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Sitra Achra

Titanomaquia: a batalha contra Deus

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Morbitvs Vividvs

Antes de serem um grupo de super-heróis alvo fácil de fanfics eróticas e antes de serem a melhor banda de todos os tempos da última semana, os Titãs foram um grupo de personagens mitológicos que desafiaram os deuses do Olimpo. Essa história é contada na Teogonia de Hesíodo e mencionada por Plutarco. Para encurtar a história, eles perderam a batalha, e Zeus, com sua barba longa e relâmpagos, os baniu para o fundo do Tártaro. Uma história muito parecida com a Rebelião de Lúcifer, mas com suas próprias lições a ensinar aos satanistas.

A primeira delas é que, ao contrário do mito cristão, no qual o caos é o desafiante, aqui o caos é o início, e a declaração de guerra vem de Zeus ao se aventurar a impor seu império de ordem única. Eram os Titãs que governavam o mundo quando as forças da ordem os desafiaram. Eram os gigantes que governavam o mundo antes dos deuses, colocando-os em uma situação muito semelhante aos Deuses Antigos de Lovecraft. Na genealogia divina, eles foram colocados como filhos de Urano, o deus mais antigo do próprio tempo (Cronos é um Titã), e sua mãe era Gaia (a Terra, a Matéria)… quão bem isso não descreve os satanistas de hoje com afinidades com os deuses dos mitos de Cthulhu e com o bode de Mendes?

Outro ponto que torna toda essa história relevante é que enquanto a Rebelião de Lúcifer foi encabeçada por uma única entidade que influenciou e liderou “um terço dos anjos”, os Titãs não eram um grupo homogêneo. Cada um deles era um proto-deus mais antigos que Homero e que continuavam de uma forma ou de outra sendo adorados entre os gregos. A narrativa da Titanomaquia (A Guerra dos Titãs) é portanto muito semelhante ao  Antigo Testamento onde os antigos deuses semitas são demonizados em prol de Jeová. Como os demônios que perderam tempo falando com Jesus, os Titãs eram Legião, mas diferente deles não tinham uma hierarquia. Há ordem e normatividade no alto do Olimpo, mas no Tártaro reina o Caos.

Mas como falamos, os Titãs perderam aquela batalha. A guerra é claro continua. Contudo no preço que tiveram que pagar está a lição titânica mais importante para o satanista. Se você quiser resistir ao império de Zeus, Deus ou de quem quer que se intitule dono da bola chamada Terra deve saber que aqui existe custo, fardo e consequência. Vemos isso també, quando Satanás “cai do seu como um relâmpago”, as a imagem popular do diabo como funcionário de Deus batendo cartão no inferno para espetar pedófilos com seu tridente enfraqueceu essa mensagem.

Os Titãs foram cada um castigados de uma maneira. Muitos como Cronos e Tifão foram simplesmente mortos e aqui já há uma lição. Você estaria disposto a morrer em batalha pelo que acredita? Atlas foi condenado carregar o universo nas costas e sentir eternamente o peso dos céus e da terra nos ombros. Se você é um satanista praticante certamente já passou por isso em momentos em que algo precisa ser feito e você parece ser a única pessoa com iniciativa ou coragem de se expor ou comprometer. Prometheu foi acorrentado no alto do monte do Cáucaso onde diariamente seu peito era picado por uma água que lhe arrancava o coração que então crescia novamente. E da mesma forma se você já ousou a altura das águias já deve ter sofrido ataques e bicadas que miraram em lhe ferir o coração.

A Batalha contra Deus

Discutir a existência e a crença em “”Deus”, “Zeus”, “Titãs” ou “Satan” é perder tempo. O que importa é que temos símbolos de escravidão e símbolos de independência. Deus não é só o personagem de ficção favorito dos teístas, é também a tradição em que você nasceu, a força policial desmedida, a carteirada do desembargador, a papelada que o demiurgo chamado estado faz você preencher todos os anos, a professora que mandou você ficar quieto, o chefe que esquece que a equipe é composta de seres humanos, o labirinto vazio feito de cordas que você precisa percorrer para chegar a um bilhete de avião,  o desejo artificial criado pela propaganda, o ódio artificial gerado pela pressão de grupo. Zeus é fácil de odiar ou amar, mas isso não importa. O que importa é se você tem ou não um para-raios. E onde houver tiraria, uma hora ou outra, haverá Titanomaquia.

Assim como os Titãs, os satanistas devem estar prontos para  enfrentar forças descomunais que atuarão contra ele. Ninguém liga se você come ou não carne na semana santa, mas grande parte da sociedade existe como uma máquina de submissão projetado para extrair de você o máximo de energia, tempo e dinheiro e fazer você agradecer por isso. Essa é a verdadeira rebelião de Lúcifer, essa é a vingança dos Titãs. A religião é apenas uma das frentes de batalha. Essa Titanomaquia passa por pelo menos quatro fronts de batalha. Setnakr Sez, o alto sacerdote do Temple of Set de 1996 a 2002 fala de  quatro pontos de tensão que fazem parte deste jogo: a matriz social,  a confusão ética, a superficialidade e a ignorância. Vejamos cada uma delas.

A Matriz Social

A partir do momento em que o satanista (ou qualquer um) começa a pensar por si mesmo, a matriz social reagirá. Isso ocorre porque você é de fato um problema. Alguém que questiona as regras do jogo em um jogo que não pode se pausado. Você simplesmente começa a jogar do seu jeito e quando não estiver mais atendendo as expectativas do personagem que você deveria estar atuando o resto do elenco vai se entreolhar em desaprovação. Talvez você seja expulso do palco e isso é pode ser bom sinal.

Mas seguir ou não o roteiro não muda o fato de que somos criaturas sociais e interdependentes. Isso nos leva a nossa segunda área de pressão, a imaturidade. Além do litoral do “é legal irritar as pessoas” há o oceano do desejo humano de amar e se amado. A família e os amigos são os peixes dessas águas. Essa parte da Titanomaquia geralmente ou acaba com a revolta ou acaba com a amizade ou a matriz familiar. É preciso adquirir um certo grau de maestria social para ao mesmo tempo questionar a matriz social e ser um membro da família.

O satanista não deve buscar a aprovação de todos mas também não deve ignorar os sentimentos e vontades daqueles com quem convive e depende. Certas coisas acontecem e é preciso força interior para continuar no mal caminho. Abandonar qualquer comprometimento com a matriz social é como se fazer greve de fome porque não concorda com o sistema digestivo. As Onze Regras Satânicas da Terra são basicamente sobre isso. Não seja um cuzão.

Confusão Ética

Eventualmente o satanista chegará a um ponto em que perceberá que existe uma diferença entre o “bom”, no sentido de normas sociais aceitáveis, e o “bem” no sentido de tudo aquilo que melhora e aprofunda a experiência de humanos saudáveis. Deus é bom, mas Satã é bem melhor. Esses questionamentos uma hora ou outra acontece na maioria das pessoas, mesmo sem a roupagem satânica, mas igualmente na maioria das pessoas é um aborto intelectual que desparece muito antes de der qualquer efeito prático em suas vidas. No satanista entretanto esse questionamento persiste por tempo o suficiente para formar uma imagem e ganhar um espaço em sua mente, seja na figura de Satanás ou em alguma “má influência” humana que conheceu em sua juventude.

Satan, Lúcifer, Set, os Titãs são só algumas dessas formas, existem muitas outras. Na chamada dos Nomes Infernais que abre o Livro de Leviatã da Bíblia Satânica LaVey menciona pelo menos setenta opções diferentes. Se você vê a sociedade patriarcal como a fonte de todo mal, então a “Grande Deusa” é uma provável figura de escolha para sua dissidência espiritual. O problema aqui é ocorrer o que de fato ocorreu em muitos adeptos da wicca,  a substituição da figura onipotente, ordenadora e abstrata por outra. Nesse sentido deuses demoníacas como Lilith, Kali e Tiamat cumprem este papel de forma muito mais eficiente. Quando essas imagens são ressignificadas pelo individuo para representar emancipação e antinomia em vez de medo e horror suas histórias ( e consequentemente todos os esforços midiáticos) passam a ter um efeito libertador, exatamente o oposto do que geralmente são projetadas para ter.

Superficialidade

A superficialidade é o próximo ponto a ser superado. Ocorre que no mundo atual todas as imagens são usadas e abusadas para os mais diversos fins. Não é diferente com o diabo. As figuras e histórias destes antigos deuses e titãs aparecem em filmes, jogos, músicas e livros com os mais diferentes fins, fins estes que direta ou indiretamente envolvem a manutenção de um mercado consumidor. As imagens de filmes de terror e músicas satânicas podem ser ótimas – mas sobre o que falam? Descobrir o que fazer depois de pendurar a cruz invertida no pescoço demanda um esforço que poucas pessoas podem suportar. É justamente para fugir deste esforço que a imagem satânica ganha mais destaque do que o pensamento e a prática. No momento em que as pessoas falham em fazer algo mais difícil do que usar uma camiseta, outra mais uma fileira de Titãs é eliminada.

Ainda hoje a maioria das imagens e informações sobre o satanismo são estudos comportamentais, propaganda cristã ou material esotérico que de alguma forma quer convencer seu  público de algum contato com o senhor da trevas que pode ser alcançado “tão logo se ouça o tilintar a moeda lançada na caixa.’ Quando o símbolo se torna mais importante do que ele simboliza a pessoa está pronta para sofrer qualquer tipo de lavagem cerebral. Para que isso não ocorre é preciso questionar criar uma síntese individual do que aquela imagem significa para você de forma individual em vez de se levar pelos pensamentos coletivos. Isso significa atuar como um xamã de si mesmo e criar seus próprios modelos mitológicos para auto-orientação. É por isso que o os demônios e seres das trevas tiveram, tem e sempre terão um papel tão impactante na criação artística. Mas isso é tão raro, tão difícil e exige uma profundidade do Eu tão grande que a humanidade praticamente abandonou essa metodologia há três mil anos – a maioria das pessoas simplesmente não faz mudança alguma. Ficam com a imagem externa que mais lhe agrada e a doutrinação interna inseparável de suas tripas. Se tornam Kinder Ovos: escuros por fora, mas branquinhos por dentro e seu interior um brinquedinho na mão da primeira criança gulosa que os abrir.

A saída aqui é perceber que fazemos parte de uma historia e com disse LaVey na sua lista de Pecados Satânicos “sempre tenta manter uma ampla visão histórica e social na mente.” O satanismo precisava amadurecer ou cada geração, como Sisifo se veria obrigada a carregar a pedra rumo ao topo novamente e reinventar a roda. Isso nos leva ao quarto ponto de tensão.

Ignorância

Com poucas e preciosas exceções, as figuras satânica não oferece um modelo adulto como o satanismo literário que Anatole France, John Milton, e Fernando Pessoa ofereciam. Essa é a razão do The Temple of Satan dar mais importância a primeira geração de satanistas literários, da Satanic School de Byron e Shelley do que a própria obra de Lavey. A Church of Satan, é claro não gosta nada disso,  mas isso é muito curioso se pensarmos que um dos pecados satânicos de Lavey é justamente a Negligência dos Ortodoxos Passado.

Isso leva a uma certa “erudição satânica” que embora geralmente comece por razões meramente estéticas desemboca em um complexo estudo das estruturas da psique humana. Isso não inclui apenas livros. Deve-se olhar para outras pessoas (seja históricas ou de seu conhecimento pessoal) como modelos ou como disse LaVey “a chave é escolher um mestre sabiamente, ao invés de ser escravizado pelos caprichos de muitos.”. O medo de ser controlado por este mestre é uma bobagem, pois qualquer indício disso demonstra que não se trata de um mestre satânico e portanto não merece qualquer tipo de atenção. Ou melhor ainda inspire-se em dois ou três pessoas que produziram mudanças reais em si mesmas e no mundo.  Mas para trazer estas realizações para a própria vida, mais do que ler e ouvir será preciso aprender a falar. Isso significa aprender certas habilidades de comunicação e pensar sobre o que vai ser dito e qual a melhor forma de se dizer. “Não deem ouvidos ao diabo”, dizem os pastores, porque sabem que ele tem bons argumentos.

Vivendo para lutar

Por último, uma vez que a disseminação de tal material é difícil em um mundo governado por grandes corporações que têm interesse em não promover a individualidade – o satanista (normalmente um anarquista) – deve se unir voluntariamente, o que fornece tanto uma matriz social quanto se prepara para a mudança cultural. Deve-se enfatizar, no entanto, que o satanismo não tem a mudança cultural como  objetivo. Se alguém meramente se identifica com uma mudança cultural/política e é bem-sucedido, torna-se redundante e fraco – e se fracassa, é amargo e alvo de piadas. A mudança cultural, como os músculos adquiridos trabalhando em uma academia, não é o objetivo do indivíduo – mas um efeito colateral agradável e uma maneira de medir o progresso.

Todas essas dificuldades, por desgraça que seja ao indivíduo são muito boas para o satanismo em si, no sentido em que cria uma verdadeira seleção natural. A natureza da Titanomaquia levará a uma minoria em direção a uma lenta autotransformação e uma maioria a uma rápida autodeterioração. Cada uma das quatro áreas de tensão oferece pessoal para aqueles que as superam. Sem a possibilidade da rebeldia não há crescimento. Se a matriz social não reage, se não há confusão ética, se não há maturidade a ser conquistada nem informação a ser buscada teremos apenas a imagem um tanto deprimente de um homem de trinta anos, usando uma camisa de black metal desbotada morando com os pais e fazendo o sinal da mão chifrada nas fotos de família. É fácil encontrar estes tipos, principalmente nas redes sociais onde criam personagens satânicos que nuca realizaram nada e citam  livros que nunca leram. Geralmente escritos por carecas.

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