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PSICO

A percepção da sombra nos sonhos

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MARIE-LOUISE VON FRANZ

A sombra não constitui o todo da personalidade inconsciente. Ela representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego — aspectos que, na sua maioria, pertencem à esfera pessoal e que poderiam, do mesmo modo, ser conscientes. Em alguns aspectos, a sombra também é constituída de fatores coletivos que se originam de uma fonte exterior à vida pessoal do indivíduo.

Quando uma pessoa faz uma tentativa de ver a sua sombra, ela torna-se consciente (e, com freqüência, envergonhada) daquelas qualidades e impulsos que nega em si mesma, embora veja claramente nos outros — coisas como egotismo, preguiça mental e desmazelo; fantasias, intrigas e tramas irreais; desatenção e covardia; imoderado amor ao dinheiro e às posses — em suma, todos os pecadilhos a respeito dos quais já tenha dito a si mesma: “Não importa, ninguém vai notar e, de qualquer modo, todo mundo faz.”

Se sentimos uma raiva avassaladora crescendo dentro de nós quando um amigo nos repreende por um erro, podemos estar razoavelmente certos de que ali encontraremos uma parte da nossa sombra da qual não estamos conscientes. É natural que fiquemos aborrecidos quando os outros, que não são “melhores” que nós, nos criticam pelos erros da nossa sombra. Mas o que podemos dizer quando são os nossos próprios sonhos — um juiz interior, dentro do nosso próprio ser — que nos repreendem? E nesse momento que o ego é apanhado e o resultado, em geral, é um silêncio cheio de embaraço. Depois disso começa a dor e o extenso trabalho de auto- educação — um trabalho, pode-se dizer, que é o equivalente psicológico aos trabalhos de Hércules. Uma das tarefas desse desafortunado herói, lembramos, foi limpar num único dia os estábulos de Augias, onde centenas de cabeças de gado haviam defecado durante muitas décadas — tarefa tão enorme que o comum dos mortais seria tomado de desânimo só de pensar nela.

A sombra não é feita apenas de omissões. Ela se mostra, com bastante freqüência, em nossos atos impulsivos ou impensados. Antes que tenhamos tempo de pensar, a observação desastrosa foi feita, a trama foi urdida, a decisão errada foi tomada, e nos defrontamos com resultados que jamais havíamos pretendido ou desejado conscientemente. Além disso, a sombra está muito mais exposta a contaminações coletivas que a personalidade consciente. Quando um homem está sozinho, por exemplo, ele se sente relativamente à vontade; mas. tão logo “os outros” façam coisas escuras e primitivas, ele começa a temer que o julguem um tolo se não fizer o mesmo. E assim ele cede a impulsos que, na verdade, não lhe pertencem. É especialmente em contatos com pessoas do nosso mesmo sexo que tropeçamos na nossa sombra e na delas. Embora possamos ver a sombra numa pessoa do sexo oposto, em geral ela nos perturba menos e nós a perdoamos com mais facilidade.

Nos sonhos e mitos, portanto, a sombra aparece como uma pessoa do mesmo sexo do sonhador, O sonho que narro a seguir talvez sirva como exemplo. O sonhador era um homem de 48 anos que tentava viver para e por si mesmo, trabalhando duro e se disciplinando, reprimindo o prazer e a espontaneidade muito mais do que convinha à sua verdadeira natureza.

Eu possuía e morava num casarão na cidade e ainda não conhecia todos os seus inúmeros cômodos. Comecei a andar pela casa e descobri, principalmente na adega, muitas salas que eu nunca tinha visto, e até saídas que levavam para outras adegas ou para ruas subterrâneas. Fiquei preocupado quando descobri que muitas dessas saídas não estavam trancadas e algumas nem tinham fechadura. Além disso, havia alguns operários trabalhando na vizinhança que poderiam ter entrado…

Quando voltei ao andar térreo, passei por um quintal onde novamente descobri diversas saídas para a rua ou para outras casas. Quando tentei investigá-las mais de perto, um homem se aproximou rindo alto e gritando que éramos velhos colegas da escola primária. Lembrei dele e, enquanto ele me contava a sua vida, caminhei ao seu lado para a saída e passeei com ele pelas ruas,

Havia um estranho claro-escuro no ar enquanto caminhávamos por uma enorme rua circular e chegávamos a um gramado verde onde três cavalos repentinamente passaram galopando por nós. Eram animais belos e fortes, selvagens mas bem-treina-dos, e não havia cavaleiro na sela. (Teriam eles fugido ao serviço militar?)

O labirinto de estranhas passagens, câmaras e saídas destrancadas na adega faz lembrar a antiga representação egípcia do mundo subterrâneo que, com suas possibilidades ignoradas, é um símbolo famoso do inconsciente. Mostra, também, como a pessoa está “aberta” a outras influências no lado inconsciente da sombra, e como elementos misteriosos e estranhos podem irromper. A adega, pode-se dizer, é a base da psique do sonhador. No quintal da estranha construção (que representa o objetivo psíquico ainda não percebido da personalidade do sonhador), um antigo colega de escola aparece de súbito, Essa pessoa obviamente personifica um outro aspecto do próprio sonhador — um aspecto que fez parte de sua infância mas que ele esqueceu e perdeu. Acontece com freqüência que as qualidades da infância de uma pessoa (por exemplo, a alegria, a irascibilidade ou talvez a confiança) desapareçam de repente, e a pessoa não sabe onde ou como as perdeu, Esta é uma característica perdida do sonhador que agora retorna (do quintal) e tenta refazer a amizade. Essa figura provavelmente representa a capacidade negligenciada do sonhador de gozar a vida e o lado extrovertido de sua sombra.

Mas logo entendemos por que o sonhador se sente “inquieto” um pouco antes de encontrar o velho amigo, aparentemente inofensivo. Quando passeia com ele pelas ruas, os cavalos galopam à solta. O sonhador pensa que eles talvez tenham escapado ao serviço militar (o que equivale a dizer, escapado à disciplina consciente que até então caracterizou sua vida). O fato de os cavalos não terem cavaleiro mostra que os impulsos instintivos podem escapar do controle consciente. No velho amigo e nos cavalos, reaparece toda a energia positiva que faltava antes e que era tão necessária ao sonhador,

Esse é um problema que surge, com freqüência, quando encontramos o nosso “outro lado”. A sombra geralmente contém valores que são necessários a consciência mas que existem sob uma forma que torna difícil integrá-los à nossa vida. As passagens e o casarão desse sonho também mostram que o sonhador ainda não conhece suas próprias dimensões psíquicas e ainda não é capaz de ocupá-las.

A sombra nesse sonho é típica de um introvertido (um homem que tende a retirar-se demasiado da vida exterior). No caso de um extrovertido, que está mais voltado para os objetos exteriores e para a vida exterior, a sombra pareceria bem diferente.

Um rapaz de temperamento bastante vivo estava sempre iniciando novos e bem-sucedidos empreendimentos mas, ao mesmo tempo, seus sonhos insistiam em que ele deveria terminar uma certa obra de criação pessoal que começara. Este é um dos sonhos:

Um homem está deitado num sofá e puxou a manta sobre o próprio rosto. E um francês, um fora-da-lei capaz de aceitar qualquer encargo criminoso. Desço as escadas acompanhado por um policial e sei que uma conspiração foi armada contra mim: o francês vai me matar como se fosse por acidente. (É assim que a coisa pareceria, vista de fora.) Ele realmente se esgueira por trás de mim quando nos aproximamos da saída, mas eu estou de guarda. Um homem alto e gordo (bastante rico e influente) subitamente apóia-se a parede ao meu lado, sentindo-se mal. De imediato, aproveito a oportunidade para matar o policial, apunhalando- o no coração, “Só senti um pouco de umidade” — é o meu comentário. Agora estou salvo porque o francês não vai mais me atacar já que o mandante do crime está morto. (Provavelmente, o policial e o homem gordo são a mesma pessoa, e o segundo de algum modo substituiu o primeiro.)

O marginal representa o outro lado do sonhador — sua introversão — que chegou a um estado de completa privação. Ele está deitado num sofá (quer dizer, ele é passivo) e puxa a manta sobre o rosto porque quer ser deixado em paz. Por outro lado, o policial e o próspero homem gordo (que secretamente são a mesma pessoa) personificam os bem-sucedidos empreendimentos e responsabilidades do sonhador. O mal-estar súbito do homem gordo está ligado ao fato de que o sonhador realmente adoecera várias vezes, quando permitira que sua energia dinâmica explodisse fortemente em sua vida exterior. Mas esse homem bem-sucedido não tem sangue nas veias — só uma espécie de umidade — o que significa que essas ambiciosas atividades externas do sonhador não contêm nenhuma vida genuína, nenhuma paixão; são apenas mecanismos sem sangue. Por isso não seria uma perda real se o homem gordo fosse morto. No fim do sonho, o francês está satisfeito; ele representa, obviamente, a figura de uma sombra positiva que só se tornara negativa e perigosa porque a atitude consciente do sonhador não estava de acordo com ela.

Esse sonho nos mostra que a sombra pode constituir-se de muitos elementos diferentes — por exemplo, ambição inconsciente (o homem gordo bem-sucedido) e introversão (o francês), Além disso, o sonhador associava aos franceses a capacidade de lidar bem com os casos de amor. Portanto, as duas figuras da sombra também representam dois impulsos bem-conhecidos: poder e sexo. O impulso pelo poder aparece momentaneamente sob uma forma dupla: o policial e o homem bem-sucedido. O policial (um funcionário público) personifica a adaptação coletiva, enquanto que o homem bem-sucedido denota a ambição; mas é claro que ambos servem ao impulso pelo poder. Quando o sonhador consegue deter essa perigosa força interior, o francês deixa subitamente de ser hostil. Em outras palavras, o aspecto igualmente perigoso do impulso pelo sexo também foi dominado.

É evidente que o problema da sombra desempenha um papel importante em todos os conflitos políticos. Se o homem que teve esse sonho não fosse sensível ao problema da sombra, ele poderia facilmente identificar o marginal francês com os “perigosos comunistas” e o policial/homem próspero com os “vorazes capitalistas” deste mundo. Desse modo, ele evitaria ver que possuía dentro de si esses elementos belicosos. Quando observamos as nossas próprias tendências inconscientes nos outros, isso é chamado uma “projeção”. A agitação política, em todos os países, está repleta dessas projeções, tanto quanto a boataria do tipo “fundo-de-quintal” de pessoas ou de pequenos grupos. Todos os tipos de projeção obscurecem a visão que temos dos nossos semelhantes, destruindo sua objetividade e, assim, frustrando qualquer possibilidade de um relacionamento humano genuíno.

Existe ainda uma outra desvantagem em projetarmos nossa sombra. Quando a identificamos com os “perigosos comunistas” ou os “vorazes capitalistas”, por exemplo, uma parte da nossa personalidade fica nesse lado. O resultado é que muitas vezes (embora de modo involuntário) fazemos, às escondidas de nós mesmos, coisas que ajudam aquele outro lado — ou seja, inadvertidamente, ajudamos o nosso inimigo. Se, pelo contrário, percebemos a projeção e somos capazes de discutir o assunto sem medo nem hostilidade, lidando de modo sensato com a outra pessoa, então existe uma chance de compreensão mútua — ou, pelo menos, uma trégua.

Se a sombra se torna nosso amigo ou nosso inimigo depende muito de nós mesmos. Como mostram os sonhos do casarão inexplorado e do marginal francês, a sombra nem sempre é um oponente. Na verdade, ela é exatamente como qualquer ser humano com o qual precisamos nos relacionar, às vezes cedendo, às vezes resistindo, às vezes amando — o que quer que a situação exija. A sombra só se torna hostil quando é ignorada ou mal compreendida.

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