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Queer Magic

A Natureza Queer da Gnose

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Por Steve Dee.

Provavelmente não é muito surpreendente que eu me encontre tentando escrever uma reflexão sobre como a Natureza Queer [1] e a Gnose se cruzam, dada a importância que ambas desempenham em minha vida. Minhas postagens no site e o livro A Gnostic’s Progress (O Progresso de um Gnóstico) testemunham minha tentativa de explorar a complexidade da vida humana e como utilizamos experiências de conhecimento direto em nossas tentativas de administrar o dilema da existência.

Enquanto outros podem ver a fusão da experiência Queer e gnosticismo como sendo uma excentricidade ou indulgência pessoal de minha parte, peço sua paciência enquanto tento descompactar algumas das ressonâncias que experimento. Para mim, o ponto de partida tanto para a pessoa que identifica-se como queer quanto para o gnóstico é uma sensação de desconforto e deslocamento em resposta a tentativas binárias de classificação.

Embora os gnósticos sejam frequentemente tipificados como dualistas, para mim grande parte do que está no cerne da exploração gnóstica é a insatisfação com as tentativas de dividir nossa experiência do mundo em linhas binárias. Uma ortodoxia que busca classificar as coisas em termos das obras de Deus ou de Satã fazia pouco sentido para aqueles religiosos livres-pensadores que queriam abraçar a complexidade mais plenamente. Em vez de se satisfazer com as simples respostas da fé, o gnóstico parte para o espaço profundo a fim de explorar a tensão, a complexidade e a contradição que parecem estar no cerne do mistério da vida.

O gnóstico é o cientista sagrado no sentido mais verdadeiro em suas tentativas de explorar abertamente; questionam e testam suas descobertas. Seus insights metafísicos podem não atender ao rigor do reducionista estrito, mas sua tentativa de mapear as estranhas cosmologias experimentadas por meio da percepção interior ainda nos fornece muito valor. Essas estranhas paisagens internas tiveram uma ressonância clara com psicólogos profundos, como Carl Jung, pois ele sentiu que elas forneciam uma visão sobre a natureza da experiência humana e como podemos trabalhar com o processo de transformação pessoal.

As primeiras cosmologias gnósticas, como as mapeadas pelos primeiros grupos, por exemplo, os sethianos e os valentinianos, contêm uma ampla variedade de acoplamentos espirituais (ou sizígias [2]) que procuram transmitir a dança dinâmica em ação no processo de criação. Para o gnóstico, o reino numinoso está cheio de uma ampla gama de seres como Aeons [3], Arcontes [4], Poderes (ou Potestades) e Principados [5], todos competindo por expressão e manifestação tanto na matéria quanto no reino da consciência humana. Embora as tentativas esquemáticas de descrever tais sistemas geralmente pareçam bastante lineares, ao ler a descrição frequentemente confusa deles nos textos gnósticos primários, a hoste celestial geralmente parece muito mais fluida, sobreposta e multidirecional.

Para mim, os gnósticos incorporam um tipo de pensamento livre herético que busca desafiar uma forma de certeza que se baseia em uma visão limitada. Delineações precisas que exigem que ignoremos a complexidade confusa de nossos anseios mais profundos são desafiadas pelo corajoso ato de escolha dos hereges. Enquanto os mascates da certeza proclamam em voz alta que seu mundo polarizado, preto e branco, é resultado da ordem natural ou da vontade de Deus, o herege está ouvindo uma voz interior mais silenciosa.

O despertar para a Natureza Queer pode, é claro, acontecer de várias maneiras. Pode ser uma consciência interna da complexidade do desejo ou (como foi no meu caso) uma comunicação do mundo hétero do demi-urgo [6] de que minha forma de apresentar não estava funcionando para ele! Essas realizações podem acontecer repentinamente ou de maneira mais lenta, na qual você se torna cada vez mais consciente da dissonância. Qualquer que seja a velocidade que aconteça, é um desdobramento profundo de quem sentimos que somos e, para mim, definitivamente teve uma dimensão gnóstica. Se a admoestação de “Conhece-te a ti mesmo [7]” fosse para ter autenticidade, então precisava contar com a experiência de fora que eu experimentei como uma pessoa Queer.

Os exploradores gnósticos da maioria dos matizes geralmente estão dispostos a questionar o que queremos dizer com o natural. Ao tentar lidar com o desconforto associado à nossa experiência de vida, eles buscaram questionar as narrativas sobre isso transmitidas tanto pela Igreja quanto pelo Estado. Esses órgãos de autoridade têm feito questão de nos fazer acreditar em todo tipo de ideias, em nome de serem naturais. Seja a inevitabilidade da reprodução, a subjugação das mulheres ou a exclusão dos negros, tanto a Igreja quanto o Estado têm o potencial de se tornarem arcontes em sua restrição de expressão e liberdade pessoal. Na sua tentativa de controlar e conter procuram minimizar a complexidade da nossa experiência de vida e apresentar uma narrativa dominante que limita a possibilidade de uma conexão mais profunda baseada numa diversidade verdadeiramente rica.

As sizígias tão amadas pelos gnósticos muitas vezes buscavam incorporar uma história mais rica na qual os binarismos experimentados eram mantidos juntos enquanto passavam por um processo de reconciliação. Manifestações dessa unificação frequentemente surgem em figuras andróginas como Adam Kadmon [8] ou Abraxas [9], mas acho que corremos o risco de perder algo crucial se as virmos como ícones fixos e não apreciarmos o dinamismo Queer que elas incorporam. A Natureza Queer muitas vezes apresenta um desafio perturbador para nossas tentativas de limpeza. Na melhor das hipóteses, vai além da mera teorização da moda e nos obriga a representar, realizar e intensificar a realidade muitas vezes embaçada de quem somos.

Nesta dança fluida, a Natureza Queer pode ser experimentada como identidade, humor e a dinâmica que existe nas interações entre pessoas, objetos e organização. Para mim, fornece uma forma de conhecimento que fornece não apenas um espaço para habitar o presente, mas também uma lente para ver o passado. Ao nos pedir para ficar atentos à sensibilidade ao contexto e ao processo, a Natureza Queer oferece um desafio necessário ao tipo de fragilidade que pode surgir quando investimos excessivamente em identidades fixas. A meu ver, tal dinâmica cria uma espécie de otimismo ao vislumbrar o tipo de criatividade humana que José Esteban Munoz chama de “Futuridade [10]”.

Já falei da inspiração que ganhei com a descrição de Nema [11] de N’Aton [12] como uma personificação de nossos futuros eus mágicos, e parte de minha atração por essa figura está na maneira como ela manifesta um tipo de otimismo mágico e futuridade. As representações de N’Aton geralmente unem as perspectivas individuais e coletivas e, para mim, essas imagens incorporam um tipo de despertar espiritual que permite uma multiplicidade de perspectivas. Quando nos afastamos da visão de túnel da escatologia [13] Thelêmica Cristã ou Ortodoxa, podemos começar a explorar a possibilidade Queer de nossas utopias aeônicas se sobreporem, confundindo-se e potencialmente se fortalecendo enquanto se equilibram e informam as percepções umas das outras.

Esta é uma caminhada na corda bamba na qual tentamos equilibrar a realidade de nossas lutas individuais e coletivas com a necessidade de explorar a possibilidade do que a esperança pode significar. Quando os Arcontes gritam sua “verdade” tão alto, devemos ousar manter viva a riqueza de nossas histórias! Termino com esta grande citação de Sara Ahmed, na qual ela discute a possibilidade do que podemos criar quando reavaliamos radicalmente o tipo de futuro que podemos ter:

“Aprender sobre a possibilidade envolve um certo estranhamento do presente. Outras coisas podem acontecer quando o familiar recua. É por isso que os alienígenas [14] afetados podem ser criativos: não apenas queremos as coisas erradas, não apenas abraçamos possibilidades das quais nos pediram para desistir, mas também criamos mundos de vida em torno desses desejos. Quando estamos afastados da felicidade, as coisas acontecem. A felicidade acontece.”

– The Promise of Happiness (A Promessa de Felicidade) p.218.

Fonte: https://theblogofbaphomet.com/2017/05/16/the-queerness-of-gnosis/

NOTAS (por Ícaro Aron Soares):

[1] Em inglês “Queerness”, pode ser traduzida como Natureza Queer, Ser Queer ou Estranheza, optei por traduzir com Natureza Queer.

[2] Sizígias, ou acoplamentos espirituais no Gnosticismo, a exemplo de Cristo-Sophia (em algumas tradições gnósticas).

[3] Aeons aqui no sentido de seres ou mundos espirituais no Gnosticismo.

[4] Arcontes são os poderes que, segundo o Gnosticismo, governam o atual sistema de coisas e têm como líder o Demiurgo, o Grande Arquiteto do Universo Material.

[5] Principados e Potestades, hierarquias espirituais no Gnosticismo, geralmente conectadas aos espíritos aéreos.

[6] O Demiurgo é o Arquiteto do Universo Material, ora denominado de Ialdabaoth, Jeová, Saclas e Samael, o Deus do Antigo Testamento e o progenitor dos espíritos da Goetia, para mais informações leia o livro “Sobre a Origem do Mundo” da Biblioteca de Nag Hammadi, disponível no presente site.

[7] A frase disposta no Oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo, e conhecerás o universo e os Deuses.”

[8] O Adão primordial e andrógino constante no primeiro capítulo do Gênesis, também se refere ao plano de existência cabalístico mais próximo de Ain Soph.

[9] Abraxas era um deus cultuado pelos gnósticos e será abordado em um artigo próprio.

[10] Em inglês: “Futurity”.

[11] Margaret E. Ingalls, magista responsável pela estruturação da Magia de Maat.

[12] Uma “consciência” similar a Aiwass para Aleister Crowley e Aossic para Kenneth Grant.

[13] Escatologia é a Doutrina das Últimas Coisas, que estuda os sinais do fim dos tempos, entre outros assuntos.

[14] Alienígenas no sentido de pessoas excluídas da sociedade convencional.

Texto enviado por Ícaro Aron Soares.

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