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A Gnose de Schopenhauer

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por Chrystian Revelles Gatti, do Lectorium Rosicrucianum

Meio século antes da Sociedade Teosófica de Blavatsky e Olcott, foi o filósofo alemão Arthur Schopenhauer quem ergueu a ponte entre a sabedoria do ocidente e a tradição oriental. Influenciado por Platão, Kant e pelo Misticismo Cristão, ele considerou a descoberta das literaturas sânscritas como a maior dádiva do século e anunciou que a filosofia e sabedoria dos Upanishads renovariam a fé ocidental. Para interpretarmos corretamente a Metafísica Schopenhauriana, será necessário situar sua obra no espaço e no tempo, em sua localização histórica e geográfica – compreender quais foram suas influências, seu contexto, e o paradigma do Pensamento Ocidental do XVIII, especialmente a situação da Filosofia Alemã da época.

A Filosofia Ocidental – Empiristas e Racionalistas

Foi entre Platão e Aristóteles que se manifestou a primeira dialética do pensamento ocidental após a morte de Sócrates. Platão, inclinado à matemática, encarava o mundo material dos sentidos físicos como composto de manifestações imperfeitas, individuais e transitórias, e confiava no conhecimento obtido por meio da Razão, que lhe parecia a única ferramenta humana capaz de apreender as formas perfeitas da Geometria, as verdades eternas da Matemática e as ideias transcendentes de Justiça, Beleza e Virtude. Aristóteles, por sua vez inclinado às ciências naturais, era prático e queria entender o funcionamento das coisas, e, para isso, se dedicava à observação e categorização dos fenômenos naturais, apreensíveis pelos sentidos. Apesar de discípulo direto de Platão, Aristóteles divergia da tendência mística e abstrata da Metafísica Platônica, preferindo confiar nas imperfeitas faculdades sensoriais humanas para construir conhecimento objetivo, empírico, descobrindo os padrões tais como se manifestam no mundo físico, ao invés de voltar-se para a contemplação mental dos arquétipos eternos como faziam os platônicos, que herdaram tais crenças e práticas dos pitagóricos e cujo legado espiritual foi mantido pelos neoplatônicos que, por sua vez, influenciaram todo o misticismo pagão, gnóstico, judaico-cristão e islâmico.

A divergência essencial entre Platão e Aristóteles, isto é, na confiança na Razão ou nos Sentidos, é a raiz do debate dualista entre racionalistas e empiristas, entre os filósofos da lógica e os filósofos da experiência, e se perpetuou dentro do Pensamento Ocidental até ser transcendido por Immanuel Kant no Século XVIII, que daí em diante passa a ser considerado por muitos – inclusive pelo próprio Schopenhauer – como o filósofo mais importante de toda a História, atrás apenas dos próprios fundadores da Filosofia Ocidental – Sócrates, Platão e Aristóteles.

Immanuel Kant – O Ponto de Partida

O debate entre empiristas, como Locke, e racionalistas, como Descartes, foi transcendido por Immanuel Kant, que escreveu Crítica da Razão Pura (uma das obras mais influentes da história da filosofia). Enquanto eles defendiam a primazia da sensibilidade ou do entendimento, Kant declarou que a experiência necessariamente envolve ambos os elementos, não sendo possível a experiência de um objeto em si (fora de nossa mente), mas apenas a percepção possibilitada por nossa própria estrutura mental. Só podemos conceber a existência de um objeto, e situá-lo no espaço e no tempo, na medida em que ele se apresenta à nossa consciência. Disso decorre que as coisas “em si”, enquanto exteriores à mente, não só não podem ser conhecidas como também podem não ter nada a ver com espaço, tempo, ou qualquer outra categoria inerente à nossa estrutura mental. O que está fora do Eu não está apenas fora de você no espaço, mas também fora do espaço, do tempo, da mente e de todos os conceitos a priori por meio dos quais experimentamos o mundo. Opondo-se ao realismo – postura de que a realidade é independente da mente – a teoria de Kant, o idealismo, postula que o espírito tem papel ativo na construção do conhecimento. Por isso, é dito que ele uniu racionalismo e empirismo e que a História da Filosofia pode ser dividida em antes e depois de Kant.

A xilogravura de Flammarion retrata um homem olhando fora do espaço-tempo:
O que está fora do Eu se encontra além do espaço e do tempo.

Idealismo transcendental – A Metafísica

Schopenhauer desenvolve seu sistema de pensamento a partir de Kant, não sem dar um passo ousado além da metafísica kantiana, pois afirma ser possível rasgar o véu das aparências. Se a sua versão do mundo é limitada pelas observações e experiências permitidas pela sua consciência, então os limites do seu estado de consciência traçam o limite de sua própria realidade – o estado de consciência determina o estado de vida. O mundo de conceitos e objetos experimentados pela consciência do Eu não passa de uma representação que nós mesmos fazemos da realidade, um véu ilusório – o véu de Maya. Se pudermos reconhecer que nossa separação dO Todo é uma ilusão, fruto de uma Consciência Separada, e não uma realidade fundamental, deixaremos de ver os fenômenos como inumeráveis e separados, e reconheceremos todos os seres e todas as coisas como interdependentes e interligados em uma manifestação Una que Schopenhauer denomina de Vontade Universal. Como o homem é, ao mesmo tempo, parte do mundo e experimentador do mundo, fenômeno e mente, então ele pode experimentar a realidade, a natureza última das coisas. É pela destruição de suas ilusões e no silêncio da contemplação que o homem pode experimentar o Incognoscível em si, essa Unidade que é sua própria Natureza Original, encoberta pela ilusão da Multiplicidade projetada pela Consciência-Eu.

A Tradição Oriental

A Magnum Opus (grande obra) de Arthur Schopenhauer é seu livro “O Mundo como Vontade e Representação”, uma das obras mais importantes do século XIX, fortemente influenciada pelos conceitos orientais do Hinduísmo, Budismo e Taoísmo como “Maya” (ilusão), “YinYang” (dualidade), “Dukkha” (sofrimento), “Karuna” (compaixão) e “Nirvana” (iluminação). Amigo pessoal de Goethe, foi por meio deste que Schopenhauer frequentou círculos intelectuais pioneiros e esteve em contato direto com os primeiros tradutores e divulgadores da filosofia oriental na Europa. Arthur Schopenhauer leu a tradução latina dos antigos textos Hindus que o escritor francês Anquetil du Perron traduziu diretamente da versão persa do Príncipe Dara Shikoh entitulada Sirre-Akbar (“O Grande Segredo”). Após interpretar o Bhagavad Gita, Schopenhauer considerou estes textos a mais elevada leitura do mundo, portadora de conceitos sobrehumanos.

A Obra de Schopenhauer

A Teologia da época soava como uma série de perplexidades organizadas de um reino puramente conceitual e abstrato, sem conexão alguma com o mundo e com a vida, enquanto a sabedoria universal preservada pelo oriente era, pelo contrário, uma filosofia Do Mundo e Da Vida, cujo objetivo não era enrodilhar o homem em uma teia de abstrações emaranhadas mas, ao invés disso, conduzir o homem para a saída deste labirinto, dissipando as ilusões e projeções do Ego e visando a libertação do sofrimento da vida e do mundo. Entre os paralelos especiais que sua filosofia guarda com os ensinamentos de Gautama está a ideia da Ignorância e do Desejo como origem de todo o sofrimento. A Ignorância Fundamental consiste em tomar as Representações (os conceitos, os objetos, os fenômenos) como Realidade e ver a si mesmo como separado do resto. Consequentemente, o ignorante interpreta a existência como uma luta incessante, uma guerra de todos contra todos. Para Schopenhauer, esta é a origem do egoísmo inato dos indivíduos que, incapazes de conceber a unidade dos seres e compreender que cada indivíduo é apenas a expressão de uma universalidade que o transcende e engloba, é impelido a lutar contra os outros e contra o mundo, sem saber que, com isso, volta-se contra si mesmo. É da piedade pela infelicidade e pelo sofrimento inerente à condição humana que desabrocha a rosa da compaixão impessoal, a compreensão de que todas as vozes são, essencialmente, a voz do Uno, da Vida.

Misticismo Cristão

Jakob Böhme foi um místico cristão alemão que tratou intensamente do Problema do Mal e da Natureza da Divindade, e deixou um legado que posteriormente inspirou diversas manifestações culturais e artísticas no Ocidente, como a Teosofia, a Maçonaria, o Rosacrucianismo, o Martinismo, os quadros e poemas de William Blake, a psicologia de Jung, e especialmente o Idealismo Alemão de Baader, Schelling, Schopenhauer e Hegel – este último chega ao ponto de declará-lo “o primeiro filósofo alemão”. Böhme teve uma experiência mística da visão da Unidade do Cosmos, e escrevia para si mesmo no intuito de reter as impressões que chegavam diretamente à sua consciência. Para ele, Deus era a Onipresença Eterna situada além do Espaço e do Tempo e, para alcançá-la, o homem haveria de transpassar seus próprios portões do inferno, já que “a vontade e a imaginação do homem perverteram-se de seu estado original. O homem se rodeou pelo mundo de sua própria vontade e imaginação” e, com isso, perdeu Deus de vista. Louis-Claude de Saint-Martin, filósofo francês que dedicou a vida a traduzir, interpretar e divulgar a obra de Böhme, diz que “A verdade não pede mais que fazer aliança com o homem; mas quer que seja somente com o homem e sem nenhuma mistura com tudo o que não seja fixo e eterno como ela. Ela quer que esse homem se lave e se regenere perpetuamente e por inteiro na piscina do fogo e na sede da unidade”, ou seja, o homem não pode apreender o Infinito por meio dos sentidos, dos desejos ou da razão egoísta, mas por meio de “uma condição na qual a vontade do homem, despindo-se de tudo o que é terrestre, torna-se divina e absorvida na autoconsciência”. É dessa forma que, de acordo com Bohme, o homem e o Deus Incognoscível “se fundem em uma só força”. Eles “se despertam mutuamente e se conhecem entre si. Neste conhecimento consiste o verdadeiro entendimento, que segundo o caráter da eterna sabedoria, é imensurável e abismal, sendo do Um que é o Todo. Uma vontade única, iluminada pela luz divina, pode brotar deste manancial e manter a infinidade. Desta contemplação escreve esta pena.”. O psiquiatra Richard Maurice Bucke escreveu em 1901 o “Estudo da Evolução da Mente Humana” e, explorando o conceito de “consciência cósmica”, cita Jakob Böhme, entre outros, como exemplos da manifestação de uma forma superior de consciência.

A Ideia de Inconciente

Quando agimos e pensamos no cotidiano, acreditamos estarmos no controle de nossas ideias, ações e pensamentos, mas existe algo que nos move. A Filosofia de Schopenhauer dá um nome para esta força primária que nos influencia muito mais do que qualquer lógica, moral ou razão – a Vontade. De acordo com Schopenhauer “a Vontade é um cego robusto que carrega um aleijado que enxerga”, e nossa consciência objetiva é o aleijado. Por isso, Schopenhauer é um dos precursores da ideia de Inconsciente. É a partir da ideia de Schopenhauer sobre a “Vontade” que Eduard von Hartmann escreve Filosofia do Inconsciente em 1869, influenciando toda a psicologia posterior e especialmente os trabalhos de Freud e Jung.

Sobre a conexão entre vontade individual (microcósmica) e vontade em si (macrocósmica), Schopenhauer supõe que há:
“além da conexão externa entre as aparições, fundamentada pelo nexumphysicum, ainda uma outra, que atravessaria a essência em si de todas as coisas como uma espécie de conexão subterrânea, graças à qual seria possível, partindo de um ponto da aparição, agir imediatamente sobre todos os outros por meio de um nexum metaphysicum; que, portanto, deveria ser possível agir sobre as coisas a partir de dentro, ao invés do agir comum a partir de fora, um agir da aparição sobre a aparição graças à essência em si, a qual é uma e a mesma em todas as aparições; que, assim como agimos causalmente como natura naturata, nós poderíamos também ser capazes de uma ação como natura naturans, fazendo valer momentaneamente o microcosmo como macrocosmo; que as divisórias que separam os indivíduos, por mais firmes que sejam, poderiam permitir ocasionalmente uma comunicação como que por detrás dos bastidores, ou como um jogo secreto sob a mesa”.
(SCHOPENHAUER – ANIMAL MAGNETISM AND MAGIC)

PARA SABER MAIS, LEIA:

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação [Contraponto Editora]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação [Contraponto Editora]
MANTOVANI, Harley Juliano. Heráclito e Schopenhauer. [Universidade Federal de Goiás]
REDYSON, Deyve. Schopenhauer e o pensamento oriental. [Universidade Federal da Paraíba]
SILVA, Luan Corrêa da. Schopenhauer e a magia. [Universidade Federal de Santa Catarina]

videoaulas:
CURSO LIVRE DE HUMANIDADES. Arthur Schopenhauer – Crítico de kant, por Cacciola [https://www.youtube.com/watch?v=rdf0pRgsJuo]
JOAO LUIZ MUZINATTI. Schopenhauer: só a arte nos livra da dor [https://www.youtube.com/watch?v=WhGW6ULBZDQ]
SE LIGA NESSA HISTÓRIA. Schopenhauer | O Mundo Como Vontade e Representação [https://www.youtube.com/watch?v=65KrAfNUeWA]
THE SCHOOL OF LIFE. PHILOSOPHY – Schopenhauer [https://www.youtube.com/watch?v=q0zmfNx7OM4]

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