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Bruxaria e Paganismo Sagrado Feminino

Uma palavra sobre o Aborto

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Aborto Como um Sacrifício a Ártemis

A função de Ártemis é preservar a pureza da vida. Ela guarda a vida, de modo a que não seja diminuída, ferida ou degradada; mas ela, que tem o poder de ajudar a mulher no parto, tem também o poder, por intermédio de sua flecha sibilante, de trazer a morte súbita.

Imaginemos como esta deusa, ao mesmo tempo protetora da vida e que traz a morte, expressa-se em nossa época. O que a flecha de Ártemis, que mata os animais que ela ama, significa para as mulheres da atualidade? Por que ela traz a morte para as mulheres, crianças e animais? Ártemis, aqui, aproxima-se de Hécate e, através dela, as mulheres se tornam conscientes do poder da morte, de sua inevitabilidade e necessidade. O martírio, o sacrifício de nossa vida por uma grande causa, ou o heroísmo suicida sugerem, em certos casos, a superioridade da morte sobre a vida; mas, o aborto sempre foi, também, uma escolha, continua-mente repetida, da morte sobre a vida.

Os sacerdotes do Cristianismo, que sempre foi uma religião sacrificial, sacrificavam, invariavelmente, a mãe em lugar do filho. Devemos admitir que a mãe nunca teve liberdade de decidir, por si mesma, se será ou não imolada no altar da maternidade. Os sacerdotes, portanto, sacrificaram, sem o consentimento delas, milhares de mães cristãs que poderiam ter sido salvas, certamente, se o médico tivesse tido autorização para proceder ao aborto, sacrificando a criança. Este é, sem dúvida alguma, um caso extremo, pois impõe uma escolha trágica entre a mãe e o filho.

Subtraindo às mulheres o poder de escolha e o poder de destruir, dois poderes que os homens exercem largamente, a Igreja traiu seu receio a toda autoridade feminina. Dado que nenhuma força, nenhum poder é exclusivamente positivo, tão logo o poder feminino foi amputado em um pólo, foi o poder feminino, no todo, que foi relegado a seu nível mais baixo.

Afirmar a importância do filho contra a mãe é uma posição fundamental da Igreja Católica, mesmo se a escolha não for, freqüentemente, uma questão de vida ou morte. Uma gravidez não desejada poderá destruir uma mulher psicológica, social ou intelectualmente, pois é difícil suportar uma ou muitas gravidezes contra a vontade e, ainda, lutar para preservar uma personalidade una.

Sabemos que mulheres que morreram de parto, assim como soldados que tombaram em batalha, podem, de acordo com a Igreja Católica, ir para o Céu, mesmo sem a bênção do padre, a mulher por se ter sacrificado ao dar a vida e o soldado por havê-la destruído. A tradição religiosa nos propôs, ad nauseam, o modelo da mãe sacrificada, a ponto de ter-se tornado quase um clichê; isto faz com que a terapia de mulheres casadas, tão freqüentemente, comecem com a necessidade de aliviar a mulher da resignação sacrificial.

Há muitos modos de considerar esta escolha do filho contra a mãe. Aos olhos de religiões com uma tendência matriarcal, parece aberrante sacrificar uma mãe adulta em benefício de um recém-nascido. Ártemis, ao inspirar o respeito pelos animais e pela vida vegetativa, permite a caça, desde que respeitemos as normas e rituais que justificam a vida humana, que se nutre mediante o sacrifício da vida animal. Este mesmo raciocínio se aplica ao feto, na maioria das religiões pertencentes à Deusa mãe, pois se ela tem o poder de dar a vida, também o tem em relação à morte. O exercício desse poder é, evidentemente, acompanhado de restrições: há um limite para o tempo no qual a decisão pode ser tomada no sentido de ter ou não a criança. Além de um certo ponto, que varia de acordo com a cultura, quem mata um recém-nascido comete o pior tipo de crime, muito mais grave do que matar um estrangeiro, pois esse assassinato atingiu alguém que já fez parte do clã familiar. Nossa sociedade também tem regras e tabus que, em países onde o aborto é permitido, se vinculam ao tempo em que o feto se torna viável, isto é, entre o terceiro e o quarto mês da gestação; mas podemos compreender que, em culturas mais antigas, uma criança era considerada viável apenas se a mãe a amamentasse e o clã lhe estendesse sua proteção, dando-lhe um nome.

Aqueles que, atualmente, dizem que o aborto indica egocentrismo das mulheres ou dos casais, assim como aqueles que proclamam que estes fetos são sacrificados por causa dos valores mais baixos de nosso materialismo ateu, provavelmente expressam uma meia-verdade. Se, entretanto, se olhar com mais cuidado, ver-se-á que apenas uma pequena porcentagem de abortos pertence a esta categoria. A maioria das mulheres que abortam o fazem porque têm respeito suficiente pela criança, a ponto de não desejar para ela uma vida diminuída. Sabem que a criança não desejada, nascida da coação e da miséria, já está ferida antes mesmo de nascer. Ártemis proíbe ao caçador ferir um animal em vez de matá-lo, deixando-o seguir seu caminho mancando e sofrendo. Do mesmo modo, se valorizamos a integridade da vida, devemos sacrificar o feto já marcado pela rejeição e hostilidade daqueles que deveriam recebê-lo com amor.

Se seguirmos o espírito de Ártemis, a polêmica do aborto poderia beneficiar-se das seguintes estratégias: 1) a mudança de uma atitude defensiva para uma atitude ofensiva e 2) a recuperação dos aspectos religiosos da contracepção e do aborto.

Tomando a Ofensiva

A ofensiva consistiria em atacar os opositores do aborto em seu próprio terreno, proclamando que é um pecado contra a vida, a criança e a coletividade não abortar quando necessário. Uma vez que o fracasso da contracepção leva ao aborto, e uma vez que errar é humano, é desumano não aceitar o aborto. Na maior parte das vezes, o aborto não expressa o egoísmo das mulheres e dos casais, mas seu senso de responsabilidade. Acho muito mais imoral forçar os outros a reproduzir sem fazê-los assumir a responsabilidade por estas vidas. Talvez devêssemos mandar todas as crianças não amadas, desnutridas, prostituídas, delinqüentes, suicidas e espancadas para o Vaticano, porque “O Papa”, do alto de sua autoridade moral, obriga os casais a terem filhos, pelos quais ele não assume qualquer responsabilidade.

Quem sabe as milhares de mães solteiras, aniquiladas pela miséria ou solidão, devessem sair e ocupar as residências espaçosas e confortáveis dos sacerdotes? Talvez devêssemos começar a pedir que o Vaticano abra seus cofres para alimentar “suas” crianças?

Pelo fato de o vínculo entre mãe e filho ser o mais íntimo de todos, forçar uma mulher a gestar e dar à luz uma criança, contra sua própria vontade, é um ato de violência. Isso constrange e degrada o vínculo mãe-filho, semeando o ódio onde deveria existir apenas amor, receptividade e boas-vindas. A criança é compelida a habitar um corpo que lhe é hostil: pode-se imaginar uma recepção pior no Universo? A vida é demasiado valiosa para permitir que o jogo da dominação polua seu florescimento. Mesmo de um ponto de vista “humanista”, quem pode dizer quantas destas crianças não desejadas se tornaram forças da morte? Quantas, por desespero ou acidente, tiraram suas vidas ou as de outros? É perigoso trazer um ser ao mundo, quando ele já está marcado com a rejeição. A pureza da criança requer uma pureza igualmente grande em nosso desejo por ela.

É este o respeito à vida do qual os opositores ao aborto estão falando? Parece mais uma decadência da função reprodutiva, não a serviço do amor, mas da dominação de um sexo sobre o outro, dominação de uma religião do pai sobre uma religião da mãe.

“Estranho, quando examinamos o comportamento dos dois sexos, no que diz respeito à procriação: as mulheres, na grande maioria, amam as crianças incomparavelmente mais do que os homens… Agora, dos dois sexos, é aquele que ama menos o filho o que impõe sua vontade ao outro.”1

A irresponsabilidade dos padres cristãos (assim como dos patriarcas judeus, muçulmanos, hindus, etc.) no que diz respeito ao controle da natalidade, é perigosa. A epítome do ridículo foi alcançada pelo Papa quando falou contra o uso de testes clínicos para determinar o mongolismo e outras deficiências congênitas, porque poderiam levar ao aborto. Propõe, então, acrescentar vários milhões de casos ao já enorme número de crianças miseráveis e pais infelizes.

A contracepção e o aborto pertencem tanto à esfera individual quanto à moralidade coletiva. O equilíbrio de todo o ecossistema está, na verdade, ameaçado por conceitos religiosos irrealistas, desumanos e infinitamente mais cruéis do que o aborto. A superpopulação começa no momento em que uma criança é indesejada, quando a mãe já não se sente capaz de dar o melhor de si mesma. A superpopulação acontece quando, a despeito de toda a boa vontade, os recursos disponíveis não podem garantir à criança o mínimo de cuidado, espaço, atenção e amor, sem os quais nenhum ser humano pode viver com dignidade.

Françoise d’Eaubonne destaca quatro fatos que são tão simples e ao mesmo tempo tão opressivos, que somos forçados a enxergar de outro modo o problema demográfico:

1) As mulheres sempre estiveram, muito antes da superpopulação, preocupadas com o controle da natalidade. Até mesmo nas sociedades mais repressoras, conseguiam, com freqüência, encontrar meios de exercer a contracepção e o aborto, ainda que arriscando suas vidas. De fato, a contracepção nunca foi um problema técnico, mas ideológico e religioso, porque os seres humanos sempre foram capazes de evitar a concepção. D’Eaubonne lembra que, no início da civilização, os hebreus já haviam descoberto os dias férteis do ciclo da mulher, usando este conhecimento para aumentar a fertilidade. Os patriarcas sempre quiseram mais filhos para aumentar seu poder.

2) Se as mulheres querem limitar os nascimentos é porque são as primeiras a perceber qualquer desequilíbrio entre os recursos disponíveis e as crianças que trazem ao mundo. quaisquer que sejam os custos representados por um excesso de nascimentos, seja para uma família, seja para uma nação, é a Atlas feminina quem, sem dúvida, os sente mais profundamente. É em nossos corpos, nossos lares, nossos corações, nossas mentes que começa a superpopulação.

3) Assim como a exploração abusiva dos recursos do planeta, o uso excessivo da fecundidade feminina acarreta a catástrofe ecológica. A apropriação do útero feminino pelo patriarcado destrói o poder de auto-regulação que pertence às mães, uma vez que são o primeiro e fundamental elemento deste sistema regulador. D’Eaubonne inclui em suas “negatividades piores” aquelas mulheres educadas pelo patriarcado que, num comportamento característico dos oprimidos, continuam a defender a moralidade patriarcal do nascimento, mesmo quando já não acreditam nela. “Em compensação, se uma mulher se conscientizar, ainda que isso só ocorra uma vez, durante sua existência, nada poderá detê-la”.2

4) O feminismo e a Ecologia estão, portanto, ligados de um modo essencial. O desejo universal das mulheres em controlar os nascimentos coincide com a nova consciência de que a sobrevivência do mundo depende de nossa capacidade de pôr um ponto final à insanidade demográfica. Ao mesmo tempo que D’Eaubonne observa o vínculo entre feminismo e Ecologia, ela demonstra o elo existente entre o patriarcado e o desequilíbrio demográfico.

Penso que é hora de abandonar a postura defensiva, de parar de tentar mostrar que o aborto não é um assassinato e de denunciar a atitude criminosa dos que são contra ele. A posição moral da Igreja oficial traz em si a pior espécie de morte que a humanidade poderia imaginar: o excesso populacional, a brutalização e a degeneração de seres humanos, que privam cada pessoa de sua própria humanidade. Todo mundo está consciente, por exemplo, da relação estreita que existe entre a superpopulação, o desemprego nas grandes cidades, a delinqüência, o aumento de suicídios, estupros, pobreza, etc. De fato, a superpopulação parece ser um dos flagelos mais “desumanos”, pois joga as pessoas umas contra as outras e aniquila todo o respeito pela vida.

Esta absurda moralidade cristã, tão eivada de ironia, se aplica exatamente onde as crianças e as mulheres são mais pobres e rejeitadas, vítimas da irresponsabilidade do Papa, que está tão distante das mulheres e da vida que nem mesmo vê o mal de que é responsável. Obscurecida por sua própria Sombra, a Igreja Católica, por causa de sua política sobre a natalidade, é na verdade uma força a serviço da morte e da decadência.

Falemos de amor e de respeito à vida ao nosso Papa e perguntemos-lhe se está pronto – além de fazer sermões – a dar algo mais do que preces e procissões em favor de nossas crianças. Que recursos está disposto a destinar a elas e que espaço tem intenção de lhes dar? Junto com o ecologista John Livingstone, poderíamos perguntar para qual “banquete” Paulo VI convidou as crianças da terra quando, em 1965, solicitou às Nações Unidas que não sancionassem o controle da natalidade, de modo a permitir às crianças participação no “Banquete da Vida”? Talvez Sua Santidade gostasse de analisar os seguintes números citados por Livingstone: entre o ano 1 e o ano de 1650 da cristandade, o ritmo de crescimento fez a população dobrar 3. A peste negra tornou-se, então, um agente poderoso de controle demográfico. Entre 1650 e 1850, ou seja, em apenas duzentos anos, a população tornou a dobrar e duplicou novamente nos cem anos seguintes. Atualmente, estima-se que a população poderá dobrar num intervalo de trinta e cinco a quarenta anos. Neste contexto, então, que tipo de valores sociais a Igreja representa? A quem devemos acusar de trazer a morte?

Neste ponto, devemos voltar a Ártemis, pois é sua intransigência que sugere que não devemos dar à vida se nossa dádiva não for pura. Ao falar de uma estratégia “ofensiva”, obviamente são sugeridas imagens de combate; mas, não há outras armas a não ser as palavras, proferidas ou impressas, e os instrumentos médicos mais seguros e eficazes, de modo que as palavras possam ser acompanhadas pela ação.

O Aspecto Religioso do Aborto

O que acontece com uma mulher ao sair de uma clínica de aborto moderna? Ela volta para casa e chora. Com quem partilha ela esse acontecimento? Como deveria ela comportar-se antes, durante e depois do aborto? Tantas questões são, geralmente, deixadas sem resposta, num vácuo cultural, pessoal e religioso, deixando o casal, os pais e a mulher mergulhados em um sentimento de culpa, vergonha e desolação!

Alguns meses atrás, recebi um telefonema de um jovem que pedia para recebê-lo com urgência, bem como à sua namorada, que acabara de deixar uma clínica de aborto. Ela não se arrependera da decisão, mas sentia-se “bastante estranha” de simplesmente re-tornar ao escritório, no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido. Eu os recebi, conversamos e ela chorou, riu, ele chorou, riu, e finalmente, já que se tornara claro que esse casal sabia que tinha tomado a decisão certa, sugeri que “fossem embora e comemorassem”. Por ela não ter comido desde a noite anterior, foram a um bom restaurante. Ela me escreveu um bilhete, mais tarde, para me dizer que, pela primeira vez, havia experimentado seu direito de tomar uma decisão livre e que o sentimento de melancolia se esvaíra na comemoração de sua “liberdade de escolha”. Eles se sentiam demasiado jovens, extremamente dependentes dos pais e muito inseguros em seu relacionamento adolescente para terem um bebê. Ambos estavam, principalmente, preocupados com o desenvolvimento de suas identidades profissionais como meio de sobrevivência econômica. Uma criança teria sido uma catástrofe e o aborto lhes parecera o meio de evitar esse drama. Nosso encontro fora uma oportunidade para ambos de entender o lado sério do poder criativo e de celebrar a consciência com a qual desejavam exercitá-lo.

Desde a laicização da moralidade sexual, as atitudes em relação ao aborto parecem ter-se polarizado em dois campos. Aqueles favoráveis ao aborto tendem a banalizar o acontecimento ou a considerá-lo sob o ponto de vista clínico, como se fosse o mesmo que extrair um dente. Este grupo trata a decisão de abortar como algo particular, relativo à moralidade individual. No outro pólo estão aqueles que são contra o aborto de maneira feroz e coletiva, tanto para eles como para os outros, que pensam nesta questão com muito emocionalismo e segundo um ponto de vista religioso coletivo. Ao considerar esta polarização entre o ateísmo permissivo e individualista, de um lado, e, de outro, uma oposição religiosa e coletiva, pode-se imaginar duas outras posições ideológicas, que não tiveram oportunidade de ser tentadas, no caso de nascimentos não desejados:

1) ser contra o aborto e o controle da natalidade de forma discreta, vivendo de acordo com princípios próprios, mas sem forçar ninguém a partilhá-los e

2) ser a favor do aborto, recuperando seu aspecto religioso primitivo e seu significado coletivo.

Esta última atitude é a que me interessa, nesse momento, porque reintroduz o espírito de Ártemis. Sabendo das repercussões que tal escolha poderá acarretar no psiquismo das mulheres, no equilíbrio e desequilíbrio de uma família, e na ecologia global, pode-se certamente desejar que a aceitação do aborto inclua seu aspecto religioso. É, afinal de contas, um encontro com a morte e o uso consciente de um de nossos instintos mais poderosos.

O fato de o controle da natalidade ter sido sempre uma preocupação vital das mulheres, mas o exercício do poder de decisão ter sido tratado como pecado e não como responsabilidade, é, provavelmente, mais uma conseqüência de uma religião que se dissociou de todos os mistérios do sexo feminino. Há uma recusa evidente em ver que as práticas de controle da natalidade e de aborto podem ser formas altamente desenvolvidas de consciência feminina, de cujo exercício e refinamento pode depender o equilíbrio de toda a coletividade humana.

Uma religião que valorizasse a contribuição feminina aceitaria assumir coletivamente este sacrifício e associá-lo a um ritual para expressar suas dimensões terríveis e necessárias. Atualmente, o feto é posto na descarga, sem qualquer ritual de despedida e a operação se submete aos rituais da Medicina. Em muitos lugares, os abortos são operações em série e pode acontecer de a mulher não receber sequer uma palavra, a não ser para verificar se ela está em jejum e se preencheu as quatro vias dos formulários burocráticos. Provavelmente, ela nem verá o rosto do médico, pois já tomou sedativos. Estará deitada de costas, com as pernas abertas, quando o médico – passando de uma mesa à outra – faz o aborto seguinte. Ele abre o colo do útero provocando, com freqüência, uma torrente de emoções à qual ninguém presta atenção; então, ouve-se o ruído de uma bomba de sucção e acabou-se. Alguns momentos depois, a mulher estará sentada numa poltrona e “até logo, aqui está a conta”. Este ritual poderá variar em alguns pormenores, mas sua principal característica é ser tão burocrático, clínico e despido de qualquer emoção quanto possível. O que ocorre. com todo o medo, culpa, dor, solidão e sofrimento? A culpa e, às vezes, a revolta podem ser opressoras e injustas, na medida em que a mulher carrega, sozinha, um fardo que pertence a todos nós.

É encorajador observar, entretanto, que sempre que há liderança feminina nas clínicas de aborto, elas costumam organizar paralelamente ao evento clínico um sistema de apoio psicológico (em grupo ou individualmente) e administram o local, a seqüência de operações e as relações humanas, de modo a que as mulheres possam ir lá sem se sentirem como párias, sendo purificadas de sua “culpa”. Este grupo de apoio realmente “ensina”, ao mostrar o caminho em direção a um respeito verdadeiro pelas funções femininas e pela sexualidade humana.

Muitas mulheres que abortam já amam esse futuro bebê, que gostariam de ter se… Freqüentemente, os homens têm dificuldade em compreender que se pode desejar, inconscientemente, instintivamente, fisicamente, ter um bebê e, ainda assim, do ponto de vista da consciência feminina, chegar à conclusão que é melhor não tê-lo. Como psicóloga, observei como as mulheres vencem as dificuldades associadas ao aborto: aquelas que melhor se saem são, freqüentemente, aquelas que se permitiram experimentar tanto o amor quanto a impossibilidade. Todas a quem dei assistência amam crianças e estavam tentadas a ficar com o bebê que conceberam, mas sua ética feminina as incitava a não se comportarem como galinhas poedeiras irresponsáveis.

Esta situação não é muito diferente de todas aquelas ocasiões dessa vida em que defrontamos com um amor impossível ou uma amizade rompida, sacrificada por razão ou necessidade. A dor da renúncia é a mesma. Em quase todos os casos, aborta-se um amor impossível, não um odiado. A criança é sacrificada a um valor que se julga, no momento, ser mais importante, quer sejam os outros filhos já nascidos, os ainda por nascer ou nossa sobrevivência física, econômica ou psicológica.

Os cristãos primitivos recusavam uma existência que lhes parecia uma negação da vida, do amor e da justiça. Em nome da vida espiritual, o cristão invocava o martírio; preferia a morte a uma vida de concessões.

Acho que é hora de sacrificar a Ártemis o feto para o qual não estamos preparados a dar o melhor de nós mesmos e de nossos recursos coletivos. Assim como existem certos níveis de poluição física, que não deve-ríamos tolerar, há um limite à miséria social e psicológica, além do qual somos incapazes, de fazer o dom da vida.

O Inconsciente universal sempre utilizou métodos diferentes para reduzir a população, quando o espaço e os recursos são escassos. O mais evidente é a guerra, que surge quando o aumento populacional se tornou explosivo e o clima social se está deteriorando. O “sacrifício” de vidas, então, se processa através dos homens e não das mulheres, mas as vítimas morrem aleatoriamente e o poder da morte é liberado em toda sua fúria e para além da razão. Está claro que nos encontramos num desses momentos perigosos, nos quais as tensões do Inconsciente coletivo podem levar a um mega-tantrum de agressão, acompanhado conseqüentemente pelo mito da “guerra como purificação”; mas, talvez, não devêssemos mais confiar num Inconsciente Coletivo somente masculino; em vez disso, desenvolver, o mais rapidamente possível, uma Consciência Coletiva que estabelecesse uma nova divisão de poderes de morte entre homens e mulheres.

Meditações pagãs de Ginnette Paris

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