elga” deve ser menor que a de ganhar na mega sena da virada cinco vezes seguidas.

Notas:

[1] ZERSTÖRUNG EINES SCHLOSSES ANS ABERGLAUBEN. Em: Neues Wierner Journal (edição nº 5615), 10/06/1909, página 8. URL: <https://anno.onb.ac.at/cgi-content/anno?aid=nwj&datum=19090610&seite=8&zoom=33>.

[2] HARTMANN, Franz. An Authenticated Vampire Story. Em: SHEPARD, Leslie. (org). The Drácula Book of Great Vampire Stories. USA, Jove/HBJ Books, 1978, p 311-312.

[3] HARTMANN, Franz. An Authenticated Vampire Story. Em: SHEPARD, Leslie. (org). The Drácula Book of Great Vampire Stories. USA, Jove/HBJ Books, 1978, p 312.

[4] HARTMANN, Franz. An Authenticated Vampire Story. Em: SHEPARD, Leslie. (org). The Drácula Book of Great Vampire Stories. USA, Jove/HBJ Books, 1978, p 313.

[5] HARTMANN, Franz. An Authenticated Vampire Story. Em: SHEPARD, Leslie. (org). The Drácula Book of Great Vampire Stories. USA, Jove/HBJ Books, 1978, p 314.

[6] HARTMANN, Franz. An Authenticated Vampire Story. Em: SHEPARD, Leslie. (org). The Drácula Book of Great Vampire Stories. USA, Jove/HBJ Books, 1978, p 314-315.

[7] SUTHERLAND, Doris V. Nosferatu’s Kindred, Part 10: The Authenticated Vampire Story of Franz Hartmann. Publicado em: Women Write About Comics, 03/05/2022. URL: <https://womenwriteaboutcomics.com/2022/05/nosferatus-kindred-part-10-the-authenticated-vampire-story-of-franz-hartmann/>.

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