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Vampirismo e Licantropia

O Vale da Estranheza

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Shirlei Massapust

O conceito do vale da estranheza (em inglês uncanny valley, derivado do japonês 不気味の谷現象) é uma hipótese introduzida em 1970 pelo professor de robótica Masahiro Mori, em artigo do periódico científico Energy, 7(4), p 33-35. Testes laboratoriais demonstraram que a resposta emocional positiva e empática dos voluntários que observaram robôs e figuras humanas numa tela cresceu proporcionalmente em relação ao grau de realismo das imagens até certo ponto em que a resposta rapidamente se transformou numa forte repulsa.

A maioria dos voluntários nos testes de Masahiro Mori julgou preferível assistir atores representando papéis a ver bunraku (文楽), que é um teatro de marionetes. Mesmo assim lhes pareceu mais agradável ver bunraku do que observar mãos protéticas ou zumbis cinematográficos.

Pois bem, assumindo as premissas de que 1) atores sadios fornecem imagens agradáveis à vista e 2) o zumbi fictício é o objeto mais repulsivo do mundo; nós nos deparamos com um problema de ordem lógica: Por que existe audiência para filmes de zumbis? Por que filmes trash, gibis de terror e outras artes propositadamente planejadas para causar asco comumente se traduzem num grande sucesso mercadológico? Em suma, por que a estreia simultânea de Dawn of the Dead e The Passion of the Christ no fim de semana, dias 20 e 21 de março de 2004, gerou diferença de 5,2% a mais na renda da bilheteria duma revisão dum clássico de George Romero, dirigida por Zack Snyder, ainda que emparelhado contra o prestígio de Mel Gibson e o carisma de Jesus?[1]

Gráfico de Masahiro Mori

Comparemos o quadro de audiência de duas séries norte-americanas contemporâneas, conforme divulgado pelo site de cinema AdoroCinema[2], que compilou cálculos realizados por emissoras desejosas de dar publicidade ao número de espectadores por episódio em média, considerando somente a primeira transmissão nos EUA. Uma delas, The Walkind Dead (2010-2016), exibida pela AMC, fala sobre a difícil adaptação dos seres humanos a condições extremadas de violência e subsistência durante o apocalipse zumbi. A outra, Glee (2009-2015), exibida pela FOX, contem jovens atores engajados numa equipe de canto e dança transmitindo mensagens motivacionais, com fartos exemplos de superação. Ambas as séries contém diversidade étnica:

Audiência de The Walkind Dead Audiência de Glee
1ª temporada 5,2 milhões 1ª temporada 9,2 milhões
2ª temporada 6,9 milhões 2ª temporada 11,6 milhões
3ª temporada 10,7 milhões 3ª temporada 7,3 milhões
4ª temporada 13,3 milhões 4ª temporada 5,9 milhões
5ª temporada 14,3 milhões 5ª temporada 3,3 milhões
6ª temporada 13,3 milhões 6ª temporada 2 milhões

Cálculos matemáticos demonstram que a audiência do bom exemplo caiu enquanto a dos zumbis cresceu até superar o marco inicial de estreia do drama musical. Glee não terá uma sétima temporada. The Walkind Dead, por sua vez, não tem prazo para terminar e o gibi no qual a sétima temporada será baseada já está disponível em jornaleiros. Isto está acontecendo numa época em que as meninas ocidentais preferem ver Shrek (2001), Como Treinar o Seu Dragão (2003), Valente (2012), Crepúsculo (2008-2012), etc., em detrimento de velhos clássicos sobre o casamento de donzelas virgens!

Por que tanta gente gosta de sentir estranheza, medo e asco? Existem benefícios biológicos ou sociais neste ato? Estudos com tomógrafo e eletroencefalograma, realizados por Thierry Chaminade e Ayse Saygin da University College London, acusaram picos de atividade no córtex parietal durante a sensação de estranheza causada pela visão de robôs e figuras humanas.

O córtex parietal é uma área do cérebro repleta do que os neurologistas chamam de neurônios espelho, responsáveis pelo sentimento de empatia. Neurônios espelho são capazes de analisar cenas e interpretar as intenções dos outros. Eles nos permitem captar a intenção alheia não por meio do raciocínio conceitual, mas pela simulação direta (sentindo e não pensando).

Você automaticamente simula a ação em pensamento quando vê a representação de uma ação. Circuitos cerebrais o inibem de se mover, mas você entende ações alheias porque reconhece um padrão dessa ação baseado nos seus próprios movimentos. Em resumo, ao ver a ação de outra pessoa nós conseguimos interpretar suas intenções. O cérebro parece associar a visão de movimentos alheios ao planejamento de seus próprios movimentos. É por isso que um monte de gente começa a bocejar e até mesmo a vomitar quando vê alguém bocejando ou vomitando. Também é por isso que certas pessoas desejam “virar vampiro” vendo filmes de vampiro e depois riem de si mesmas ou passam a achar que bifes de carne mal passada são mais gostosos.

O vale da estranheza é efeito de um bug no cérebro humano. Graças a uma função latente dos neurônios espelho, a quase realidade de um robô ou filme 3D ou etc. obriga nossa percepção a ignorar a faculdade da razão, identificar a representação como pessoa e reagir com estranhamento. O seu corpo sente que um boneco com aparência extremamente realista de um bebê é uma criança morta porque o objeto inanimado não se mexe, não respira, não parece vivo. Qualquer imperfeição causa uma quebra de expectativa e faz a coisa estranhada parecer oferecer perigo de contágio de doenças, etc.

Você é um animal mamífero da espécie Homo sapiens. Mesmo sabendo o que é um boneco, uma estátua, uma pareidolia, etc., o seu instinto animal eventualmente pode interpretar uma figura de olhar fixo e brilhante como um ser vivo apresentando o comportamento típico duma criatura que quer te comer, tal como um leão de tocaia esperando a gazela passar. Contudo, as mesmas células que te assustam aumentam a empatia por algo ou alguém depois que o observador reconhece o engano e racionaliza sobre a ausência de perigo. Sendo assim a exposição ao estranhamento pode ser manipulada para educar telespectadores no sentido de repudiar qualquer coisa que exale a energia pesada do fundamentalismo, eugenia e xenofobia.

A ciência não poderia descrever melhor do que a vivência a esta empatia pelo exótico ou macabro; que o psiquiatra Fredric Wertham logrou chamar de “sedução da inocência”, quando ele quase descobriu o segundo efeito colateral do fenômeno do vale da estranheza: A atração pela repulsão.

Acontece que as cobaias humanas que participaram voluntariamente dos experimentos de Masahiro Mori nunca retornaram aos laboratórios apos o término da pesquisa, mas o mundo é um enorme laboratório onde a natureza joga dados aleatórios e a vivência gera desfechos contrários à expectativa.

Por que 12,79 milhões de telespectadores norte-americanos assistiram à estreia do episódio “Knots Untie” da 6ª temporada de The Walking Dead em horário sobreposto à exibição da cerimônia do Oscar 2016, a despeito da importância da entrega dos prêmios pela Academy of Motion Picture Arts and Sciences para a sétima arte? Isto aconteceu porque pessoas tem livre arbítrio. Sem nenhuma obrigação moral e cívica, natural e necessária, de ver filme de Jesus na páscoa ou o Oscar, muitos optaram por fazer outra coisa.

Seguindo a lógica do efeito reverso presumo que se algum dia os atletas paraolímpicos chegarem a virar ciborgues de alta tecnologia, semelhantes ao fictício Robocop, as pessoas irão lotar as arquibancadas, preferindo investir em modalidades variantes e não no espetáculo standard das olimpíadas.

Hoje em dia existem colecionadores de bonecos reunidos em fóruns e clubes sociais dedicados ao hobby onde continuam a fornecer testemunhos por prazo indeterminado… Nessas mídias alternativas existem inúmeros exemplos semelhantes ao de Moira, residente em Ontário, Canadá. Na primeira vez que viu Barbara, uma escultura articulada de mulher inseto fabricada pela microempresa sul coreana Doll Chateau, ela detestou-a por ser uma monstruosidade exótica. Contudo a imagem não saiu de sua mente até que Moira descobriu que desejava a boneca pela excentricidade do molde.

I’ve noticed a lot of people are creeped out by Doll Chateau. I used to be terrified of them, but I noticed something: Fear and Love are almost interchangeable feelings in the human mind. I was simply terrified of the Barbara. She was so oddly different. I wondered why anyone would want something like her? Then I noticed myself looking at her more and more… And I realized I wasn’t creeped out by her, I LOVE her! So I guess that’s the idea of exposing yourself to something so often it changes your opinion.[3] (Testemunho postado por Moira no fórum Den of Angels, dia 10/04/2014).

Existe um lado bom na estranheza porque o sujeito reeduca seu cérebro ao racionalizar a situação e entender que um medo é infundado. Brincar com aranhas de plástico no Dia das Bruxas é uma ótima motivação para perder o medo de limpar teias de aranha em casa. A ficção e a representação ajudam mais crianças a entender a constituição de um esqueleto do que duros choques de realidade. É possível adquirir tolerância ao nojo vendo filmes de zumbis e possivelmente auferir aptidão para prestar primeiros socorros a pessoas feridas sem desmaiar ou enjoar vendo sangue. Afinal, ninguém jamais será um bom médico se não for capaz de rir duma revista em quadrinho de terror.

A experiência de Masahiro Mori, revista e anotada por outros, indica que o cérebro emite o mesmo impulso de estranhamento diante de acidentados amputados (com implantes de próteses), bem como ao ver adeptos da filosofia do transhumanismo ostentando modificações corporais (piercing, tatuagem, etc.) e ninguém precisa ler artigos acadêmicos para saber como os idosos sofrem com o preconceito dos que ainda estranham o uso de dentaduras.

O vale da estranheza é literalmente um preconceito instintivo dirigido contra figuras humanas que não se ofendem e podem nos ajudar a superar uma falha biológica ou educacional, nos acostumando com imagens estranhas até sermos capazes de reagir de forma adequada diante de situações reais.

Talvez um dos exemplos mais positivos de uso da arte escatológica com bonecos seja a série The Nutshell Studies of Unexplained Death, composta de dezoito dioramas representativos de cenas de crimes, criados por Frances Glessner Lee para o treinamento de peritos em investigação forense. Os “mortos” ocupantes de maquetes em escala 1:12 incluem prostitutas e vítimas de violência doméstica. A missão do estudante é realizar o exame do corpo de delito. Estes cenários ficaram expostos no departamento de medicina legal de Harvard de 1945 até 1966, quando foram enviados ao Maryland Medical Examiner’s Office in Baltimore onde são usados em seminários até hoje.

Considerações finais

O zumbi estereotipado que conhecemos não é um mito nem uma lenda existente desde os primórdios da História. O modelo genérico foi idealizado pelo diretor George Romero, em 1968, na intenção de desvincular o conceito de “zumbi” da abordagem mágico-religiosa haitiana, abolindo o viés racista das produções cinematográficas anteriores. Sua ideia deu tão certo que ninguém nunca mais pensou em culpar um negro pelo fim do mundo.

Os exemplos de produções bem sucedidas são inúmeros, iniciando pela trilogia de George Romero, passando pelo famoso videoclipe Thriller (1982) de Michael Jackson – com participação especial de Vincent Price – e pela franquia japonesa Resident Evil que vem problematizando a questão da bioética em inúmeros produtos – especialmente jogos e filmes – desde 1996 até hoje.

A maioria das abordagens vinculam questões acessórias de ontologia, ética e bioética ao mero entretenimento. Isto é feito espontaneamente pelos autores e tem sido bem recepcionado pelo público. A canção Zombie (1994), escrita por Dolores O’Riordan, gravada pela banda irlandesa The Cranberries, abriu os olhos dos fãs de rock alternativo para os conflitos armados envolvendo a questão protestante na Irlanda do Norte. Quando atingiu o primeiro lugar nas paradas de sucesso de vários países – como Austrália, Bélgica, Dinamarca, Alemanha e Brasil – isto certamente tocou lá diante dos próprios soldados sabedores de que o rádio cantava perante o mundo, sobre eles e para eles: “What’s in your head? Zombie! Zombie! Zombie!”

Embora o estereótipo não seja uma metáfora, isto funciona como tal. Os fãs que promovem a Zombie Walk[4] se referem ao conceito como mito futuro, por vir, devir, porque todo ano a mídia anuncia uma epidemia de ebola, mal da vaca louca, zica vírus, chikungunya ou qualquer peste inédita e estranha. Logo, talvez exista probabilidade de acontecer uma pandemia de origem natural ou estourar uma guerra química bastante parecida com o apocalipse zumbi.

Ultima ratio, o zumbi traduz uma forma de protestar contra a falência moral dos protestos que brotam nas grandes cidades onde multidões atendem ao chamado de terceiros desconhecidos para aglomerarem-se sem propósitos bem definidos – sem nem ao menos saber o que os organizadores do evento estão reivindicando (e a massa de manobra está endossando) – numa quase tentativa de canibalizar a própria espécie devorando os direitos humanos.

Referências bibliográficas:

BUSH, Erin N. PhD. “The Nutshell Studies of Unexplained Death”. Em: Death in Diorama. Acessada em 07/04/2016. URL: <http://www.deathindiorama.com/>

JENTSCH, Ernst. “Zur Psychologie des Unheimlichen”. Em: Psychiatrisch-Neurologische Wochenschrift 8.22 (25 Aug. 1906), p 195-98 e 8.23 (1 Sept. 1906), p 203-05. E na edição online do site da The Boundary Language Project, acessada em 07/04/2016.  URL: <http://www.art3idea.psu.edu/locus/Jentsch_uncanny.pdf >

MORI, Masahiro. “Bukimi no tani (不気味の谷): The uncanny valley”. Em: Energy, 7(4), 1970, p 33–35. E tradução para inglês de Karl F. MacDorman e Takashi Minato publicada no site do Dublin Institute of Technology, acessada em 07/04/2016. URL: <http://www.comp.dit.ie/dgordon/Courses/CaseStudies/CaseStudy3d.pdf >

SAYGIN, Ayse Pinar; CHAMINADE, Thierry; ISHIGURO, Hiroshi; DRIVER, Jon & FRITH, Chris. “The thing that should not be: predictive coding and the uncanny valley in perceiving human and humanoid robot actions”. Em: SCAN (2012) 7, p 413-422. E na edição online do site da University of California – Department of Cognitive Science. URL: <http://www.cogsci.ucsd.edu/media/publications/Saygin_SCAN_2012.pdf>

Notas:

[1] BORGO, Érico. “Bilheteria USA: Madrugada dos Mortos”. Publicado no portal de notícias Omelete, dia 22/03/2004, a meia noite. URL: <http://omelete.uol.com.br/filmes/noticia/bilheteria-usa-imadrugada-dos-mortosi/>

[2] Quadro de audiência de Glee no site AdoroCinema atualizado conforme a evolução do seriado, consultado em 07/04/2016 às 16h. URL: <http://www.adorocinema.com/series/serie-4114/audiencias/> Quadro de audiência de The Walking Dead no site AdoroCinema atualizado conforme a evolução do seriado, igualmente consultado em 07/04/2016 às 16h:05. URL: <http://www.adorocinema.com/series/serie-7330/audiencias/>

[3] Tradução: “Tenho visto muitas pessoas assustadas pelos bonecos da Doll Chateau. Eles costumavam me aterrorizar, contudo compreendi uma coisa: O medo e o amor são, sobretudo, sentimentos intercambiáveis na mente humana. Eu estive simplesmente aterrorizada pela boneca Bárbara. Ela era tão esquisitamente diferente… Então percebi que eu não estava assustada por ela. EU AMO ela! Então suponho que a ideia de expor-se a alguma coisa muitas vezes te faz mudar de opinião”. (Testemunho postado por Moira no fórum Den of Angels, dia 10/04/2014).

[4] Zombie Walk é uma passeata ou evento underground composta por um grande número de pessoas fantasiadas de zumbis. Caminhando por grandes centros urbanos, os participantes organizam uma rota através das ruas da cidade, passando por shoppings, parques e outros locais com grande público. O evento é promovido via internet ou através de flyers, cartazes etc.

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