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Somaterapia: a terapia anarquista

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Em 1964, os militares no Brasil deram um golpe de estado apoiado pela CIA e grupos de direita locais, inaugurando uma sangrenta ditadura. Foi durante esta ditadura que um ativista anarquista clandestino chamado Roberto Freire, que também era psicanalista, (anti)psiquiatra e autor de livros e peças de teatro, confirmou os efeitos destrutivos da repressão no comportamento e na saúde psicológica e mental das pessoas. Freire acreditava que as relações microssociais são a gênese do autoritarismo macrossocial e buscou compreender a política da sociedade moderna por meio do comportamento das pessoas em sua vida cotidiana.

Ele percebeu que o fato de acreditar em determinada ideologia e ter uma visão libertária do mundo nem sempre leva a ter um comportamento libertário em suas relações pessoais com seus semelhantes – há algo mais, como um barreira inconsciente, que determina as atitudes dos indivíduos em relação à vida e às outras pessoas. Freire, então, rompeu com a psicanálise e nas décadas seguintes pesquisou e desenvolveu a Somaterapia – uma forma de terapia em forma de pedagogia, ou uma espécie de pedagogia com efeitos terapêuticos. Isso significa que a forma de lidar com a neurose é deslocada de uma perspectiva médica para uma educacional.

O objetivo da Somaterapia é libertar aqueles que foram submetidos à repressão (ou seja todos nós). Ela se sustenta-se na teoria e na práxis da psicologia social e corporal de Wilhelm Reich, Antipsiquiatria, Gestalt Terapia, Anarquismo e com a arte afro-brasileira do povo chamado Capoeira Angola da Bahia

A técnica que ele criou consiste em reunir um grupo de pessoas para formar um coletivo com duração limitada (cerca de um ano e meio) exatamente tal quais as Zonas Autônomas Temporárias de Hakim Bey. Esses grupos por meio de dinâmicas autogestionárias e não hierárquicas, buscará explorar, compreender e desenvolver suas capacidades de ser criativo, autorregulado, amar e ser amado e ter confiança na defesa de seus próprios desejos e necessidades em relação a uma sociedade hostil aos indivíduos independentes.

Tudo isso acontece em uma metodologia composta por quatro elementos:

  1. (1) experiência de exercícios criados por Freire e realizados pelo terapeuta responsável pelo grupo (Freire ou um discípulo dele);
  2. (2) reuniões do grupo sem a presença do terapeuta (que garante a independência e responsabilidade do grupo e de cada pessoa pelo processo terapêutico);
  3. (3) prática da Capoeira Angola;
  4. (4) interação dos membros do grupo em diversas atividades sociais, seja por diversão ou qualquer tipo de trabalho coletivo.

Os exercícios criados por Freire geralmente são exercícios corporais, seguindo a percepção de Wilhelm Reich de que a neurose está localizada não apenas na mente, mas também no corpo. Reich percebeu que a estrutura social autoritária e seu mecanismo de repressão moldam a personalidade das pessoas, criando uma armadura de caráter neuromuscular. Isso significa uma rigidez crônica nos músculos que obstruem a circulação plena da energia vital. Então torna-se um corpo sem vida, incapaz de agir espontaneamente, de sentir prazer, amor ou emoções verdadeiras.

Reich tinha certeza de que essa doença tem causas sociais, que é implantada pela supressão sistemática das necessidades instintivas de sexo, prazer e amor, realizada por mecanismos autoritários que obrigam todos nós, desde os primeiros dias de vida, a nos adaptarmos a padrões de comportamento social. “A submissão milenar da vida impulsiva criou o terreno para o medo psicológico das massas à autoridade e a submissão a ela, para uma incrível humildade, por um lado, e uma brutalidade sádica, por outro – e é por isso que nos últimos 200 anos, a economia capitalista de lucros pôde expandir-se e sobreviver’, disse Reich.

Roberto Freire é um precursor da Terapia Reichiana no Brasil e uma das poucas pessoas no mundo que manteve a unidade entre as abordagens sociopolíticas e psicoterapêuticas contra a neurose. Opondo-se às ideologias do sacrifício (neurose), Freire sustenta que a condição humana saudável reside no que chamou de ideologia do prazer. Os exercícios que criou levam os participantes a comunicar corporalmente as suas barreiras e dificuldades, ao mesmo tempo que proporcionam alívio bioenergético, libertação da criatividade e estimulação e despertar dos sentidos. Eles têm efeitos diagnósticos e terapêuticos simultâneos.

Seguindo o princípio do prazer, Freire refutou a tendência da psicologia tradicional de relacionar a terapia com desconforto, sofrimento e formalidade e buscou criar exercícios lúdicos, divertidos e prazerosos que, baseados em técnicas teatrais, estimulam a sociabilidade e novas formas de interação.

Após cada exercício os participantes fazem uso da comunicação verbal, mas de forma peculiar. Sentados em círculo, cada pessoa relata as sensações que teve, as barreiras que percebeu em si e nas outras pessoas, que tipo de prazer sentiu ou que tipo de medo e dificuldade surgiu. A forma de relatar a experiência deve seguir as teorias e métodos da Gestalt Terapia, que priorizam uma abordagem objetiva e prática, procurando reconhecer (como aconteceu) ao invés de interpretar (por que aconteceu).

Com base nos estudos da percepção humana, o Dr. Frederick Perls, precursor da Gestalt Terapia, sustentou o significado fundamental de viver perceptivamente alerta ao momento presente. Perls acreditava que a percepção não mediada através dos sentidos permite o mecanismo espontâneo e natural de auto-regulação. A abstração racional impede que essa espontaneidade ocorra e crie outros mecanismos que são a alienação e a autocensura pela aceitação de valores e julgamentos externos (vindos da família, da sociedade etc.), que se estabelecem no consciente e no inconsciente.

A Gestalt Terapia determina a forma prática como acontece a terapia anarquista de Roberto Freire. A somaterapia não é clínica nem confessional. Não trata de traumas do passado, mas trata de suas manifestações no presente, por meio das situações vivenciadas durante os exercícios e o cotidiano. Freire entende que um dos muitos problemas que as pessoas têm está relacionado à incapacidade de definir o que querem e gostam. Ele acredita que a autorregulação espontânea é alcançada pela busca do prazer e pela descoberta da originalidade única de cada pessoa.

Como a neurose nasce nas relações sociais, a terapia de grupo é mais eficiente porque cria um laboratório microssocial no qual podem acontecer diversas relações. Na Somaterapia, são as dinâmicas autogestionadas e não hierárquicas que efetivamente fazem a terapia acontecer, tanto no nível pessoal (autoconsciência) quanto no social (novas estratégias de convivência), na medida em que estabelece um estado de colaboração, cooperação e cumplicidade entre os membros do grupo.

Além disso, somente em grupo é possível lidar com as formas danosas de comunicação trazidas à luz pela Antipsiquiatria. A somaterapia não funciona com esquizofrênicos ou pessoas em estados avançados de desequilíbrio emocional, mas usa os estudos de Gregory Bateson, David Cooper e Ronald D. Laing que têm usos profiláticos para a neurose.

A antipsiquiatria vale-se dos estudos em pragmática da comunicação humana, que comprovam que formas paradoxais de comunicação em um contexto de fortes laços emocionais e afetivos podem levar a profundos distúrbios psicológicos na personalidade. A somaterapia permite perceber como sua personalidade é moldada pelas comunicações paradoxais usadas contra ele por sua família quando criança, além de ser capaz de perceber quando isso acontece no presente. Possibilita a criação de estratégias para se defender de chantagens emocionais e ensina a importância de escolher formas sinceras e diretas de se comunicar e provar a utilidade da metacomunicação (comunicação sobre a situação em que a interação ocorre).

Um dos últimos elementos que Roberto Freire acrescentou à sua técnica foi a Capoeira Angola. Ao contrário de outros estilos de capoeira que se espalham por todo o mundo, a Capoeira Angola é uma forma de arte afro-brasileira que combina música, dança e luta – é um teatro e um jogo lúdico. Tem sua origem em rituais e danças tribais africanas. No Brasil, foram introduzidos aspectos das artes marciais, para que os negros pudessem se preparar para lutar contra seus opressores: os senhores de escravos e o império português (e mais tarde brasileiro). Freire encontrou na Capoeira Angola um excelente exercício bioenergético, que possibilita a consciência corporal, ensina a manter todos os sentidos alertas e desperta a capacidade de enfrentamento, tão necessária na luta para se defender da repressão e afirmar uma personalidade livre.

Com sua perspectiva anarquista, a Somaterapia traz para a psicoterapia o conceito de que a neurose é um desvio do comportamento humano natural e ecológico. A psicologia tradicional manifesta em sua práxis a tentativa de se adequar às regras sociais vigentes. A somaterapia ajuda o indivíduo a recuperar sua capacidade de satisfazer suas necessidades e desejos, defendendo-se e lutando contra uma sociedade psicótica que lhe nega a liberdade de exercer sua própria originalidade única.

Para Roberto Freire, o ser humano deve ser entendido em sua unicidade: o indivíduo é a unidade indivisível e não hierárquica de seu corpo, mente, emoções, memórias, expectativas, desejos, cultura, comportamentos sociais e ações que realiza a cada momento . Nas sociedades ocidentais, os aspectos da vida são fragmentados. Freire criou a Somaterapia com o objetivo de lutar pela totalidade do ser, pela unidade que permite o princípio natural da autorregulação espontânea. Ele concebeu sua técnica para revolucionários, desafiantes do status quo e qualquer um que se sinta libertário, como uma ferramenta na luta por uma vida dirigida pela alegria, beleza e prazer.

Atuando no plano da ecologia subjetiva, que é entendida como viver de acordo com os impulsos biológicos, a Somaterapia mostra um caminho diferente na luta contra o patriarcado. Ajudar a libertar um indivíduo das barreiras que o impedem de sua própria autodeterminação e liberdade é coerente com a ideia de não pretender construir um novo mundo, mas dar às pessoas a oportunidade de criarem esse novo mundo por si mesmas.

Mudanças radicais de comportamento que possibilitam a experiência do prazer e do amor são a reconciliação com a nossa própria natureza, e isso é um passo para a utopia de uma sociedade que não seja prejudicial aos indivíduos e ao seu meio ambiente. “A sociedade civilizada corre o risco de se desintegrar pela hostilidade primária dos homens uns contra os outros”, disse Wilhelm Reich. “Somente a liberação da capacidade natural de amar nos seres humanos pode dominar sua destrutividade sádica.”

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