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Sobre a Intelecção e a Sensação – Corpus Hermeticum

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 (O Belo e o Bom reside apenas em Deus e em nenhhuma outra parte)

1 Ontem, Asclépios, fiz conhecer o meu “Discurso Perfeito”. Hoje, é necessário que eu dê seqüência àquele discurso, expondo a doutrina da sensação. Segundo a opinião comum, sensação e intelecção diferem nisto: uma é de natureza material, e outra de natureza essencial; segundo minha opinião, ao contrário, as duas perfazem apenas uma e não comportam distinção, isto é, entre os humanos, pois se entre os outros animais a sensação se une à natureza, entre os humanos una-se, por outro lado, à intelecção. (O intelecto difere da intelecção da mesma forma que Deus da atividade divina. Com efeito, a atividade divina é produzida por Deus e a intelecção é produzida pelo intelecto, sendo irmã de logos. Ou melhor, a intelecção e o logo são instrumentos um do outro: pois nem o discurso (logos) é enunciado sem intelecção, nem a intelecção é manifestada sem o concurso do logos.)

A sensação e a intelecção presentificam-se no ser humano conjuntamente, quase enlaçadas uma à outra. Pois nem o conhecimento intelectual é possível sem a sensação, nem a percepção sensível sem a intelecção. – Mas poder-se-ia conceber uma intelecção sem sensação, como a representação das visões imaginárias durante os sonhos? – Parece-me, quanto a mim, que essas duas faculdades desapareceram na visão dos sonhos, enquanto que na vigília, a intelecção sempre está unida à sensação. Pelo menos a sensação se encontra dividida entre o corpo e alma, e quando essas duas partes da sensação se reúnem em comum acordo, então a intelecção é enunciada pela palavra, uma vez que foi gerada pelo intelecto.

3 Com efeito, o intelecto gera todos os conceitos, conceitos bons quando recebe as sementes de Deus, conceitos contrários quando de um dos seres demoníacos, pois não existe um lugar do mundo que não seja habitado por um daimon, o qual vindo se insinuar no intelecto, semeia a essência de sua energia própria. E o intelecto gera então o que foi semeado: adultérios, assassínios, sevícia nos pais, sacrilégios, atos de impiedade, suicídios por enforcamento ou atirando-se nos precipícios, e coisas semelhantes, são obras do daimons.

4 Quanto às sementes de Deus, são pouco numerosas, mas grandes, belas e boas: a virtude, a temperança e a piedade. A piedade é o conhecimento de Deus e aquele que aprendeu a conhecer a Deus, repleto que está de seus bens, tem intelecção de Deus e elas não são semelhantes à da massa. Por esta razão, aqueles que permanecem no conhecimento não agradam à massa e esta também não o agrada. Parecem tomados pela demência e são expostos à chacota pública, são odiados e desprezados e pode-se até matá-los. Pois, eu já o disse, o mal deve necessariamente habitar cá embaixo, aqui está seu domínio próprio: seu domínio com efeito é a Terra, não o mundo como muitos dirão com um propósito blasfematório. Todavia o humano temente a Deus saberá tudo suportar porque tomou consciência do conhecimento. Para um tal humano as coisas são boas, mesmo aquelas que são más para os outros. Quando lhe preparam emboscadas e armadilhas, relaciona tudo com o conhecimento e é o único de todos os humanos que torna os males em bens.

5 Retomo novamente a teoria da sensação. É própria do humano portanto a reunião, em, si, íntima da sensação e da intelecção. Mas como já disse mais acima, nem todo humano possui a intelecção. Pois há dois tipos de seres humanos: o material e o essencial. Um, o material, associado ao mal, recebe, como já disse, dos demônios a semente da intelecção, os outros são associados ao bem essencialmente. Deus os mantém a salvo. Deus, o construtor do universo, quando fez todos os seres, fê-los semelhantes, mas aqueles, após terem sido criados bons, diferiram pela maneira como usaram sua atividade. Pois o movimento do mundo, por sua fricção dá às gerações tal ou qual qualidade, empesteando alguns pela malícia, purificando os outros pelo bem. Pois o mundo, ó Asclépios, tem também sua sensação e sua inteligência próprias, não semelhantes àquelas do ser humano, nem sob a relação da variedade, mas em geral mais forte e mais simples.

Única é, com efeito, a sensação e a intelecção do mundo, fazer as coisas e desfazê-las, como instrumento da vontade de Deus que o criou realmente em forma de instrumento a fim de que conservando em seu seio todas as sementes que recebeu de Deus, produza em si mesmo todos os seres eficazmente, pois, dissolvendo-os, renova-os e que na seqüência, tendo esses seres sido assim. dissolvidos, como um bom semeador de vida, pelas mutações que acarreta seu próprio movimento, fornece a todos renovação. Nada existe que não tenha sido engendrado pelo mundo; pelo seu próprio movimento vivifica todos os seres e é, ao mesmo tempo, o lugar e o criador da vida.

Todos os corpos são feitos de matéria, mas de uma maneira diversa, uns da terra, outros da água, ou de ar, ou de fogo. Todos são corpos compostos, segundo uma fórmula mais complexa ou mais simples: os mais complexos são os corpos mais pesados, os mais simples os corpos mais leves. É a rapidez do movimento do mundo que causa a diversidade qualitativa das gerações. Pois o sopro do mundo, sucedendo-se sem interrupção, oferece continuamente aos corpos qualidades novas, e existe apenas um todo, o todo da vida.

8 Assim então Deus é o pai do mundo, e o mundo é o pai dos seres que existem no mundo; o mundo é o filho de Deus e os seres que estão no mundo são provenientes do mundo. É correto, portanto, que o mundo tenha sido chamado uma ordem (kosmos): pois do conjunto dos seres, compõe-se uma ordem pela diversidade da geração, e pela continuidade da vida, e pela infatigável constância de sua operação pelo movimento rápido da necessidade e pela combinação dos elementos e pela boa ordem de tudo o que vem a ser. Portanto, é por uma espécie de necessidade e com uma inteira conveniência que o mundo pode ser chamado kosmos. Assim, entre todos os viventes a sensação e a intelecção se introduzem de fora, como uma brisa surgindo da atmosfera; mas o Mundo, este as recebeu de uma vez por todas no instante em que veio a ser, e é de Deus quem as recebeu e é ele que as mantém.

Quanto a Deus, ele não é desprovido de sensação e de intelecção, como alguns o pensarão – é por um excesso de reverência que eles blasfemam. Pois os seres que existem, Asclépios, estão em Deus, sendo produzidos por Deus e dependendo de seus filhos, enquanto recebe a compulsão do bem pelo canal do sol. Pois é o Bem que é o princípio eficiente: esta qualidade não pode aparecer em nenhum outro que não ele mesmo, que jamais recebe coisas, mas que quer a existência das coisas. Eu não direi, ó Tat, “quem faz os seres”; pois aquele que faz pode ser deficiente durante longos intervalos enquanto faz e não faz; pode ser deficiente relativamente à qualidade e à quantidade, pois faz tais qualidades e tais quantidades e ao mesmo tempo seus contrários. Mas Deus é o Pai e o Bem naquilo em que as coisas existem. 4 – Assim é quanto cabe aquele que pode “ver”. Pois disso também, Deus, quer a existência, e disso mesmo sobretudo é que é a causa. Verdadeiramente, todo o resto existe só para isso: pois a marca própria do Bem, é que o Bem seja conhecido, ó Tat. – Tornaste-nos repletos, ó pai, da boa e completamente bela visão, e pouco é preciso para que o olho de meu intelecto renda homenagem sob a influência de uma tal vista. – Sem dúvida, pois não é da visão do Bem como do raio solar, que pela sua natureza ígnea deslumbra os olhos pela sua luz, e os força a se fechar; contrariamente esta visão ilumina, e isso tanto mais quanto mais se é capaz de receber o influxo do esplendor inteligível. Mais agudo que o raio solar para nos penetrar, é por outro lado, inofensiva e repleta de toda imortalidade, tão bem que aqueles que aí podem se abeberar desta visão freqüentemente caindo no sono e se destacando do corpo, chegam à visão mais bela tal como ocorreu a Uranus e Cronos, nossos ancestrais. Possa-nos também assim suceder, ó meu pai! – Apraz a Deus, meu filho. Mas agora, ainda somos muito fracos para chegar a essa visão; ainda não temos força suficiente para abrir os olhos de nosso intelecto e contemplar a beleza daquele Bem, sua beleza imperecível, incompreensível. Quanto nada mais puderes dizer, é somente então que vê-la-ás. Pois o conhecimento que se toma é silêncio divino, inibição de nossos sentidos. E aquele que a percebeu uma vez não pode perceber nenhuma outra, o que a contemplou uma vez nenhuma outra pode contemplar e não pode ouvir falar de nada além e, em suma, não pode mesmo mover o corpo: pois, perdendo a consciência de toda sensação, de todo movimento corporal, permanece em repouso; e esta beleza tendo banhado com sua luz todo intelecto, é a alma toda que também ilumina e que atrai através do corpo, assim transformando o ser humano inteiro na Essência. Pois é impossível, meu filho, que a alma que contemplou e beleza do Bem seja divinizada enquanto permanecer num corpo humano.

Que queres dizer por “ser divinizada”, ó pai? – Toda alma separada, meu filho, sofre metamorfoses. – Mas então, que queres dizer por “separada”? – “Não escutaste nas Lições Gerais que é de uma só Alma, a Alma do Todo, que surgiram todas essas almas que turbilhonam no mundo como distribuídas em suas partes? Dessas almas então, numerosas são as metamorfoses de uma para uma sorte mais feliz, de outras para uma sorte contrária: pois as almas inferiores passam para animais aquáticos, as almas aquáticas em animais terrestres, as almas terrestres em voláteis, as almas aéreas em humanos, enfim as almas humanas fazem sua entrada na imortalidade transformando-se em ‘daimons’, e depois neste estado passando no coração dos deuses (há dois corações de deuses – o dos astros errantes e dos fixos). E tal é a glória mais perfeita da alma. Todavia, a alma que entra num corpo humano e permanece no vício, não experimenta a imortalidade, não toma parte no Bem, mas é levada para trás e percorre inversamente a rota seguida, a que conduz até aos répteis: tal é a sentença de condenação da alma viciosa.

Ora, o vício da alma é a ignorância. Realmente quando uma alma não adquiriu nenhum conhecimento dos seres, nem de sua natureza, nem do Bem, quando é cega, sofre os embates violentos das paixões corporais. Então a infeliz, para ignorar-se a si mesma, torna-se escrava de corpo monstruoso e perverso, carrega seu corpo como um fardo, não comanda, sendo comandada. Tal é o vício da alma.

9 Ao contrário, a virtude da alma é o conhecimento: pois aquele que conhece é bom e piedoso, já divino. – Que espécie de humano é esse, ó pai? – É o humano que fala pouco e pouco escuta. Pois aquele que perde seu tempo a disputar e a ouvir as novas golpeia o ar, filho. De fato, Deus, o Pai e o Bem, não se deve ensinar pela palavra nem aprender pela audição. Nestas condições, se todos os seres possuem os órgãos dos sentidos por não poderem viver sem eles, o conhecimento difere muitíssimo da sensação. A sensação só se produz na dependência do objeto que nos impressiona, ao passo que o conhecimento é a perfeição da ciência, que por si só é um dom de Deus. Pois toda ciência é incorpórea, e então o instrumento do qual ela se serve é o próprio intelecto que, a seu turno se serve do corpo. Ambos os objetos inteligíveis e os materiais entram no corpo. Pois tudo deve resultar da oposição e da contrariedade; é impossível ser de outra forma, quer exerçam sua atividade por meio dos corpos quer se movam por meio de uma substância psíquica, que sejam vivificados por meio de um sopro ou ainda mesmo que nelas recebam tudo o que é morto: e isso é razoável. Ou mais ainda, declaro que ele não os contém, mas para dizer a verdade, diria que ele é todos os seres, não os adiciona a si mesmo a partir do exterior, é ele que os dá de si mesmo e os produz para o exterior. Esta pois é a sensação e a intelecção de Deus: sempre mover todos os seres e jamais haverá um tempo no qual; seja lá o que for daquilo que existe será abandonado; na verdade, quando digo “daquilo que existe”, quero dizer “de Deus”; pois Deus contém nele mesmo tudo o existe, e nada está fora dele e ele de nada está fora.

10 Tais coisas, Asclépios, se possuísses a inteligência, te pareceriam verazes, mas se não tens o conhecimento, ser-te-ão incríveis. Pois ter tido fé, é ter feito um ato de inteligência e ter faltado à fé, é ter faltado à inteligência. Pois o logos não consegue progredir até a verdade. Mas o intelecto, sendo poderoso, e após ter sido guiado até o ponto da rota pelo logos, pode progredir até a verdade. Então, tendo abarcado com uma mesma visão todos os seres, descobrindo que tudo está de acordo com o que foi explicado pelo discurso, acredita e encontra seu repouso nesta nobre crença. Para aqueles então que compreenderam, graças ao Dom de Deus, essas palavras, são então críveis, mas para aqueles que não as compreenderam, permanecem incríveis. Eis quanto basta no que tange a intelecção e a sensação.

Corpus Hermeticum

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