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Sitra Achra

Satanismo: a religião da carne, do mundano e da matéria

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Nos últimos meses, tenho dedicado parte das horas de meus dias a refletir, seja solitariamente ou em conversa com alguns confrades, sobre os aspectos materialistas da filosofia satanista, tal como defende Anton LaVey em sua magnífica obra A Bíblia Satânica. Este livro, que serve de referencial para várias irmandades, iniciados, e para todo aquele que quiser compreender o satanismo e o arquétipo de Satã enquanto filosofia religiosa independente da concepção judaico-cristã maniqueísta, pondera que “o satanismo não é uma religião da luz branca”, mas sim a “religião da carne, do mundano e da matéria”. Conscientes disto, questionamos: em que, exatamente, a espiritualidade satanista diferencia-se da praticada e concebida pelas religiões da mão direita? Como o materialismo pode ser visualizado na concepção e na práxis satânica?

Diferentemente do que muitos possam pensar, não é apenas o satanismo rotulado “ateísta” (termo que particularmente não me agrada, preferindo definir tal senda como “agnóstica”) que pode ou deve ser rotulado enquanto materialista. Também o satanismo dito “teísta” (tampouco este termo me agrada, sendo “gnóstico” a definição mais apropriada) carrega em sua filosofia prática vários aspectos do humanismo e do materialismo que não devem jamais ser desprezados. Em minha concepção, e em detrimento das disputas e rixas que ocorrem diariamente entre ambas as vertentes, o satanismo gnóstico e agnóstico possuem uma forte similitude que é capaz de superar em muito qualquer diferença: um grande e ousado projeto de reunificação do indivíduo!

Segundo Nietzsche, em sua obra Crepúsculo dos Ídolos, um dos grandes legados da concepção judaico-cristã, diretamente corroborado pelo idealismo platônico, seria justamente o desprezo pela vida, pelo prazer e pelo presente. O autor pondera que o judaico-cristianismo, desenvolvendo uma forma de moralidade calcada no espiritual e no metafísico, tenderia a desprezar o prazer da carne e a realização em vida. Do mesmo modo, as promessas de uma recompensa pós-vida fariam com que os adeptos desta religião depositassem suas esperanças e anseios em uma futura redenção divina, tornando o presente apenas um estágio passageiro, muitas vezes sem sequer direito de existir. Em outras palavras, cristalizou-se uma forma de religiosidade calcada na privação, na abstinência e na subserviência, em que o “paraíso celestial” seria uma gratificação pela negação do prazer, do deleite e da autonomia na terra.

Deste modo, a moralidade e espiritualidade presentes no judaico-cristianismo contribuíram para o desenvolvimento de uma concepção dualista do ser humano e do universo em si, que passaram a ser compreendidos como uma incessante luta entre o “bem” e o “mal”, cujo resultado poderia ser apenas a vitória de um e a extirpação do outro, a afirmação de um e a negação do outro. Neste processo, o ser humano, carregando a culpa do “pecado original”, passou a ser palco de um forte conflito entre sua devoção para com um deus “grande”, “poderoso”, mas ao mesmo tempo estranho e distante a ele, e seus desejos por prazer, realização e liberdade. Como consequência disto, também a relação entre matéria e espírito foi contaminada pelo dualismo cristão, passando a matéria a ser concebida, em grande parte, como a “ilusão” de Satã sobre o homem que, na tentativa de cooptá-lo do “caminho da vida”, o arrastaria para o usufruto do “pecado”, desviando-o assim para “o caminho da morte e da perdição”. Uma vez que a matéria passou a personificar o “diabo”, o espírito passou a ser a personificação da manifestação divina. Consequentemente, as religiões abraâmicas passaram a defender a sobreposição do espírito à matéria.

Contudo, houve um dado momento (curto, porém significativo) em que Satã, erguendo-se triunfal após sua queda, reclamou para si o direito sobre sua cara humanidade. Este momento ficou conhecido na história do homem como “Renascimento”. Tal período foi marcado por forte soerguimento da matéria que, longe de querer amordaçar o espírito, queria apenas maior liberdade para expressar-se, obtendo o reconhecimento e valorização que lhe eram devidos. O ser humano redescobriu o prazer carnal, a beleza estética, a possibilidade da realização pessoal em vida e a fruição do presente. A vida, depois de séculos imersa em devaneios espirituais e promessas de felicidade pós-morte, novamente emanava vontade de potência! O indivíduo mais uma vez sentiu-se apto para conduzir sua vida e arbitrar sobre seu destino, podendo compreender e transformar o mundo através da ciência e da filosofia, e enaltecer a si próprio através da literatura, das artes plásticas e da música.

Tal como já sabemos, esta tendência intelectual/artística não libertou a humanidade do jugo da servidão a deus, nem tampouco da opressão imposta por suas “sagradas instituições”, tais como o Estado e a Igreja que, longe de sucumbir, tiveram possibilidade de reformar-se e manter seu domínio sobre sociedades inteiras. Nem sequer penso que seja possível que um movimento ou corrente ideológica possa, por si só, libertar verdadeiramente o ser humano, visto que, como pensam aqueles que partilham de uma concepção satanista de mundo, a libertação deve ocorrer por mérito próprio, em um constante e difícil processo de autoconhecimento e autoaceitação, que liberte o homem das amarras das convenções sociais que lhe prendem. Contudo, o Renascimento Cultural proporcionou bases materiais para que, posteriormente, outros indivíduos e grupos pudessem insurgir contra a ordem religiosa e moral existente, desenvolvendo novas concepções a respeito do ser humano e do universo como um todo e, consequentemente, uma forma de religiosidade que pudesse responder aos anseios deste homem sedento por prazer carnal e realização material que, longe de esperar na benevolência divina sua redenção, quis tornar-se seu próprio redentor de uma vez por todas!

Neste sentido, o satanismo, independente de possuir uma concepção de universo gnóstica ou agnóstica, resgata diversos traços do chamado “Renascimento” no sentido de enfocar a necessidade do ser humano recuperar sua percepção de mundo e seu prazer na carne e na matéria. Para tanto, possui como filosofia pragmática um grande projeto de desfragmentação deste indivíduo, compreendendo que este, para alcançar sua plenitude (materializada no arquétipo de Lúcifer, o “portador da luz”), deve romper com os dogmas cristãos de “culpa” e “pecado”, permitindo a fruição de suas necessidades materiais de modo livre e espontâneo. Uma vez que o ser humano é compreendido enquanto uno, o sentimento dualista de conflito entre espírito e matéria se dissolve, e o iniciado passa a compreender que ambas as partes estão em constante sintonia, estando a plenitude espiritual entrelaçada com uma vivência material agradável e indulgente.

Outro aspecto da filosofia e prática satanista que visa a reunificação do indivíduo é a compreensão da existência de um lado “obscuro” no ser humano que, longe de ser ocultado ou exorcizado, deve ser compreendido e aceito. A este lado “obscuro” dá-se o nome de “sombra”, “self” ou, como é mais conhecido, “inconsciente”. Crê-se que a sombra seja a camada mais profunda de nossa psique, que oculta impressões sociais reprimidas pelo ser humano. Em geral, tal “repressão” se deve por tais sentimentos ou atos não serem aceitos pelos padrões morais da sociedade em que convivemos, ou por serem extremamente vergonhosos ou traumáticos a nós, ficando assim “ocultos” em nosso “inferno particular”. Contudo, sabemos que não há nada que possa ser ocultado por muito tempo e, estes “demônios”, quanto mais tempo ficam amordaçados, mais força adquirem, até que um belo dia destroçam os grilhões que os prendiam e tomam o espaço que outrora lhes era negado, gerando resultados nefastos no psicológico humano (muitas vezes também no físico) e para aqueles que com este convivem.

Para evitar tal colapso, o satanismo, diferentemente das religiões da mão direita, desenvolve a chamada “Espiritualidade da Sombra”, que consiste num constante processo de autoconhecimento, seja através da compreensão e interpretação de nossos sonhos (momento em que o “self” se manifesta com maior intensidade), através de auto-sugestão, ou até mesmo na convivência diária com outras pessoas, visto que, acredito eu, é na convivência com o outro que se desvelam muitas das ilusões que o indivíduo, em sua solidão, cria acerca de sua pessoa. A este processo de autoconhecimento segue-se também a necessidade de autoaceitação. Apenas após aceitarmos nosso lado “sombrio” possuiremos condições de seguir adiante num processo de transformação que nos conduza à chamada “apoteose” ou “plenitude”, a capacidade que todo ser humano porta de tornar-se o deus de sua própria vida.

Satanistas gnósticos e agnósticos divergirão neste aspecto da “autodeificação”. Os primeiros, acreditando que o ser humano é parte do Cosmos e, tal como uma célula, possui em si o “todo” que compõe o universo (logos ou razão divina, personificada no arquétipo de Baphomet), concebem a apoteose como um processo que visa a fusão do indivíduo com a chamada “inteligência cósmica”, ou seja, o despertar da “centelha divina” (gnose) que em nós se faz presente. Satanistas agnósticos, diferentemente, consideram esta “inteligência cósmica” uma mera força reguladora do universo, distante, estranha e abstrata ao ser humano neste universo infinito, acreditando deste modo que, não havendo qualquer deus que possa realmente valer pelo ser humano nem tampouco redimi-lo, apenas o próprio homem pode ser seu deus, visto que apenas nós podemos dar sentido às nossas vidas e transformar o mundo em que vivemos através de nossas ações. Apesar desta divergência, em ambos os casos o projeto de “novo homem e nova mulher” existente no satanismo opera de modo a desfragmenta-los, compreendendo que espírito e matéria, luz e trevas, ego e self, são divididos por uma membrana muito mais fina que se imagina, havendo uma constante influência entre ambos os lados, sendo estes não conflituoso, porém complementares, tal como uma moeda que, mesmo possuindo dois lados, é una.

Assim, compreendendo esta finalidade prática de reunificação do indivíduo, o satanismo, longe de ser apenas mais uma crença ou doutrina massificadora, expõe-se como uma forma verdadeiramente revolucionária de religião. Sua espiritualidade, diferente da concebida pelas “religiões de (falsa) luz”, concretiza-se na relação do ser humano consigo mesmo que, compreendendo a importância do conhecimento e aceitação de seu lado “sombrio”, assim como do usufruto do prazer e da vida, transpõe o dualismo cristão que até então o fragmentava. O indivíduo, que até então renegava sua “sombra”, seu mundo e seu corpo, passam a ver nestes importantes aliados num processo de despertar de seu potencial divino, seja este potencial fruto de uma “consciência cósmica” inata (concepção gnóstica) ou de sua capacidade de transformar sua vida e seu futuro por sua própria iniciativa (concepção agnóstica). Independente da visão que possuir o iniciado, uma coisa é certa: ele, rompendo com a tradição judaico-cristã de adoração a um ente distante e “superior”, agora visualiza-se como seu único e próprio deus. Satã, até outrora visto como um inimigo, é compreendido como o arquétipo da liberdade, da antinomia e da indulgência, qualidades sem as quais o ser humano jamais atingiria a plenitude, visto que ninguém pode atingir o “paraíso” sem aprofundar-se em seu “inferno” pessoal, nem tampouco tornar-se “divino” sem conhecer-se enquanto “ferino”. Eis aqui a grande pretensão religiosa do satanismo: unir novamente as pontas outrora desatadas, compreendendo o indivíduo e o universo enquanto unos, compostos por luz e trevas, espírito e matéria e, assim, derrubar a decrepitude das velhas religiões da mão direita, devolvendo ao ser humano seu absoluto direito de ser seu deus e seu demônio! Que seja feita a nossa vontade! Shemhamforash! Hail Satan!

Frater Thanatos Daemon

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