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Realismo Fantástico

Historicidade e verossimilhança em confusão

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Como saber quando o fantástico carrega traços de realidade?

Shirlei Massapust

Graças ao movimento de renovação historiográfica, iniciado pela escola francesa dos Anais a partir de 1930, as fontes históricas válidas não ficaram mais restritas aos documentos escritos tradicionais, como leis, decretos e relatórios. Gradualmente os pesquisadores foram incorporando registros diversos a seus trabalhos, como pinturas, fotografias, músicas e até literatura ficcional, útil para discussão do contexto em que foi produzida. Ocorre que mesmo narrativas folclóricas e literatura infantil podem conter elementos relacionáveis e comparáveis com acontecimentos reais. Fernando Seffner e Ramiro Bicca Jr explicam:

No momento em que se considera a ficção como algo “que não é verdade”, ela se torna um obstáculo para a compreensão da realidade. Ao contrário, é preciso saber observar o quanto de verdade existe na ficção. Em muitos casos, o que aparenta ser simples recurso literário pode representar um costume da época ou um símbolo essencial para a compreensão de algum acontecimento. O importante é localizar, no texto de ficção, situações e características que incitem discussões sobre o período abordado ou o contexto em que a obra foi escrita.[1]

O filósofo e pensador russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975), no ensaio Formas do Tempo e o Cronótopo na Novela (Формы времени и хронотопа в романе, 1937), cunhou um conceito para definir a articulação na ficção das categorias de tempo-espaço[2] (ficcionais e históricas). O autor encontra no romance e seus subgêneros formas típicas de representação e organização do tempo e do espaço relativamente estáveis.

Tanto na ficção literária quanto na audiovisual, o cronótopo expressa o vínculo indissolúvel que costura as categorias tempo e espaço no tecido narrativo, formando uma trama que permite e apoia a progressão das ações, a transformação das situações, personagens e conflitos. Muitos são os fios que ligam o mundo imaginado por um roteirista com o mundo vivido por ele e pelos espectadores. Na tessitura da vida, a obra, e na obra a vida.

Cronótopos são pontes de sentido que se formam entre presente, passado e futuro; entre sujeitos e alteridades, entre outras dimensões e mundos imaginados. Quando as formas cronotópicas estão bem trabalhadas num enredo permitem processos dialógicos em múltiplos níveis, e cada vez mais camadas de sentido emergem da ficção, costurando ficção, tempo histórico e imaginário. (…) A categoria espacial é ampla: não se refere apenas aos ambientes e lugares nos quais as personagens circulam, mas a todo e qualquer objeto que estiver visível no espaço. Espaço é tudo o que se faz visível no discurso, na tela; assim como cada descrição de cena, cada imagem evocada pelas palavras no romance conta para o estudo do cronótopo. Assim, tudo o que preenche o espaço se torna espaço a ser analisado.

O espaço denuncia, caracteriza e propõe uma leitura da temporalidade. Mesmo que o tempo da narrativa seja predominantemente subjetivo, alguma construção espacial mínima é indispensável para ancorar a realidade do personagem enquanto pessoa no mundo criado e para sustentar sua verossimilhança. As narrativas dependem das bases cenográficas para se desenvolver e ganhar verossimilhança. Mesmo o realismo mágico, por exemplo, depende dessa ancoragem espacial.[3]

Numa telenovela a representação de tipos variados de cidadãos faculta a produção de sentidos e consolida para além de seu tempo histórico de produção, as narrativas e conflitos que emergem a partir dessa articulação. Mas então alguém vira lobisomem ou ocorre uma invasão alienígena e toda a logosfera (логосфера) vai para o espaço. Porque ficção é espaço de criação e pode resultar num verossímil romance histórico, mas também na fantasia cabulosa.

Sapatos de fibra de vidro e corpos modificados no século XVII

O mínimo que podemos auferir pela leitura de qualquer uma das muitas versões do conto folclórico da Cinderela é que o padrão de beleza na França do século XVII valorizava pés muito pequenos em mulheres em idade núbil. De fato, a sugestão se confirma em publicações de não-ficção sobre os costumes e hábitos da vida social dos europeus em datas próximas. Por exemplo, no século seguinte Giacomo Girolamo Casanova (1725-1798) ficou escandalizado ao ouvir sobre a quantia paga pelo Marquês Sanvitali à Julieta Preati, uma cortesã de dezoito anos. Crendo que valia a pena observar “uma mulher a quem pagaram cem mil ducados[4]” ele redobrou a atenção em sua presença e restou decepcionado pela humanidade da jovem.

Os braceletes e anéis com que se adornava, tinham o efeito de dissimular as mãos um pouco grandes e carnudas. E a despeito do cuidado com que ocultava os pés, bastou uma chinelinha indiscreta, esquecida ao lado dos folhos de sua saia, para que eu compreendesse que eles não estavam em proporção à sua estatura. Eram desproporcionados, o que não desagrada somente aos chineses, mas a todos os homens de bom gosto. Quer-se que uma mulher alta tenha pés pequenos e este capricho não é novo, já que também o teve Holofernes, que sem isso não acharia encantos em sua Judite: et sandalia ejus rapuerunt oculos ejus.[5] Em resumo, achei-a bela, mas num exame mais acurado, pondo sua beleza em relação aos cem mil ducados do Sanvitali, admirava-me da minha própria frieza e de não me ver tentado a oferecer nem mesmo um cequim para apreciar aqueles encantos que o vestido ocultava aos meus olhos.[6]

Em verdade os ossos de mãos e pés humanos sempre crescem proporcionalmente ao crescimento do esqueleto como um todo, de modo que mulheres altas necessariamente calçam conforme a estatura. Qualquer coisa diferente disso é mutação, hibridação ou magia. No que diz respeito ao conto folclórico, a fonte mais antiga localizável é a versão compilada por Charles Perrault, em 1697, onde uma jovem órfã de mãe, de moralidade impecável, sofre alienação parental e é forçada a realizar trabalhos domésticos.

A boa moça possui o estranhíssimo habito de sentar no centro da lareira, sobre as cinzas de madeira, quando não está trabalhando nem se acha ocupada com outros afazeres. Por isso uma das irmãs fazia bullying, chamando-a de “Cucendron”, algo que os britânicos traduziriam como “Cinderella” (em inglês, “cinder” é um pedacinho de madeira queimada, e é um dos produtos de uma lareira ou fogueira, juntamente com as cinzas).

Na versão de Charles Perrault a outra irmã, mais cortês, teria criado a corruptela “Cendrillon”, sonoramente mais amena e menos deselegante.[7] Todavia o último termo parece derivado da mesma raiz etimológica que nomeou o lago Cindrelu, situado em Sibiu, na Romênia. Isso suscita a dúvida de se o conto coletado na França do século XVII descreve cenários franceses ou se está ambientado em qualquer outro país europeu, em qualquer outro período histórico. Notoriamente lemos o caso de um príncipe que empodera uma plebeia sem oposição da família real, algo impensável para a realeza francesa ou inglesa, porém comum na Romênia onde toda e qualquer mulher poderia dar à luz ao futuro herdeiro do trono, desde que o rebento fosse reconhecido como filho pelo nobre pai, mesmo se concebido fora do casamento.

Na versão de Charles Perrault, por sorte, a madrinha da boa moça é uma fada (fée) capaz de produzir carruagem, cavalos, cocheiro e lacaios a partir de casca de abóbora, ratos e lagartos. Desde o nascimento, a entidade preternatural fez algo com a menina: “A boa graça é o verdadeiro dom das fadas; sem ela não podemos fazer nada, com ela somos capazes de tudo”.[8] Mesmo sendo a filha mais velha, Cendrillon é cem vezes mais bela do que suas irmãs. A fada madrinha transformou roupas feias e maltrapilhas em tecido de fios de ouro e prata, adornados com pedras preciosas. Nos pés teria surgido “um par de sandálias de cristal, os mais bonitos do mundo”.[9] Curiosamente há quem sugira uma correção pois o texto que chegou até nós estaria corrompido. Segundo Eduardo Oliveira, deveríamos ler pentoufles de vair (sandálias de pele de animal) e não pentoufles de verre (sandálias de cristal de vidro).

De qualquer forma a principal característica do calçado, já ressaltada no título, é seu tamanho pequeno (petite)[10]. Tão diminuto que não coube nos pés de mais ninguém em um reino inteiro. O filho do rei ficou fascinado pelo fenômeno que era a capacidade ímpar de calçar tais sandálias “la plus jolie du monde”. Ele só olhara para isto durante o resto do baile, apaixonado pela atraente pessoa a quem pertencia o sapatinho.[11]

Alguns dias depois, o filho do rei publicou ao som da trombeta que se casaria com aquela cujo pé entrasse na sandália. Começaram a experimentá-la nas princesas, depois nas duquesas e em toda a corte, mas em vão: levaram-na às duas irmãs, que fizeram de tudo para enfiar o pé na sandália, mas não conseguiram calçar completamente. Cendrillon, que olhou para eles e reconheceu sua sandália, disse rindo, “deixe-me ver se ela não seria boa para mim” (…). O espanto das duas irmãs foi grande, mas maior ainda quando Cendrillon tirou do bolso o par da sandália que colocou no outro pé.[12]

Nos tempos de Charles Perrault um europeu teria de andar muito para ver verdadeiros pés minúsculos. A tradição dos “pés de lótus” era praticada na China, Coréia, Indonésia, Tibete, Japão e outras localidades da Ásia. Desde bebês os pés eram enfaixados com ataduras apertadas o suficiente para fraturar ossos, forçar o calcanhar para dentro, dobrar os quatro dedos menores até a sola dos pés, e interromper o crescimento. O que se investia em dor se ganhava em status, pois um pé reduzido cabia em belos sapatinhos. Na China os pés de lótus foram referência do modelo de beleza e postura femininas até os comunistas assumirem o poder em 1949, quando obrigarem as chinesas a exibir suas deformidades e purulências sem quaisquer adornos.

Radiografia de pés de lótus.

            Voltando à coleta de Charles Perrault, suponhamos que não haja confusão entre vair (pele) e verre (cristal). É possível para um ser humano andar com um calçado feito de vidro sem estilhaçar o frágil objeto? Provavelmente nem modelos fashion pesando de 48 a 50 quilos conseguiriam realizar tal proeza. Então o calçado de Cendrillon é um OOPART (artefato futurista fora de lugar) igual aos solados de fibra de vidro produzidos somente a partir do século XX?

Vale notar que pentoufles não tem saltos altos como nos filmes da Disney. São sandálias rasteirinhas. Talvez Cendrillon não fosse uma asiática do passado que nunca tirava as meias, perdida na Europa. Seus calçados translúcidos como o vidro exibiam a atraente característica feérica que os europeus admiravam com amores platônicos. Essa mulher leve como uma pluma nasceu dotada dum fenótipo que outros imitavam a custo das dores da incapacitação. Aliás, na variante coletada pelos Irmãos Grimm, em Grimms’ Fairy Tales (1812), uma rival serra os pés para caberem no minúsculo calçado, porém sua ferida era evidente e desagradou ao príncipe.

Apesar de tudo não podemos descartar a possibilidade de Cendrillon haver sido uma personagem histórica. No mundo inteiro sempre foi costume nomear logradouros e topônimos em homenagem a personalidades conhecidas e importantes. Portanto muito provavelmente existiu alguém de nome Cindrelu que se destacou na comunidade em algum momento histórico. Por esse motivo seu nome foi dado a um belíssimo lago num paraíso verde, cheio de bichinhos; onde mais tarde os moradores das redondezas passariam a narrar avistamentos dum zmeu ou dragão vermelho que as vezes sai do lago, voa até o céu e provoca tempestades de granizo.

Notas:

[1] SEFFNER, Fernando e BICCA JR, Ramiro. O rei está nu! Fábulas e contos infantis têm muito a ensinar sobre os costumes e valores das sociedades medievais e modernas. Em: FIGUEIREDO, Luciano (ed.). Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 4, nº 39. Rio de Janeiro, SABIN, dezembro 2008, p 70.

[2] Cronótopo (хронотопа) é uma palavra derivada do grego χρόνος (tempo) e τόπος (espaço).

[3] JAKUBASZKO, Daniela; SIMPLICIA, Joyce de Moraes e SOARES, Lucas Lunguinho. Formas do ‘cronotopo’ na telenovela brasileira: exemplos da construção ficcional das categorias tempo-espaço no realismo fantástico de Dias Gomes e suas zonas de contato com a vida cotidiana brasileira. Em: DAVINO, Glaucia (org.). Narrativas difusas em suportes sensíveis. RJ, Corpo Texto, 2019, p 78-79.

[4] SEINGALT, G. Casanova. Memórias de Casanova. Trd. Caio Jardim. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957, 1º Volume, p 285.

[5] Em latim, no original: “E as suas sandálias lhe atraíram os olhares”. (Judite 16:11) — N. do T.

[6] SEINGALT, G. Casanova. Memórias de Casanova. Trad. Caio Jardim. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957, 1º Volume, p 246.

[7] PERRAULT, Charles. Histoires ou Contes du temps passé. França, Claude Barbin, 1697, p 120-121.

[8] PERRAULT, Charles. Histoires ou Contes du temps passé. França, Claude Barbin, 1697, p 148. Em: WIKISOURCE. URL: <https://fr.wikisource.org/wiki/Histoires_ou_Contes_du_temps_pass%C3%A9_(1697)/Cendrillon>.

[9] PERRAULT, Charles. Histoires ou Contes du temps passé. França, Claude Barbin, 1697, p 130.

[10] PERRAULT, Charles. Histoires ou Contes du temps passé. França, Claude Barbin, 1697, p 117.

[11] PERRAULT, Charles. Histoires ou Contes du temps passé. França, Claude Barbin, 1697, p 142.

[12] PERRAULT, Charles. Histoires ou Contes du temps passé. França, Claude Barbin, 1697, p 142-144.

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