Categorias
Sociedades e Conspirações

Abadiânia: A casa e o homem

Leia em 12 minutos.

Este texto foi lambido por 119 almas essa semana.

Rafaella Fernandez[1]

Localizada no interior do estado de Goiás, Abadiânia é um pequeno município com cerca de 20 mil habitantes, cujo principal ponto turístico hoje é o lago artificial formado pela usina hidrelétrica de Corumbá IV, que abastece o Distrito Federal.

Mas por muitos anos, esse foi um dos municípios mais visitados por turistas no Brasil, pessoas indo até aquela cidade de diversos locais do país e do mundo.

A economia de toda uma cidade girando em torno de um homem, visto por muitos como um santo, um operador de milagres, um dos maiores médiuns já conhecidos e posteriormente pelo abuso de mais de 600 mulheres.

Não estamos falando de uma cidade grande, na verdade, se trata de uma cidade bem pequena e pouco populosa.

Não é exagero dizer que a maior parte da receita da cidade girava em torno da Casa de Dom Inácio de Loyola, renda essa gerada, direta ou indiretamente, em sua maior parte por turistas, que visitavam a cidade para ver João de Deus em busca de bênçãos, curas e milagres.

A casa não só empregava mais pessoas do que toda a administração do município, mas até mesmo um ex-prefeito da cidade, Itamar Gomes, declarou publicamente que “não sabia o que seria da cidade caso João de Deus falecesse”.

Não podemos deixar de falar sobre a população de Abadiânia. Pessoas que construíram em suas casas hospedarias, os ambulantes e comerciantes, pessoas que viviam ali naquela cidade, e que obtinham seu sustento dado ao fato de que lá estava a Casa de Dom Inácio de Loyola, e os mesmos trabalhavam de forma honesta e árdua.

A cidade em si sofreu com a queda daquele que era considerado um dos maiores médiuns de sua época, várias pessoas perderam seu sustento, considerando tudo, é possível dizer que o impacto causado pelas ações nefastas de João de Deus, não atingiu somente as vítimas de seus abusos, mas uma cidade inteira. E todo um sistema de crenças foi questionado.

Vida e feitos.

 Nascido na cidade de Cachoeira de Goiás, João Teixeira alega que sua mediunidade teve início quando ele tinha 9 anos de idade, por sua criação católica, o suposto médium não se identificou em primeiro momento com o espiritismo, mas foi aos 16 anos que o mesmo experimentou pela primeira vez o trabalho como médium para a cura de uma outra pessoa.

João Teixeira dizia ter apenas dois anos de educação formal e nenhum treinamento médico. Ele se referia a si mesmo como um simples fazendeiro, passou anos viajando e trabalhando como garrafeiro até se fixar em Abadiânia (ainda que por boa parte de sua vida, ele de fato morasse na cidade de Anápolis).

Inicialmente, ele se estabeleceu em uma sorveteria abandonada no centro de Abadiânia onde realizava seus atendimentos espirituais.

A casa recebe o nome de Dom Inácio de Loyola pois, este teria sido o primeiro espírito que João Teixeira incorporou em Abadiânia, seu primeiro atendimento na região foi a realização de um parto.

Posteriormente João Teixeira deixou o local por pressão de líderes religiosos católicos e fixou moradia numa região conhecida como “Pau Torto”, na saída de Abadiânia, onde iniciou a construção do que viria a ser a suntuosa Casa de Dom Inácio de Loyola.

Um fato muito interessante, mas não tão mencionado, é que foi por orientação de Chico Xavier e do dito espírito Bezerra de Menezes, que João de Deus abriu em 1976 a Casa de Dom Inácio de Loyola.

De início, seus atendimentos ocorriam em sua maioria para moradores locais. Mas m medida que os anos se passavam e sua popularidade crescia, o mesmo passou a atender pessoas de todo o país, e depois, do mundo.

Em alguns anos a propriedade e a fama do dito médium cresceu exponencialmente, e obviamente, a cidade de Abadiânia tornou-se famosa internacionalmente por sediar a Casa de Dom Inácio de Loyola, onde João Teixeira de Faria, também conhecido como João de Deus, alegava incorporar cirurgiões, médicos, santos, curandeiros e espíritos de pessoas de grande popularidade já falecidas.

Segundo o próprio João Teixeira, eram esses espíritos que operavam milagres através dele, e eram durante essas incorporações que o mesmo realizava diagnósticos, cirurgias espirituais e prescrevia medicações.

Entre os espíritos supostamente incorporados pelo suposto médium, estão: os médicos Oswaldo Cruz e Dr Fritz, Santo Inácio de Loyola e o Caboclo Gentil.

Garrafadas eram produzidas e vendidas por décadas até a substituição das mesmas pela passiflora.

Logo, João de Deus seria apresentado ao mundo como o médium de maior fama (ainda vivo) no Brasil e no mundo, com documentários e reportagens feitas por grandes emissoras como Discovery Channel, ABC, BBC, Globo, etc. Artigos em revistas de grande circulação como a Revista Época.

E até mesmo a apresentadora Oprah Winfrey fez todo um episódio dedicado a John of God, ipsis litteris, João de Deus. Onde mostravam cenas da Casa de Dom Inácio de Loyola e dos atendimentos realizados pelo médium ali. Já no palco, sendo entrevistados pela apresentadora, haviam pessoas que passaram por supostos tratamentos e cirurgias espirituais e alegavam ter obtido cura.

Uma boa ação não anula centenas de ações ruins.

Por questões factuais é necessário mencionar que João Teixeira fundou instituições de caridade em Abadiânia, como a “Casa da Sopa” (localizada na propriedade), que oferecia refeições gratuitas aos visitantes e a população carente. E também a “Casa de Banho” onde aqueles que necessitavam podiam tomar banhos e lavar suas roupas.

Fama, sucesso, fortuna e ruína…

 Durante o período de maior fama, eram atendidas mais de mil pessoas diariamente na Casa de Dom Inácio de Loyola.

De acordo com a biografia oficial John of God: The Brazilian Healer Who’s Touched the Lives of Millions (João de Deus: O curandeiro brasileiro que tocou a vida de milhões), até 2007, João de Deus já havia atendido mais de 8 milhões de pessoas que foram até ele em busca de atendimento.

Hoje é sabido sobre a fortuna que João Teixeira acumulou ao longo desses anos. Documentos levantados pela Polícia Civil do Estado de Goiás, mostram que o suposto médium João Teixeira, recebeu em suas contas bancárias quase R$ 240 milhões entre 2009 e 2019. Além de ser proprietário de instituições de caridade, fazendas, gado e até sócio de um garimpo.

E também foi lá, onde o mesmo abusou de diversas mulheres por décadas, com mais de 600 denúncias realizadas contra ele.

Além dos crimes sexuais, João de Deus também foi indiciado por outros crimes como: falsidade ideológica, corrupção de testemunhas, coação e posse ilegal de armas de fogo e munição. E também por crimes de colarinho branco, é claro. O mesmo foi condenado há quase 100 anos de prisão em 2019 pelos crimes sexuais cometidos, mas atualmente está em prisão domiciliar.

Foi sua própria filha quem fez a primeira denúncia, após isso, mais mulheres se sentiram seguras para denunciar, e foi como uma torrente de denúncias vindas de centenas de mulheres, do Brasil e do mundo.

Mas como disse anteriormente, ele era um homem de posses, com grande influência e isso fez com que muita gente acreditasse que a justiça não chegaria, que o homem tinha poder em demasia.

Para aqueles que moravam na região ou trabalhavam para João Teixeira, o mesmo era visto como um “coronel”, que fazia o que bem desejava e não se acanhava sobre o uso de violência contra aqueles que contrariavam suas decisões.

João de Deus não era um homem com quem se brincava.

O exorcismo na prisão.

 Em 2019, durante seu período de encarceramento, ocorreu um fato no mínimo interessante.

Em 04 de novembro de 2019 relatos de um exorcismo realizado por João de Deus, no Núcleo de Custódia de Aparecida de Goiânia, surgiram.

 

Segundo relatos, um dos presos detido naquela unidade, foi amarrado por seus colegas de cela por estar, segundo os presentes, possuído. É descrito que o preso supostamente possuído, se arrastava com uma força descomunal ainda que amarrado, provocando medo nos outros detentos.

Um dos funcionários do centro de detenção, ao se deparar com a cena assustadora, foi até João de Deus pedir que ele ajudasse a conter o homem supostamente possuído.

João de Deus, apoiado em outro colega de cela e em sua bengala, caminhou até a comoção. Ordenou aos presos que seguravam o homem que o soltassem, e então clamou por Dom Inácio de Loyola.

Logo em seguida João de Deus, fez uma prece em “uma língua desconhecida” e então disse ao homem: Abra os olhos.

É dito que após isso foi como se o homem supostamente possuído encontrasse paz.

Ao ser questionado sobre o feito, as palavras de João Teixeira foram: “Deus me deu autoridade para expulsar aquele espírito maligno. Quando Deus me inspira, eu sinto minha boca ficar como mel”.

A casa e o homem.

Há alguns anos, pouco antes do escândalo envolvendo o dito médium, fui convidada a ir até a cidade de Abadiânia, visitar a Casa de Dom Inácio de Loyola e ver João de Deus. O convite não veio de forma inesperada, já que aqueles que me convidaram acreditavam em seus feitos, pelo menos até aquele momento, anterior as denúncias ocorridas.

E eu, cria de São Tomé, que só acredita vendo mas deveras curiosa, obviamente fui.

Mas me surpreenderia bem mais do que poderia imaginar, e não falo sobre milagres, mas sobre elementos que jamais imaginaria encontrar naquele lugar.

A cidade é relativamente próxima ao Distrito Federal, e eu que sempre ouvi falar das longas filas para acesso ao local, já sabia sobre a necessidade de chegar bem cedo, pois em determinadas épocas, devido ao fluxo de pessoas, era aconselhável que as pessoas que buscavam atendimento chegassem durante a madrugada, onde esperavam em longas filas para ver o “famoso médium”.

Quando pequena, as histórias que ouvia, eram de um homem muito humilde que tinha um dom extraordinário para curas e previsões, sobre tais atendimentos ocorrerem em sua humilde casa e onde nenhum centavo era cobrado.

Mas bem, não foi nada disso o que encontrei ao chegar naquele lugar.

A verdade é que houve um dia, onde se tratava apenas de um homem humilde que não cobrava por seus atendimentos, mas muito havia mudado ao longo dos anos e não havia ali, uma remota lembrança sequer, sobre as histórias contadas outrora.

A fila e o homem no escuro.

 Haviam pessoas encarregadas de organizar a ordem e o andamento daquela consulta (ou sei lá o que), senhas eram distribuídas para a formação de uma fila para a entrada no salão de atendimento, em forma de L.

As pessoas eram organizadas em uma fila, com um determinado número de pessoas, que ficava próxima a entrada desse salão, Após a primeira leva de pessoas sair, outra fila já formada começava a adentrar o local. E o processo se repetia até que todos fossem atendidos.

Se faz necessário mencionar que, havia apenas a luz do sol na entrada daquele longo corredor, mas nenhuma fonte de luz por ele, de forma que não havia luminosidade suficiente ao final do mesmo, onde se encontrava João de Deus. Sentado em uma espécie de poltrona com duas mulheres vestidas de branco ao seu lado que o auxiliavam, não era possível ouvir o que ele dizia, pela falta de iluminação, sequer era possível ver se ele dizia algo, ou se as comunicações eram feitas apenas de forma gestual como observei.

Ele tinha em seu colo uma espécie de receituário médico onde o mesmo escrevia algo ilegível (ao menos para mim). E então, após pegar a tal receita (cápsulas de passiflora) as pessoas eram encaminhadas individualmente para o outro lado do salão, que ficava suficientemente distante para que as luzes que iluminavam aquele lado do salão não iluminassem o local onde estava o médium.

As pessoas eram orientadas a se sentarem em longos bancos de madeira dispostos ali, o teto daquele local estava decorado com luzes de diferentes cores (violeta, azul, etc).

Nas paredes haviam prateleiras com estátuas de santos católicos.

Tocavam músicas em suave tom instrumental enquanto um aroma amadeirado e levemente doce emanava, preenchendo o ar (claramente um misto de cromoterapia, musicoterapia e aromaterapia).

Alguns meditavam, outros faziam orações.

Após alguns minutos ali, as pessoas eram direcionadas m área externa, para andar pela propriedade, visitar a loja e aguardar até a hora do almoço.

A tal receita distribuída, deveria ser levada até a “farmácia” onde eram vendidos frascos com cápsulas de passiflora para aqueles que haviam pego a mesma (ou seja, todos os que estavam naquela fila).

Triângulos aqui, triângulos lá, triângulos em todo o lugar.

 Comparada a humilde, pequena e pacata cidade, a Casa de Dom Inácio de Loyola mais parecia um lugar suntuoso, localizada num dos locais mais altos da cidade com uma vista deslumbrante da floresta abaixo, como uma espécie de píer, com vista para um mar de árvores que rompia até o horizonte (e bem, tudo aquilo pertencia a João Teixeira de Faria).

O local se assemelhava a uma chácara com dependências apartadas e cada uma com sua função. Havia então um salão para atendimento em formato de L, a área comum (uma área externa) onde as refeições eram servidas (a famosa “Casa das Sopas” citada anteriormente), a cozinha, a “farmácia”, os banheiros e a loja.

Era um local grande, gramado e com algumas árvores em sua parte externa. A vista do local era um espetáculo por si só, tamanha era a beleza.

Mas uma das coisas mais interessantes a respeito eram os pilares espalhados pela propriedade, com triângulos entalhados, triângulos esculpidos, triângulos em todo lugar, as pessoas se dirigiam a eles e encostaram suas mãos, ou suas testas e faziam orações (eu presumo). Acredito eu que nenhum deles imaginava o que era ou pra que servia aquilo, e certamente não cogitaram os riscos a respeito.

E de fato o local estava bem cheio, com pessoas de diversos lugares do mundo (e também locais) vestidas de branco, e que claramente estavam ali há dias e alguns até meses (como pude confirmar conversando posteriormente ao “atendimento” com algumas pessoas que ali estavam).

A loja.

Dentro da propriedade havia uma pequena loja, a loja em si era pequena, mas os valores cobrados eram exorbitantes.

Ali eram vendidos livros, camisetas, quadros, cristais e é claro… Triângulos.

Concluindo.

 Não houve nada de extraordinário ali, não naquele dia pelo menos, ninguém foi chamado para um local separado, procedimento nenhum foi executado, enfim.

Eu não presenciei nenhum feito daquele homem que permaneceu o tempo todo sentado naquela poltrona e curvado sobre si.

Ainda que estivesse aberta a entender o que se passava ali, o que ficou claro, pelo menos para mim, foi o uso de combinações, que para ocultistas e estudiosos, são extremamente comuns e usuais.

Saber que, com um pouco de contato com a natureza, meditação, cromoterapia, aromaterapia e orações pessoas podem alcançar estados alterados de consciência, além de promover calma, bem estar e redução do stress.

A verdade é que não se pode cobrar de pessoas sem o devido estudo e prática que saibam com “o que” estão lidando, confesso ter meus palpites, mas vou deixar que cada um aqui tire suas conclusões.

Sobre o homem, não posso dizer com certeza se o que havia ali era apenas um homem, um homem comum, corrompido, de comportamento vil e doentio, completamente incompatível com tudo o que dizia crer e pregava.

E ainda paira a dúvida sobre se era uma entidade, que claramente usava absolutamente tudo ao redor para que passasse despercebido, mascarando, quase como que escondido em meio a tudo aquilo, pelo menos para mim.

Seria justo questionar todo um sistema de crenças pelas atitudes de um homem ou realmente falta um pouco de questionamento quando se trata de fé?!

Por hoje ficamos por aqui. Façam parte do problema.


Rafaella Fernandez: Taróloga, Praticante de magia natural e cerimonial. Colaboradora fixa nos projetos: Morte Súbita, enochiano.com.br, lemegeton.com.br e trithemius.com.br

Deixe um comentário

Traducir »