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Vampirismo e Licantropia

Obsessão por Vampiros Efêmeros

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Shirlei Massapust

Em 22/09/2023, as 18h00 do horário de Brasília, descobri um anúncio no Ebay onde cento e trinta e três pessoas marcaram como desejável o adesivo Nasty Nick #1a; primeiro duma série de quarenta e uma figurinhas adesivas da coleção Garbage Pail Kids, editada por The Topps Company no ano 1985. Na ocasião do lançamento este item vinha a 2,44% de chance dentro de pacotinhos fechados que custavam três dólares e setenta e cinco centavos a unidade. Contudo, trinta e oito anos depois, estava sendo ofertado por quarenta e cinco mil e novecentos dólares americanos! Detalhe: Um artigo jornalístico da Redação JDV confirmava que aquilo realmente valeria, em média, trinta e nove mil.

A coleção Garbage Pail Kids era ume brinquedo de meninos (servia para colar nos cadernos ou jogar bafo). As suas artes, criadas pelo ilustrador estadunidense John Pound, parodiavam a estética bonachona da coleção de bonecas para meninas Cabbage Patch Kids, comercializadas nas lojas de brinquedos durante o mesmo período.

Algumas desculpas esfarrapadas tentam justificar por que Nasty Nick #1a é a arte mais valiosa de toda a coleção na atualidade.[1] “Era um dos stickers mais raros. E como o primeiro card impresso do deck, muitos exemplares estão ligeiramente fora de centro”.[2]  Blábláblá! A pergunta certa a ser feita é: Que elemento transcendental os colecionadores de Garbage Pail Kids abstraem de Nasty Nick #1a, para achar razoável dar um valor afetivo de mais de quatro dezenas de milhares de dólares, quando, segundo a jornalista Emma Verner, os demais adesivos da mesma coleção, pintada pelo mesmo artista, mas sem temática vampiresca, valem hoje cerca de quatro mil dólares americanos a unidade?[3]

Neste pedacinho de papel colante com preço de minério lunar o que vemos é um menino vampiro segurando uma fashion doll com marcas sangrentas da mordida que ele lhe deu no pescoço. Sensualmente caída nos braços do monstro, o vestido branco da vítima esvoaça ao vento tal como o traje de Marlyn Monroe na comédia romântica The Seven Year Itch (1955). No céu, muito próximos um do outro, vemos Vênus e a Lua crescente, como uma óbvia, porém sutil, referência ao símbolo semiótico do crescente muçulmano.

Nota-se que o padrão estético adotado na composição do – pretensiosamente repelente, embora gracioso, – boneco masculino é aquele estufado e roliço, ao passo que a boneca mordida é uma esbelta Barbie. Mas ela é um exemplar brincado, com pouco cabelo e baixa visão, necessitando usar óculos, parecida com o conceito de “Weird Barbie” introduzido por Greta Gerwig e Noah Baumbach no filme Barbie (2023). (Na mente de John Pound o corte de cabelo ocorreu bem depois do traçado do rascunho a lápis, em algum momento entre o teste de pintura texturizada por impasto e a arte final).[4] A energia que o quadro nos transmite é a mesma da canção do Trio Esperança – A festa do Bolinha (1966): “Com tanto pão / dando bola no salão / Luluzinha, foi gostar / logo do bolão”.

Sobre o uso de temática vampiresca em brindes de alimentos no Brasil

Numa noite de outubro de 2021 tive um sonho. Uma voz mandou-me obter brindes de alimentos ultraprocessados com temática vampiresca. Questionei por que alguém razoável gastaria tempo e dinheiro numa tarefa tão sem importância? Acordei de madrugada e fiz uma busca superficial na internet. Além de não haver nada de novo nas lojas de doces, as antigas coleções de figurinhas anunciadas em plataformas de comércio eletrônico pareciam superfaturadas. Abandonei a missão e desliguei o computador. Quando estava prestes a voltar para meu quarto o tampo da mesa da sala caiu. Uma revoada de morcegos entrou pela janela e zanzou pela casa. Pensei então: “Isso não pode estar acontecendo”. Acordei de novo. Ainda era sonho.

Pela manhã decidi pesquisar atendendo ao chamado da voz onírica. Comecei lendo o livro Ora, Bolas! de Gonçalo Júnior, onde consta que figurinhas de cigarros, chocolates, biscoitos e chicletes foram distribuídas em época anterior ao lançamento do primeiro álbum de cromos vendido em jornaleiro. No Brasil, em 1961 e 1972, os governos dos presidentes Jânio Quadros e Emílio Garrastazu Médici legislaram no sentido de proibir a venda de álbuns de figurinhas premiadas em jornaleiros, determinar a impressão de cromos em quantidades iguais e obrigar editoras a vender pelos correios determinada quantidade para que todos pudessem completar suas coleções.[5] Estes dispositivos estão em vigência até hoje, porém, como disciplinaram a venda e não o brinde, o jornaleiro e não o baleiro, o mercado de parafernália vintage passou a atribuir valores flutuantes mais elevados às coleções completas de brindes de alimentos.

Por exemplo, um conjunto de 30 cartas de Mythomania (ano 2008) mais 42 de Dracomania (ano 2008) da Elma Chips® havia sido recentemente arrematado por R$ 1000,00. Ofertas de trinta cartas da coleção Vampiros (ano 2009), também da Elma Chips®, variavam de R$ 350,00 a R$ 450,00 conforme o melhor estado de conservação.

Imagens promocionais da coleção Elma Chips Vampiros.

A propósito, entre as coleções de figurinhas com temática vampírica já publicadas no Brasil, é justamente a Vampiros da Elma Chips® que apresenta o maior número de colecionadores registrados no fórum do nicho, o Troca Figurinhas. Quando o consultei em 08/11/2021 duzentas e vinte e oito pessoas haviam concluído quinhentas e nove trocas de cartas que originalmente acompanhavam os biscoitos Fandangos e Cheetos.

Admirei-me pelo fato de as fontes oficiais negarem a existência de álbuns para cartas Mythomania, Dracomania e Vampiros, pois eu mesma já os havia visto no Mercado Livre, na Shopee e na posse de colecionadores interativos. Então vim a saber que todos aqueles belos álbuns de luxo são produzidos no Brasil, de fãs para fãs, pela OoZaros <https://oozarusboxgames.wordpress.com/albuns/>. Enfim, até hoje há marmanjos procurando, trocando, comprando e vendendo estes e outros pedacinhos superestimados de infância. Segundo os membros do Troca Figurinhas, na coleção Vampiros as mais fáceis de encontrar desde a época do lançamento são as de números 5, 7, 11, 15, 16, 17, 20, 21, 22 e 23. As mais difíceis são as de números 1, 6, 8, 19, 25, 26, 27, 28, 29 e 30.

Figurinhas da coleção, num anúncio da loja Schramm Colecionáveis, na Shopee.

Sobre o valor afetivo das coleções de figurinhas e brindes de alimentos

“No meio do caminho tinha uma pedra”, já dizia Drummond de Andrade. Na trilha do colecionismo tem políticos com mentes belas e duras feito drusas de ametista. Em pleno período de pandemia de Covid 19, a relatora deputada Benedita da Silva (PT), entre outros, engajaram-se na tarefa de desarquivar o Projeto de Lei 4815/2009, de autoria do deputado Dr. Nechar (PV/SP), que, sendo aprovado, tipificaria o crime de venda casada de alimentos com produtos pressupostamente mascarados como brindes.[6]

McNugget vampiro. Brinde do McLanche Feliz em 1998.[7]

Os apoiadores desta causa aparentam pensar em todas as crianças como frágeis seres indomáveis, que supostamente querem tudo que veem pela frente.

Oferecer brinquedos para estimular o consumo de alimentos com altos teores de sódio, açúcar e gorduras é extremamente prejudicial à saúde das crianças. (…) Além disso, o fato de esses brinquedos serem exclusivos, efêmeros e colecionáveis faz com que a criança seja incentivada a consumir uma grande quantidade de “promoções” num curto espaço de tempo. Depois de conseguir o primeiro brinquedo da série, em geral, a criança quer completar a coleção. E depois a seguinte. E outra. A criança, assim, torna-se promotora de vendas da marca. E o apelo para que mãe, pai ou responsável compre os demais itens pode gerar enorme estresse familiar.[8]

Na vida real as pessoas comuns tem preferências, mantém o foco em poucos assuntos e a coerência em seus temas favoritos. O habito nocivo de amontoar grandes quantidades de objetos aleatórios, sem critério de utilidade ou pertinência temática, não configura a atitude do colecionador mirim, mas sintoma de transtorno de acumulação compulsiva, tratável por terapia comportamental sob o auxílio de um psicólogo.

Os críticos do colecionismo de brindes exclusivos e “efêmeros” apontam para os riscos à saúde causados por uma dieta rica em alimentos ultraprocessados, bem como para o desperdício do dinheiro do arrimo da família em compras por impulso realizadas pelo menor despótico que não lhe da paz e não para de pirraçar enquanto não obtém seu objeto de desejo. Em lar de criança bem educada não é assim que as coisas funcionam. Para ganhar mesada o menor deve mostrar-se bem comportado, tirar boas notas nos exames escolares e ajudar no trabalho doméstico. Se pirraçar fica de castigo.

Ninguém jamais deu tanto valor às moedas de centavos quanto uma criança bem educada. O biscoito ou chiclete com brinde de figurinha que ela compra é preciosíssimo, sob sua perspectiva. Imaginemos, por exemplo, que estamos no ano de 2009, assistindo aos comerciais televisivos do jogo-coleção Vampiros, lançado naquele período pela indústria de alimentos Elma Chips®, cujas peças individuais vinham como brinde dos salgadinhos Cheetos e Fandangos.

Certamente havia entre o público infanto-juvenil muitos interessados em brincar com essas belezas coloridas (sobretudo entre curiosos proibidos de mexer na coleção de Vampire: The Eternal Struggle de seus pais[9]). Pensemos na probabilidade estatística de obter trinta figurinhas diferentes em trinta sacos fechados, sem repetições, sendo a coleção composta por trinta peças, com cada saco contendo uma unidade. O cálculo matemático para a solução do problema seria 1 ÷ (30 x 29 x 28 x 27 x 26 x 25 x 24 x 23 x 22 x 21 x 20 x 19 x 17 x 16 x 15 x 14 x 13 x 12 x 11 x 10 x 9 x 8 x 7 x 6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1). Isto, claro, se todas as trinta peças houvessem sido editadas ao mesmo tempo em igual tiragem. Contudo, dez peças foram produzidas em maior número e outras dez em menor número, distribuídas em diferentes datas, tornando o nível de dificuldade incalculável.

Há 50.063.860 combinações possíveis com 6 números de 1 a 60; o que significa que um apostador adulto teria mais chances de ganhar na Mega Sena da Virada do que os colecionadores mirins tiveram de obter sozinhos todas as cartas da coleção Vampiros ou Mythomania ou ainda Dracomania da Elma Chips®, consumindo apenas o mínimo necessário. Entretanto, existe mais de uma centena de coleções completas atualmente.

Pois bem, só isso prova que o meio costumeiro para atingir o fim nunca foi comer salgadinhos desesperadamente até o estômago explodir. Tamanha dificuldade exigia o exercício do pensamento estratégico e o desenvolvimento de habilidades sociais. Como uma criança não poderia obter muitos sacos de salgadinhos, o habito de colecionar figurinhas estimulava a interatividade e o trabalho em equipe, requerendo o engajamento de vários colegas na aquisição e troca de números repetidos.

O importante era perguntar e descobrir quem comprava Cheetos e Fandangos regularmente. Existiam consumidores que descartavam brindes, pois somente se interessavam pela comida. Ao negociar com eles poder-se-ia comprar os brindes indesejados ou ganhar figurinhas a troco de nada. Quando uma tarefa começa a ficar demasiadamente difícil sempre tem gente que desiste e abandona uma coleção incompleta. Conheça essas pessoas! Grude nos pés delas! Comprando apenas um saco de salgadinhos por semana durante o ano letivo a criança teria várias oportunidades para adquirir novas figurinhas e compartilhar guloseimas (porque quando alguém abre um saco de salgadinhos no horário do recreio escolar tanta gente pede um pouco que quem menos come é o dono do saquinho).

Quando o troca-troca entre colecionadores não facultava a obtenção de números raros apelava-se para o jogo do bafo onde jogadores depositam uma quantidade de figurinhas no chão, sorteiam a ordem de ação dos participantes e batem com a mão, um de cada vez, no monte de figurinhas. Os cromos que virarem do avesso passam a ser propriedade de quem os virou. O processo continua até que todas as figurinhas sejam retiradas. Deste modo a boa sorte ajudava a completar sua coleção desfalcando a do alheio.

Por tudo isso, depois de crescido, o colecionador muitas vezes mantém uma memória afetiva intensa com relação aos brindes de alimentos ultraprocessados; por mais obsoletos, simplórios e bobinhos que estes pudessem parecer ao não-brincante.

Sobre chicle e desconstrução de estereótipos monstruosos

O sapotizeiro (Manilkara zapota) é uma árvore originária do Sul do México e da América Central, produtora de deliciosos frutos comestíveis raramente encontrados nas feiras e mercado hortifruti por uma boa razão: Sendo a árvore alta e copada, com produção escassa, para coletá-los nós esperamos que morcegos frugívoros os derrubem no chão. O sapoti mordiscado não serve para consumo humano, porém os que caem intactos resistem ao espatifamento pela gravidade e podem ser degustados.

O nome do fruto, sapoti, vem do náuatle – antigo idioma da cultura Asteca – onde tzapotl designava tanto o fruto quanto a árvore. No Brasil, ameríndios incorporaram a partícula i do tupi, resultando no vocábulo sapoti. A cultura Maia conhecia esta árvore por outro nome, chiclé (de chi, boca e clé, movimento), donde deriva o inglês chiclets® e o português chiclete. Ocorre que pelo menos desde o século II o povo Maia, no México e Guatemala, já fabricava goma de mascar a partir do cozimento do látex do sapotizeiro.

O método de extração da seiva contendo 15% de borracha era o mesmo que os antigos brasileiros utilizavam para obter látex da seringueira (Hevea brasiliensis L.) cujos usos anteriores à monopolização industrial são desconhecidos. A cultura Asteca e todas que vieram depois se apropriaram e preservaram o costume de mascar a goma do látex de sapotizeiro, pois a estimulação da produção de saliva auxiliava na higiene bucal e reduzia a sensação de secura na boca durante longas caminhadas. Em 1871 o cidadão estadunidense Thomas Adams Junior (1818-1905) inventou e patenteou uma máquina para preparar goma de mascar em larga escala. Então inaugurou a primeira fábrica de chicletes, passando a importar do México quantidades de látex em escala industrial.

Após a morte de Adams, aos 85 anos, seus filhos e netos fizeram da American Chicle Company uma corporação que se espalharia por vários países ao longo da primeira metade do século XX. Essa boa gente fez benfeitorias na receita acrescentando açúcares, óleo hidrogenado, corantes, aromatizantes e embalagens chamativas. Com o tempo o látex vegetal acabou substituído por resina sintética derivada do petróleo.

Atualmente o grupo Cadbury Adams da Kraft Foods é controlado pela empresa Mondelēz International. Em 1940 os Adams iniciaram a produção de chicletes no Brasil. Desde então a fabricação e consumo de goma de mascar açucarada foi totalmente incorporada aos hábitos e costumes dos brasileiros. Assim como ocorreu ao futebol, surgido na Inglaterra no século XIX, o Brasil também se apropriou do chiclete e se tornou uma referência mundial. Outras fábricas surgiram, muitas delas brotando deste chão. Em 1998 os chicletes brasileiros já eram exportados para 115 países que compravam algumas toneladas produzidas por ano, representando 12% do consumo mundial.

Na década de 1930 o empreendedor estadunidense Ulysses Severin Harkson fundou a Kibon na cidade de Xangai, na China, como uma indústria produtora de sorvetes, chocolates e outros doces. Depois, em 1941, por causa da Segunda Guerra Mundial, transferiu sua empresa para o Brasil onde ela existe até hoje. Em 1957, a Kibon foi comprada pela General Foods Corporation. Em 1985 foi comprada pela Philip Morris. Em 1995 a Kibon comprou a fábrica de chocolate Lacta. Em 1997 a Unilever comprou a Kibon e a padronizou com sua estrutura global de sorvetes.

Isso explica por que um mesmo picolé icônico pôde ser comercializado por várias marcas ao longo de seis décadas. Em algum momento à época da vigência do Cruzeiro no Brasil – que durou de 01/11/1942 a 12/02/1967 – a fábrica de sorvetes Gelato© lançou o picolé Drácula com camada interna vermelha sabor morango e parte externa preta, sabor cola. No anúncio um vampiro-mirim segura a guloseima de Cr$ 1,20.

Em 1999-2000 a Kibon reviveu o picolé Drácula com melhorias[10], entre elas uma borda vermelha na parte inferior e um palito de plástico vermelho translúcido que servia como bloco de montagem de estruturas quando reunido em grande quantidade. Quem encontrasse o palito premiado durante a vigência da promoção Drac Mania poderia trocá-lo nos pontos de venda pela “dentadura do Drácula”. Atualmente este picolé não é mais fabricado em São Paulo, Brasil, mas foi relançado pela Algida©, na zona do euro, em setembro de 2018, e no Reino Unido pela Wall’sTM. Lá Drácula custa € 0,60 EUR.

Propagandas dos picolés Drácula da Gelato© e Drácula da Kibon, ao lado de um palito não premiado.

            Pertence a Kibon o mérito de criar as primeiras gomas de mascar infláveis. As crianças regozijaram com a possibilidade de assoprar bolas até explodir e melecar o rosto. Seu chicle, o Ping-Pong, também passou a dar brindes de figurinhas ausentes na concorrência da Adams. Após realizar a engenharia reversa da guloseima concorrente, que tornou seu principal produto obsoleto perante o gosto infantil, os funcionários da filial brasileira da Adams aprimoraram a fórmula e criaram uma máquina capaz de introduzir núcleo de líquido frutado que tornava a goma ainda mais saborosa. Este novo chiclete foi chamado de Bubbaloo. Em 1976 comercializou-se a primeira remessa eivada de vicio redibitório (o líquido escorria e melava o papel). Tendo corrigido o erro na fabricação e melhorado o design do produto, em 1982 a Adams teve seu melhor momento com o relançamento de Bubbaloo. Então a tecnologia nacional foi levada para outros países, derrubando todos os outros concorrentes na linha de chiclete de bola.

Eu me lembro de quando isto foi relançado. Certa vez vi um desenho onde um cãozinho passou diante duma TV onde foi exibido um comercial de ração de carne. O animal doméstico salivou, pois a comida inacessível parecia deliciosa. Ele foi à cozinha e mostrou o pote vazio à sua dona. Ela abriu uma lata de ração genérica donde saiu uma pasta molenguenta. A fome foi substituída por náusea, porém o bicho teve de fingir comer para agradar sua dona. Depois saiu da cozinha e cuspiu dentro de um sapato. As crianças da minha geração se sentiam como esse cachorro quando pediam Bubbaloo e acabavam levando bronca dos pais por escolherem o chiclete mais caro da barraca do baleiro. A gente chupava qualquer tablete com papel ou ganhava bala soft para engasgar vendo as meninas chiques fazendo combo de roupa da grife da Xuxa com batom Boka Loka, estourando as bolas gigantes do gostosíssimo Bubbaloo.

Consolo de pobre é figurinha. Durante a década de 1930 um empreendedor, Jacob Warren Bowman, foi o primeiro a distribuir tais brindes junto com gomas de mascar. Viram-se inúmeras crianças, no Japão, colecionando uma série de 240 imagens sobre a conquista das terras dos nativos americanos no velho oeste estadunidense. Por estes e outros eventos os adultos perceberam como a política imperialista dos EUA favorecia um mercantilismo superficial e fútil. Logo depois, em 1936, firmou-se a Aliança do Eixo na Segunda Guerra Mundial, dando início à sequência de fatos históricos que culminou no bombardeamento atômico das cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945.

Em 1960 as gomas de mascar se tornaram um ícone pop consumido em larga escala. Popularizaram-se os brindes de figurinhas colecionáveis, igualmente presentes em chocolates e outros produtos alimentícios. Vincular marcas à imagem de ídolos dos esportes, da música, do cinema e dos quadrinhos parecia uma ótima ideia. Em média, as coleções eram renovadas a cada noventa dias. As figurinhas de chicletes e biscoitos introduziram muitos menores no mundo do colecionismo, ainda que uma minoria entre os consumidores se engajasse fortemente no desafio de completar coleções.

Além dos cromos feitos para o colecionismo existem também figurinhas com efeitos especiais a exemplo das tatuagens temporárias e dos decalques. Você raspava com a unha ou rabiscava um lado da folha dos decalques sobre uma figura que era transferida para a cartela ou álbum, podendo ainda ser utilizada em outra superfície como papel ou madeira. O ruim era quando o material descolava uma parte e ficava cortado na hora que passava para o papel… Um sucesso acima da média de brindes de decalques ocorreu entre 1987 e 1988 com a promoção Ploc Monsters; realizada pela empresa Q-RefresKo, então proprietária da marca de chicle Ploc.

No primeiro momento, foram feitas 80 figuras com desenhos divertidos de monstrinhos criados pelo artista gráfico Céu D’Elia. Cada criatura trazia o nome de uma pessoa – metade do sexo masculino (números pares) e metade do feminino (números ímpares) – o que permitia brincadeiras entre amigos. Por causa da explosão nas vendas, 48 novas criaturas foram acrescentadas, num total de 128.

A promoção incluiu até comercial para TV com animações das figurinhas de Karen (27) e Tiago (52), que contracenavam com um grupo de crianças. Ploc Monsters atingiu a marca de 74 milhões de unidades vendidas, quando o Brasil tinha 120 milhões de habitantes. (…) A popularidade levou a Q-RefresKo a ampliar a série para mais de um ano e criou novos estímulos para manter as vendas aquecidas, como a troca de cinco embalagens do chiclete por um álbum em forma de pôster com espaços para “transfixar” as famosas figuras. O êxito ultrapassou as fronteiras dos chicletes de bola em 1988, quando Céu D’Elia ganhou o prêmio Top de Marketing daquele ano.[11]

Na coleção Ploc Monsters havia uma djin Patrícia (7), um ciclope Cristiano (10), uma múmia Nelson (14), um saci Victor (36), um tritão Lucinha (43), uma mula sem cabeça Karina (45), um vampiro Maurício (92), etc. Porém quase todos os monstros eram espécies nunca antes vistas em bestiários ou narrativas folclóricas. O mais interessante é que a Q-RefresKo passou a realizar experimentos sociais para investigar a causa do insuperável sucesso na venda de Ploc contendo figurinha Ploc Monsters.

A coisa mais incrível que poderia acontecer era você encontrar o seu nome no monstrinho. Ou achar o nome de um amigo – ou inimigo – e mostrar para ele. Em janeiro de 2015 a Coca-Cola lançou uma promoção semelhante imprimindo nomes de pessoas nas latas das versões regular e zero do refrigerante. Todo mundo quiz ter a “sua” lata.

Então será que Ploc Monsters vendeu tanto por causa da abundância de nomes de pessoas comuns? A Q-RefresKo encomendou uma nova coleção a Céu D’Elia com os mesmos nomes e mesma numeração, porém no lugar dos monstros a Ploc Zoo trouxe animais de boa aparência. A vendagem foi inferior. Portanto “eu sou um bicho” não perecia tão cômico e absurdo quanto “eu sou um monstro”. Eles tentaram de novo lançando mais monstros, desta vez nomeando-os por expressões grosseiras do dia-a-dia, tais como Traça de Livros (07), Otário (37), Olho Gordo (38), Encrenca (67), Linguaruda (113), etc. E a vendagem de Ploc Monsters 2 decepcionou. Determinou-se que o monstro genérico é apenas um desenho de gosto duvidoso. O choque do monstro humanizado, desconstruído, e do consumidor feito monstro, era aprazível às crianças. Mas não era divertido quando o feio monstrinho parecia vítima de bullying. O “eu” e seu espelho monstruoso eram, portanto, elementos indissociáveis na fórmula do sucesso.

A propósito, no que diz respeito aos colecionadores de figurinhas de bichos, sempre houveram opções de maior tamanho e melhor qualidade de impressão. As mais famosas eram a enciclopédia do mundo animal Mil Bichos lançada em cartões pela Editora Abril, em 1978, contendo mil e oito cartões mais fichas e folhetos comprados separadamente em bancas de jornaleiro para serem arquivadas em caixas de acrílico (display). Cada ficha continha uma fotografia e, no verso, tudo sobre o animal. Ali se via desde pavão, panda, lince, etc., a vermes de intestino, morcegos e sanguessuga.

É sério, se a oportunidade faz o ladrão ela também faz o biólogo. Pense em crianças felizes por colecionar material paradidático sobre Trypanosoma cruzi como se aquilo fosse a carta de um Pokémon raro!

Cartão VAMPIRO (290) da coleção Mil Bichos (1978). Frente e verso.

A Nestlé copiou a ideia ao incluir cartas educativas como brinde do chocolate Surpresa, porém excluindo quaisquer animais impopulares, como insetos e quirópteros. As mais belas fotos da natureza que já se viu em brindes de alimentos compuseram as coleções Animais de Todo o Mundo (1983), Animais do Pantanal (1984), Maravilhas do Mar (1985), Animais da Amazônia (1986), A Fantástica Mata Atlântica (1987), Litoral e Ilhas Oceânicas (1988), Campos e Cerrados (1989), Sertões (1991), Viagem ao Fundo do Mar (1995) e Shows da Natureza (1998). Desenhos realistas tornaram as coleções Cães de Raça (1992), Dinossauros (1993) e Viagem Espacial (1997) objetos de desejo dos amantes das artes. Mas as caricaturas de O Guia dos Curiosos (2001) puseram um fim nas vendas das barras de chocolate Surpresa. Ninguém gosta de bichos imprecisos.

A próxima empresa a investir em figurinhas de monstros seria a Elma Chips®, com a coleção ChipSustos lançada em 1992. Eram quarenta e cinco figurinhas adesivas para colar em três pôsteres chamados Mansão Susto, Selva Susto e Tumba Susto. Tanto as figurinhas quanto os pôsteres possuíam traços que brilhavam no escuro após um minuto de exposição a luz. Os cromos de número cinco e oito formavam um casal de vampiros habitantes da Mansão Susto. O número vinte e dois era um homem morcego habitante do cemitério Tumba Susto.

A primeira coleção nacional de brindes de guloseimas completamente dedicada à temática do vampirismo foi a coleção de figurinhas Vampirus, brinde do chicle Bolin-Bola, fabricado pela indústria brasileira Nechar Alimentos Ltda. A telenovela Vamp foi produzida e transmitida pela Rede Globo entre 15/07/1991 e 08/02/1992. Durante e após esse período a Rede Globo exibiu nos intervalos o comercial do chicle Bolin-Bola na forma de desenho animado onde quatro crianças penetram num castelo sombrio. Lá eles são primeiro perseguidos por uma revoada de morcegos. Começa a correria.

Uma menina percebe que a solução para não temer vampiros é ser vampira. Ela saca um pacote de goma Vampirus e se transforma no estourar da primeira bola. Depois persegue os outros até o menino mais magro desgarrar do grupo e aceitar a oferta de chicle. Dois vampiros perseguem o par restante e, por fim, três convencem o último amedrontado a transformar-se. A propaganda termina com as quatro crianças saindo do castelo, voando com asas de morcego, num céu limpo e bonito em plena luz do dia.

A coisa real era um pacote contendo cerca de cinco bolotas de chicle nas cores preto, vermelho e roxo. Ao chupá-las elas coloriam a língua. O gosto não era ruim, porém não era dos melhores. Ao assoprar as bolas não cresciam muito e o operador de vincadeira manual responsável pelo corte das figurinhas deveria sofrer mal de Parkinson pois saiam todas tortas. Mesmo assim eram belas e exibiam sequencias de cenas do comercial, sem nenhuma relação com a telenovela além da contemporaneidade. Fiz de tudo para completar a coleção. Comprei caixas lacradas e garimpei chicletes vencidos a cinco anos encalhados num estoque. Mesmo assim me faltam cromos importantes.

Em 1999 a marca de chicle Buzzy, da Riclan, empresa de capital nacional, provocou a ira dos moralistas ao licenciar a distribuição de figurinhas com fotos sensuais da atriz Suzana Alves no papel de Tiazinha – personagem do programa “H” de Luciano Huck, na TV Bandeirantes – ultrapassando a venda de cem milhões de unidades em três meses. No ano seguinte criou igual rebuliço e sucesso com figurinhas das dançarinas do grupo É o Tcham! Todavia, mais tarde, quando licenciou uma coleção de figurinhas da telenovela O Beijo do Vampiro, a Riclan não escandalizou ninguém.

Imitando a melhor ideia da Nechar à época de Vamp, a Riclan inseriu em seu chicle uma tinta que deixava a boca pintada de azul, no sabor tutti-frutti; e de verde, no sabor hortelã. Foi um baita tiro no pé! Notoriamente o preto, o roxo e especialmente o vermelho da Nechar guardavam relação de pertinência temática com o mitologema do vampiro; mas o que as cores felizes da Riclan teriam a ver com o assunto? Malfeitos a parte, pelo menos a Riclan distribuiu gratuitamente o álbum Chicle de Bola Buzzy: O Beijo do Vampiro (2002), com espaço para colar as noventa figurinhas numeradas que vinham enroladas na respectiva goma de mascar.

Gustavo Bacchi, então gerente de marketing da Riclan, explicou ao jornalista Gonçalo Junior que a ideia era estimular o habito do colecionismo em consumidores da faixa dos seis aos doze anos de idade.[12] Este brinde saiu antes mesmo do álbum oficial da telenovela O Beijo do Vampiro (2003), editado pela Panini, vendido em jornaleiros juntamente com os pacotinhos de seus cento e setenta e quatro cromos. A divergência na data de lançamento se deve ao fato de que ninguém quereria figurinhas tão miúdas após ver os cromos da Panini.

Vampiro: Padrões iconográficos

Embora figurinhas de chiclete e biscoitos tenham por público alvo crianças de seis a doze anos, muitos dos personagens criados por Céu D’Elia para a coleção Ploc Monsters caberiam sem ressalvas na estética de produções de horror destinados a consumidores maiores de dezesseis. Denise (113), a feia mulher de biquini com enormes glúteos verruguentos, é o melhor exemplo disso. Porém o vampiro Maurício (92) foi trabalhado num estilo caricatural precursor das Cal-Arts – ainda que anatomicamente menos impreciso e preguiçoso. – Algo assim lembra os filmes clássicos com Bela Lugosi e Christopher Lee, porém jamais teria lugar numa antologia de quadrinhos da Taika, D-Arte ou Vecchi, aliás, nem da Bloch ou Ebal.

Maurício usa terno azul-marinho, colete azul-piscina, blusa social branca e meias pretas. Seus sapatos parecem mocassins brancos de bico preto. A capa de gola alta é preta com forro vermelho. A barra inferior da capa é recortada na forma de patágios ou farrapos simétricos. Hoje em dia alguns poderiam considerar a combinação de quatro cores demasiadamente colorida, para um personagem sombrio; entretanto, para a moda da época, tratava-se de tons pesados, solenes e sóbrios. Maurício é um homem adulto, magro, pálido como papel sulfite branco. Tem cabeçorra de tamanho desproporcional ao corpo e boca aberta desproporcional à cabeça para focar nossa atenção nos seus dentes e garganta vermelha. Seus olhos esbugalhados – compostos por círculos concêntricos em branco e preto – parecem vetores de hipnose. O vampiro tem unhas longas e ele estende as mãos para o alto como se pretendesse nos agarrar.

O homem morcego da coleção ChipSustos é um horror impecável. – Pena que o papel envelheceu mal e o meu cromo criou manchas. – Quanto ao casal de vampiros, ambos são adultos de pele verde com três dedos em cada mão. Ele tem cabelo azul e ela é ruiva. Ambos usam capa de ópera. A dele tem gola alta, é preta com forro roxo. A dela é roxa com forro cor de rosa. Ele usa sapatos azuis, calças pretas e blusa vermelha de mangas longas com rendas brancas nas pontas. Ela usa sapatos vermelhos, cinto vermelho e vestido azul com gola de renda branca. A desarmonia das cores se harmoniza nos tons e nada parece alegre em meio a cenários sombrios.

Ele tem olhos grandes, com olheiras arroxeadas, orelhas com cantos pontudos e dentes visíveis. Enquanto o Maurício da coleção Ploc Monsters era um vampiro com atitude condigna ao mitologema predominante no período, o personagem anônimo no cromo de número oito da coleção ChipSustos parece um bobalhão. Inclusive ele segura um canudinho de plástico do tipo que as lanchonetes davam para inserirmos nos copos de refrescos. (Chupar sangue de canudinho é o cúmulo do ridículo).

A personagem do cromo de número cinco apresenta pose e expressão facial agressivas, porém foi sensivelmente menos trabalhada, mais pobremente desenhada. Todos os outros monstros da coleção foram mais seriamente representados do que o casal de vampiros. O que confere relevância à ChipSusto é a sua mágica, sua ciência oculta. Os adesivos luminosos apresentam em sua constituição a substância sulfeto de zinco, que tem a propriedade de emitir um brilho amarelo-esverdeado depois de exposta à luz. Ao absorver fótons em ambiente claro os elétrons de seus átomos saltam para níveis de energia mais externos; mas ao absorver elétrons em ambientes escuros são os fótons que saem causando o efeito de fosforescência.[13]

O homem morcego da coleção ChipSustos.

Em 1998 a Elma Chips voltou a lançar figurinhas fosforescentes com tema de monstros na coleção Brilha Susto Família Addams, contendo trinta cromos e sete partes do corpo. Porém tal coleção não nos interessa tanto pois traz arte estrangeira licenciada.

Quando eu era criança acreditava que Ploc Monsters era uma dessas coleções importadas por causa do nome, e também ChipSustos pela ausência de menção ao folclore brasileiro. Se já existisse internet os moleques gringos me esfregariam na cara a arte realista dos cromos adesivos Garbage Pail Kids. Mas se, ao invés disso, eles vissem Elma Chips Vampiros esconderiam suas cabeças com sacos de pão. Alguma coisa mudou por aqui e foi para melhor. A evolução do trabalho artístico nos brindes da Elma Chips é berrante.

Embalagem do chocolate Choco Monstro (1993/94) e tablete da Cacau Show (outubro de 2021)

O diferencial da coleção Vampirus da Nechar está no protagonismo infantil. A história é essencialmente sobre dois meninos e duas meninas de tenra idade brincando de pique pega assombrado. Ninguém é top model. Tem um magricelo, um gordinho, uma menina sardenta e a outra parece uma versão infantil de Mary Matoso. Isto traduz essencialmente um clima de carnaval ou dia das bruxas, sendo perfeita para menores. (Mas foi justamente por ser tão politicamente correto que o projeto flopou).

A primeira figurinha virtual de ampla difusão no mundo globalizado

Antigamente gabinetes de computadores eram de plástico branco e amarelavam com o tempo. Mesmo limpos eles pareciam sujíssimos. Os monitores eram tecnologia de tubo, parecidos com TVs analógicas. Não existia internet em casa de pobre e crianças eram iniciadas na complexa linguagem de programação apenas para digitar simplórios trabalhos escolares, pois não existia sistemas operacionais como o Microsoft Windows.

Naquele tempo um computador funcionava basicamente como uma máquina de escrever capaz de realizar a utilíssima mágica de editar palavras de modo que poderíamos corrigir erros de gramática sem redigitar uma folha inteira. Além do mais podíamos controlar o tamanho das fontes e eleger mais de um estilo de escrita, o que era incrível.

Ao invés de pendrive nós usávamos disquetes, sendo que o disquete mais comum conseguia armazenar 1,44 MB. Hoje uma simples foto tirada do celular ultrapassa esse tamanho. A memória dos computadores também não era lá grande coisa, por isso quando alguém cometia o desatino de desenhar o fazia em tamanhos de pixels impensáveis. (E mesmo assim as mães bronqueavam). As impressoras matriciais eram barulhentas, morosas e só imprimiam em formulário contínuo, que são folhas muito diferentes do papel A4, todas juntas e com tiras furadinhas destacáveis nas bordas direita e esquerda. Essas folhas eram vendidas em guia única ou dupla com papel carbono no meio, pois se pensava que assim economizariam a tinta da fita de impressão. A pigmentação da fita era quase azul de tão clara. Contudo, representava uma relevante evolução em relação à tinta roxa – muito aguada e borrada – dos velhos mimeógrafos.

A baixa definição das imagens somada à limitação da qualidade das impressões possíveis calhava em desenhos divididos em blocos retangulares. A primeira impressora matricial Epson que chegou ao meu lar pertencia ao meu primo Sidney Caetano, que a recebeu junto com um disquete com figurinhas às quais se poderia adicional textos editáveis. Este era o pacote de software PrintMaster, que rodava em MsDos[14]. Lá tinham desenhos padronizados para convites de festas, robô, alienígena, etc. No meio de tudo havia um modelo padrão de vampiro que foi escolhido por meu primo para uma pegadinha. Mal sabe ele que eu gostaria tanto do desenho que o guardaria até hoje. Aqui ele escreveu “vampiro” usando a primeira versão da fonte Old English.

O software PrintMaster se tornou um marco da editoração eletrônica na década de 1980, sendo o único aplicativo até o momento que fornecia bibliotecas de imagens e modelos pré-concebidos através de uma interface gráfica simples, sendo possível construir placas, papelaria ou desktop, cartões de felicitações, cartazes e banners, calendários e ainda incluía um editor gráfico onde você poderia criar sua própria imagem nos mesmos moldes.

Sobre a função social da consolidação de padrões iconográficos

Seriam todas as figurinhas demasiadamente efêmeras, supérfluas, desprovidas de valor intrínseco? É difícil estimar onde alguém vê um monstro fictício pela primeira vez. Entre os trinta cromos contendo charadas da coleção “O Que É, O Que É?”, lançada em 1991 pela Elma Chips®, um deles pergunta: “Por que o vampiro usa suspensórios pretos?” A criança removia a aplicação duma tira de cobertura para raspadinha na parte inferior e lia a resposta óbvia: “Para segurar as calças”.[15] Com isso era mais fácil auferir noções da moda masculina antiga (capa de ópera, suspensórios) do que deduzir a razão que faz do personagem lúdico um não humano, um morto vivo.

Quem não soubesse previamente o que é um vampiro não passaria a saber por causa dum único desenho ou fotografia de ator com área variável entre quatro (2 por 2) e nove (4,5 por 4,5) centímetros. Todavia a presença de rostos conhecidos e imagens criadas a partir de padrões iconográficos consolidados funciona como uma sequência de estímulos mnemônicos ou exercícios de fixação de conteúdos aprendidos.

A estreita limitação de conteúdo informativo em brindes de alimentos e figurinhas em geral implica na necessária complementariedade com informações provenientes do contexto cultural onde a criança está inserida. Ou seja, é verdade que praticamente ninguém obtinha informações relevantes sobre os conteúdos apresentados em cromos, decalques, adesivos e outras miudezas isoladas. Por exemplo, um vampiro bidimensional e estático não nos diz muita coisa, contudo dez deles passam uma mensagem. Um no gibi, outro na novela, outro no cinema, outro no livro, outro na figurinha colecionável. A memória começa a correlacionar os pontos de intercessão. Isso é folclore.

As crianças aprendem e consolidam a informação por meio da repetição. Elas precisam de diversos exemplos para realmente aprender. Na primeira vez prestarão atenção às cores e sons, nas próximas talvez foquem sua atenção nas regras dum jogo, na história dum gibi, na linguagem ou no arco narrativo dum desenho animado.

Pequenos lembretes aqui e ali facilitam e reforçam a assimilação da informação que resulta na abstração do mitologema que corporifica o vampiro no mundo das ideias. A recorrência na visualização de imagens semelhantes situa o cidadão numa zona de conforto. Isso faz a criança confiar em sua capacidade de prever que algo ao seu redor permanecerá seguro e contínuo. O mesmo é válido para embalagens decoradas de xampu, charges de jornal, enfeites e trajes festivos (para carnaval e halloween), jogos temáticos e tudo aquilo que motiva o menor a contextualizar seu próprio desenho, sua redação, seu conto, seu artesanato, sua música, enfim, a começar sua produção autoral.

Notas:

[1] O nome próprio masculino singular Nasty Nick faria referência à frase “What a nasty nick” (“Que apelido desagradável”); deixando subentendido que o objeto da crítica, a “Cabbage Patch Kids” (“Repolho Infantil”) tem um nome gordofóbico. Daí o merecimento da paródia “Garbage Pail Kids” (“Balde de Lixo Infantil”).

[2] REDAÇÃO JDV. Itens que eram comuns no passado e hoje são muito valiosos: Se você tem algum desses em casa, não jogue fora. Em: JDV, posto online em 16/10/2022. URL: <https://www.jdv.com.br/itens-que-eram-comuns-no-passado-e-hoje-sao-muito-valiosos/>.

[3] VERNER, Emma. Thesee Old Toys Are Worth A Fortune Today. Em: Investing.com. Atualizado em 17/06/2023. URL: <https://za.investing.com/magazine/these-old-toys-are-worth-a-fortune-today-2/>.

[4] NASTY NICK – EVIL EDDIE. Em: Garbage Pail Kids Wiki. Acessado em 22/09/2023. URL: <https://gpk.fandom.com/wiki/Nasty_NICK_-_Evil_EDDIE>.

[5] JUNIOR, Gonçalo. Ora, Bolas! A inusitada história do chiclete no Brasil! São Paulo, Alameda, 2012, p 116.

[6] PL 4815/2009 – Inteiro teor. Acessado em 04/12/2021 18h55.

URL: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=426002>.

[7] Outros brindes conhecidos do McDonald’s distribuídos no Brasil incluem Minion Vampiro (2015), bonecos de Hotel Transilvânia 2 (2015) e DVD do filme Crepúsculo.

[8] PEÇA AOS DEPUTADOS PARA APROVAREM O PL 4815/2009. #ABUSIVOTUDOISSO (Abaixo assinado). Instituto Alana. URL: <https://criancaeconsumo.org.br/abusivo-tudo-isso/>. Acessado em 06/12/2021.

[9] Vampire: The Eternal Struggle é um jogo de cartas colecionáveis projetado em 1994 pelo matemático e designer de jogos Richard Garfield, inicialmente publicado pela Wizards of the Coast com o nome de Jyhad. Isso vendeu muito no Brasil e era comum ver pessoas jogando em mesas durante eventos de RPG.

[10] Conforme indicado na embalagem seus ingredientes eram: Água, açúcar, xarope de glicose, aromatizantes, acidulante ácido cítrico, corantes naturais carvão vegetal, urucum e carmim de cochinilha, espessantes carboximetilcelulose sódica, goma guar e carragena.

[11] JUNIOR, Gonçalo. Ora, Bolas! A inusitada história do chiclete no Brasil! São Paulo, Alameda, 2012, p 116.

[12] JUNIOR, Gonçalo. Ora, Bolas! A inusitada história do chiclete no Brasil! São Paulo, Alameda, 2012, p 30.

[13] FILHO, José Tadeu de Oliveira. Como funcionam os adesivos que brilham no escuro? Em: SUPER INTERESSANTE. Última atualização em 31/10/2016, 18h49. URL: <https://super.abril.com.br/ciencia/como-funcionam-os-adesivos-que-brilham-no-escuro/>.

[14] O MS-DOS foi originalmente desenvolvido pelo programador estadunidense Tim Paterson da empresa Seattle Computer Systems. Dentro da História da computação é considerado por alguns como sendo o produto que decidiu o destino da então minúscula Microsoft. O MS-DOS foi sucedido por duas linhas de produtos: o OS/2 e o Windows 3.11. O desenvolvimento destes sistemas operacionais pode ser considerado como a evolução da informática nas décadas de 1980 e 1990.

[15] O QUE É, O QUE É? Publicado no blog Coleções Elma Chips, acessado em 10/11/2021.  URL: <http://colecoes-elma-chips.blogspot.com/2013/02/o-que-e-o-que-e.html>.

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