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Assexualidade e Satanismo

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Pelo Reverendo Byrd, Sacerdote na Church of Satan.

Anton LaVey não inventou a palavra “assexual”, nem a Bíblia Satânica foi o primeiro livro a descrever a assexualidade. No entanto, LaVey foi provavelmente a primeira pessoa a explicar a assexualidade de forma positiva em um livro amplamente publicado disponível para um grande público em geral; e em termos que reconheceríamos como uma identidade sexual legítima hoje em dia. Dada a falta de visibilidade e compreensão da assexualidade mesmo em 2019, acho que falar sobre ela na Bíblia Satânica é fenomenalmente progressivo para 1969 – embora não seja surpresa que as pessoas não citem essa fonte.

Ao ler este meu artigo tenha em mente que este ainda é um projeto de pesquisa em andamento e, embora o que eu apresento seja factual, até onde sei, também é indubitavelmente incompleto, pois há uma grande quantidade de material obscuro e obsoleto que exigiria grande custo e tempo para classificar. Além disso, eu não sou assexual e não estou tentando falar por assexuais. Estou apenas interessado na origem da palavra em relação ao seu uso na Bíblia Satânica, e como a Bíblia Satânica foi provavelmente a primeira fonte a abraçar a palavra como algo positivo que reconheceríamos pelos padrões modernos.

The Online Etymology Dictionary (O Dicionário de Etimologia Online) coloca a assexualidade como:

“1829, um termo em biologia, ‘sem sexo ou sistema sexual’, um híbrido de a- ‘não’ + sexual. Em contextos gerais, ‘[i.e. falta de] sexualidade, não sendo ou referindo-se a nenhum dos sexos’, atestado de 1896.”

Presumivelmente, “atestado de 1896” é em relação a data do trabalho de Magnus Hirschfeld com seu “Sappho und Sokrates (Safo e Sócrates)”, publicado naquele ano. Até onde posso dizer a palavra “assexual” não é realmente usada, mas sim “Anesthesia Sexualis (Anestesia Sexual)” e é usada para descrever indivíduos “sem qualquer desejo sexual”. A palavra “assexual” aparece no trabalho posterior de Hirschfeld, “Sexualpathologie Teil I (Patologia Sexual Parte I)” (1916) e novamente nas partes II e III, mas o termo parece se aplicar tanto a pessoas sem desejo sexual quanto a pessoas rotuladas como “automonossexuais”, na medida em que têm um desejo sexual, mas apenas por si mesmos. A obra de Hirschfeld amarrava frouxamente o que hoje reconheceríamos como assexualidade, mas não estabeleceu um padrão para o uso da palavra no trabalho de outros autores nas décadas imediatamente seguintes.

Antes de Hirschfeld, Karl-Maria Kertbeny – mais conhecido por cunhar os termos “heterossexual” e “homossexual” – fazia-se referência ao que chamou-se de “monossexuais” em relação às pessoas que apenas se masturbam. Mas não está claro o que motivou esses “monossexuais” a se entregarem apenas a atividades solitárias; eles eram realmente e genuinamente assecuais desinteressados ​​​​em sexo e se masturbavam por razões assexuais (por exemplo, o depósito de serotonina; “troca de óleo”), ou esses monossexuais tinham desejo e orientação sexual, mas eram incapazes de fazer sexo com outras pessoas (por exemplo, saúde / doença) ou simplesmente não tinham sucesso em fazê-lo (por exemplo, o que chamaríamos de “incel”, hoje. (“Incel”, é a abreviatura de “involuntary celibates”, ou “celibatários involuntários”, uma referência a membros de uma subcultura virtual que se definem como incapazes de encontrar um parceiro romântico ou sexual, apesar de desejarem ter, um estado que descrevem como “inceldom”). Independentemente disso, que eu saiba, a palavra “assexual” ainda não havia sido usada.

Outros materiais que usam a palavra em um contexto de sexualidade humana publicados depois de Hirschfeld, mas antes de A Bíblia Satânica são principalmente livros de psicologia clínica e sexologia que foram escritos para profissionais médicos de seu tempo; geralmente não destinados ao consumo do grande público. No entanto, memso essas fontes não usam o termo da mesma maneira que a Bíblia Satânica. Eles usarão terminologia semelhante, como “frigidez” ou “aversão/apatia sexual”, mas sempre em um contexto negativo como um mau funcionamento a ser superado e com razões vagas ou imprecisas por trás desse comportamento. Quando o termo “assexualidade” é usado, as fontes parecem não concordar sobre o que significa ou como deve ser usado.

Na década de 1940, foi desenvolvida a Escala Kinsey, que era um sistema de classificação que variava de exclusivamente heterossexual a exclusivamente homossexual com um espectro intermediário. Essa escala incluiu uma “categoria X” para pessoas que não tinham preferência sexual, mas a palavra “assexual” novamente não foi usada. Em “Sexual Behavior in the Human Male (Comportamento Sexual no Homem Humano)” (1948) de Alfred Kinsey, Wardell Pomeroy e Clyde Martin, a apatia em relação ao sexo por parte dos homens é descrita. Indícios do que reconheceríamos como assexualidade estão enterrados, mas o ponto é perdido:

“Há outro grupo de homens […] que são apáticos. Eles nunca, em nenhum momento de suas histórias, deram provas de que eram capazes de qualquer coisa, exceto baixas taxas de atividade.”

Estas são pessoas que seriam descritas, figurativamente, como sendo de ‘baixo desejo sexual’. Se os fatores são biológicos, psicológicos ou sociais, é certo que tais pessoas existem. Após essas pessoas apáticas terem tido o orgasmo, elas podem passar alguns dias ou semanas sem mais excitação. Há poucos ou nenhum estímulo psicológico que as excitará e mesmo quando esses machos deliberadamente se colocam em situações eróticas que envolvem carícias ativas e manipulação genital, eles podem ser incapazes de responder mais de uma vez em várias semanas. Essas pessoas fundamentalmente apáticas são as que são mais frequentemente morais (conformes com os costumes), mais insistentes na questão de que controlar a resposta sexual é algo simples e mais propensas a se oferecerem como exemplos das possibilidades do direcionar energias sexuais provavelmente inexistentes, mas tal inatividade não é mais sublimação do desejo sexual do que cegueira ou surdez ou outros defeitos perceptivos são sublimação destas capacidades sensoriais.”

Os autores “Sexual Behavior in the Human Female (Comportamento Sexual na Mulher Humana)” (1953) descrevem “frigidez sexual” em mulheres, mas da mesma forma erram o alvo em relação à assexualidade. “The Sexual Urge: How It Grows or Wanes (O Desejo Sexual: Como Cresce ou Diminui” (1933) de Charles Samson Féré usa a palavra “assexual” mas não em relação à falta de desejo sexual de uma pessoa, mas sim para descrever motivações não sexuais por trás do ciúme, especificamente, quando o ciúme não tem competição sexual (por exemplo, entre pai e filho quando a afeição de um ou outro é transferida para um amante), por exemplo, os pais daqueles que excitam o ciúme.”

A palavra aparece em “The Sexual Life in Our Time (A Vida Sexual em Nosso Tempo)” (1926), de Iwan Bloche, descrevendo o Dr. Otto Weininger como um “apóstolo” da assexualidade, mas depois descreve a visão de Weininger como “o tipo mais elevado de ser humano é o não-sexual, aquele que renuncia a toda sexualidade”. O livro de Weininger, “Sex and Character (Sexo e Caráter)”, do qual isso é citado, descreve algo mais próximo do celibato do que da assexualidade, dado o uso da palavra “renúncia”. A assexualidade é diferente do celibato, pois este último é para pessoas com sentimentos sexuais, mas que optam por desconsiderar ou suprimir (ou seja, “renunciar”) por qualquer motivo, enquanto os assexuais não têm sentimentos sexuais e, portanto, não têm nada a renunciar. Weininger também denigre as mulheres como “radicalmente más” que precisam de “aniquilação” por sua audácia de tentar sexualmente seu tipo de assexual, que aparentemente só pode ser do sexo masculino, mas como os assexuais como os entendemos não poderiam ser tentados por tal sedução isso ilustra ainda mais quão ignorantes e irrelevantes eram os pontos de vista de Weininger.Mais de Weininger:

“A mulher, que é apenas sexual, pode parecer assexuada porque ela é a própria sexualidade, e assim sua sexualidade não se destaca separadamente do resto de seu ser, seja no espaço ou no tempo, como no caso do homem”.

A palavra aparece em “The Sexual Perversions and Abnormalities (As Perversões e Anormalidades Sexuais)” (1940) de Clifford Allen, mas em relação à sublimação como tratamento para a sexualidade “anormal” (ou seja, não heterossexual): instintiva [preferência sexual] pela substituição de uma [preferência] assexual”. Allen não está sugerindo que a assexualidade é uma preferência natural, mas que um desejo sexual anormal (como a homossexualidade, na época) está presente e um esforço consciente para evitar esse desejo substituindo-o por um não sexual é feito por sublimação (ou seja, substituição). Allen admite que essa forma de tratamento tem seus riscos e desvantagens, incluindo os instintos naturais que se manifestam de maneiras insalubres e perigosas. Na edição de 1949 do mesmo livro, Allen descreve a assexualidade de forma mais profunda e mais próxima do que podemos reconhecer, mas de forma indireta. Ele o descreve e os confunde como um dos quatro tipos de travestismo, que ele diz terem sido definidos por Hirschfeld. Cada seção deste livro tem sua própria bibliografia, mas nenhuma menção à obra de Hirschfeld da qual ela é citada está incluída. No entanto, esses tipos incluem assexuais, heterossexuais, homossexuais e narcisistas, e um quinto tipo, bissexual, “sugerido por outros escritores”. Allen explica indiretamente:

“A ideia de assexualidade, é claro, é que o paciente não possui nenhuma sexualidade fortemente definida e, portanto, usa roupas masculinas ou femininas indiscriminadamente. Isso, sentimos, é um erro. No caso dos homens, há penas severas por usar roupas do sexo oposto e mesmo nas mulheres pode haver ridículo por se vestir muito como um homem. O travesti obtém uma excitação definida, realmente uma excitação sexual, ao se vestir da maneira proibida. Se um homem é psicologicamente assexual certamente ele não obteria excitação ao vestir roupas de mulher e, a menos que houvesse algum forte desejo, ele não arriscaria penalidades por fazê-lo. Que existem alguns indivíduos que sentem pouca excitação na esfera sexual, seja normal ou anormal, estamos dispostos admitir, mas esses indivíduos se contentam em continuar uma existência monótona sem se interessar pelos outros. Eles são as últimas pessoas a arriscar sem lucro.”

Em “Psychopathia Sexualis (Psicopatia Sexual)” (1924) pelo Dr. R.V. Krafft-Ebing, há uma seção intitulada “Anæsthesia Sexualis (Ausência de Sensação Sexual)” na qual Krafft-Ebing descreve vários estudos de caso de pessoas sem desejo sexual. Esta é a mesma frase usada por Magnus Hirschfeld em seu “Sappho und Sokrates (Safo e Sócrates)”. Krafft-Ebing separa essa “anormalidade” em dois grupos, “anomalia congênita” e “anestesia adquirida”. Ele abre esta seção com:

“Somente aqueles casos podem ser considerados como exemplos inquestionáveis ​​de ausência de instinto sexual dependente de causas cerebrais, em que, apesar dos órgãos geradores normalmente desenvolvidos e do desempenho de suas funções (secreção de sêmen, menstruação), as emoções correspondentes da vida sexual são absolutamente [faltas]. Esses indivíduos funcionalmente assexuados são casos raros e, de fato, sempre pessoas com defeitos degenerativos, nos quais podem ser observados outros distúrbios cerebrais funcionais, estados de degeneração psíquica e até sinais anatômicos de degeneração.

 

Embora os casos individuais apresentados no livro descrevam atividade assexuada entre o que claramente parecem ter sido assexuais, mas sempre com as implicações depreciativas de Krafft-Ebing de “degenerações” mentais ou físicas e a palavra “assexual” nunca é usada. Esses livros, e tenho certeza de muitos outros, ilustram como a aplicação da palavra “assexual” foi dispersa e vaga na primeira metade do século 20.

Talvez o livro que mais se aproximou de descrever a assexualidade como LaVey fez em A Bíblia Satânica seja “Patterns of Psychosexual Infantilism (Padrões de Infantilismo Psicossexual)” de Wilhelm Stekel (1952). Nele, ainda que de forma breve e indireta, a assexualidade é descrita como sublimação; algo que acontece quando uma pessoa está muito preocupada com estímulos não sexuais para se interessar por sexo e, como tal, o desejo sexual existe, mas é latente e pode “explodir” subitamente mais tarde na vida.

LaVey descreve a assexualidade na Bíblia Satânica:

“Assexuais são invariavelmente sublimados sexualmente por seus empregos ou hobbies. Toda a energia e o interesse motivador que usualmente seriam dedicados à atividade sexual são canalizados para outros passatempos ou para as ocupações de sua escolha. Se uma pessoa favorece outros interesses sobre a atividade sexual, é seu direito, e ninguém está justificado em condená-la por isso.”

Embora as semelhanças entre LaVey e Stekel sejam óbvias, as diferenças são encontradas onde o trabalho de Stekel sugere que o interesse sexual está presente, mas enterrado por outras distrações e provavelmente se manifestará mais tarde na vida, então tudo será “normal” novamente, pois essa preocupação assexual foi considerada inofensiva, mas em última análise, anormal e insalubre. LaVey, por outro lado, aponta:

“Em muitos casos de sublimação sexual (ou assexualidade), qualquer tentativa de emancipar-se sexualmente seria devastadora para o assexual”.

Aqui LaVey afirma claramente que qualquer manifestação (por exemplo, consciente ou subconscientemente, em uma tentativa de “encaixar”) da sexualidade no assexual iria contra sua própria natureza e produziria resultados insalubres. LaVey continua:

“No entanto, a pessoa deve pelo menos reconhecer o fato de que isso é uma sublimação sexual”.

Isso significa simplesmente ser honesto consigo mesmo sobre como essa energia, que é sexual para a maioria das pessoas, está presente, mas se manifesta como outra coisa no assexual – e que não há problema em fazer isso.

Uma diferença adicional e significativa entre qualquer um dos autores mencionados acima e LaVey é que na Bíblia Satânica qualquer orientação sexual ou fetiche é considerado positivo e natural e deve ser tolerado, enquanto todos os autores mencionados anteriormente descrevem qualquer coisa fora do comportamento heteronormativo como algo negativo, decorrente de doença mental, indicativo de inferioridade ou, na melhor das hipóteses, é descrito como algo digno de pena. Da Bíblia Satânica:

“O Satanismo tolera qualquer tipo de atividade sexual que satisfaça adequadamente seus desejos individuais – seja heterossexual, homossexual, bissexual ou mesmo assexual, se você escolher. O satanismo também sanciona qualquer fetiche ou desvio que melhore sua vida sexual, desde que não envolva ninguém que não queira se envolver.”

Em resumo e para reiterar, ainda não encontrei outra fonte que preceda a Bíblia Satânica que tenha sido

  1. produzida em massa,
  2. disponível para o público em geral,
  3. definido claramente a assexualidade em seu contexto social moderno como um ato de identidade sexual genuíno das pessoas que não experimentam nenhum desejo sexual,
  4. que o faça de forma positiva e abrangente
  5. e seja completamente desprovida de implicações de que a assexualidade seja antinatural, anormal ou negativa.

Isso me leva a concluir que a Bíblia Satânica abriu o caminho para que os assexuais fossem aceitos e tivessem uma identidade. Se alguém  já entendeu a necessidade da aparente contradição de quem não tem orientação sexual ter uma “identidade” sexual, esta pessoa foi o fundador da Igreja para “não-associados”.

Hail Satan! (Salve Satanás!)

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Fonte: Asexuality and Satanism

Texto adaptado, revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.

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