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Alquimia

Um Alquimista no Café Procope

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Foi em março de 1953 que encontrei pela primeira vez um alquimista. Isso passou-se no café Procope, que teve, na época, um curto período de vida. Foi um grande poeta que, na altura em que eu escrevia o meu livro sôbre Gurdjieff, me preparou êsse encontro e depois disso, eu muitas vêzes havia de tornar a ver esse homem singular, sem no entanto desvendar os seus segredos.

Eu tinha, a respeito da alquimia e dos alquimistas, idéias primárias, extraídas da imaginação popular, e estava longe de supor que ainda havia alquimistas. O homem que estava sentado na minha frente, na mesa de Voltaire, era jovem e elegante. Fizera profundos estudos clássicos, seguidos de estudos de química. Atualmente ganhava a vida no comércio e dava-se com muitos artistas assim como com algumas pessoas da alta sociedade.

Não tenho diário, mas acontece-me, em determinadas ocasiões importantes, anotar as minhas impressões ou os meus sentimentos. Nessa noite, ao regressar a casa, escrevi:

Que idade terá êle? Diz ter trinta e cinco. Isso espanta-me. A cabeleira branca, ondulada, cortada sôbre o crânio como uma peruca. Inúmeras e profundas rugas numa carne rosada, num rosto cheio. Poucos gestos e lentos, medidos, hábeis. Um sorriso calmo e sutil. Olhos risonhos, mas que riem com indiferença. Tudo exprime sua idade. Nas suas frases nem a menor fenda, pausa, ou quebra de presença de espírito. Há qualquer coisa de esfinge atrás daquele rosto amável fora do tempo. Incompreensível. E não sou só eu a sentir isto. A. B. ( André Breton /rsm) . , que o vê quase todos os dias há várias semanas, diz-me que jamais, nem por um segundo, o apanhou em falta de “objetividade superior”.

O que o faz condenar Gurdjieff:

— Quem sente a necessidade de ensinar não vive inteiramente a sua doutrina e não atingiu o ponto culminante da iniciação.
— Na escola de Gurdjieff não existe intercessão material entre o aluno a quem se persuadiu da sua inutilidade e a energia que êle deve possuir para passar a ser real. Essa energia — “essa vontade da vontade”, diz Gurdjieff — deve o aluno encontrá-lo em si próprio apenas em si próprio. Ora, tal conduta é parcialmente falsa e só pode conduzir ao desespêro. Essa energia existe fora do homem, e é preciso captá-la. O católico engole a hóstia: captação ritual dessa energia. Mas se não tiverem fé? Se não têm fé, arranjem uma fogueira : é o princípio de tôda a alquimia. Uma autêntica fogueira. Uma fogueira material. Tudo começa, tudo acontece pelo contato com a matéria.
— Gurdjieff não vivia só, mas sempre rodeado, sempre em falanstério. “Há um caminho na solidão, há regatos no deserto.” Não há caminho nem regatos no homem misturado com os outros.
Faço perguntas a respeito da alquimia que devem parecer-lhe de uma assustadora estupidez. Sem o deixar transparecer, responde:

Nada além da matéria, apenas o contato com a matéria, o trabalho sôbre a matéria, o trabalho com as mãos. Insiste muito neste ponto:

— Gosta de jardinagem? Eis um belo comêço, a alquimia é parecida com a jardinagem.

— Gosta de pesca? A alquimia tem qualquer coisa de comum com a pesca. Trabalho de mulher e brincadeira de criança. Não é possível ensinar alquimia. Tôdas as grandes obras literárias que resistiram aos séculos têm qualquer coisa dêsse ensinamento. São a obra de homens adultos — verdadeiramente adultos — que falaram para as crianças, mas respeitando as leis do conhecimento adulto. Jamais se apanha uma grande obra em falta a respeito dos “princípios”. Mas o conhecimento dêsses princípios e o caminho que leva a esse conhecimento devem manter-se secretos. No entanto, há um dever de auxílio mútuo para os investigadores do primeiro grau.

Cêrca de meia-noite interrogo-o sôbre Fulcanelli( O autor de Le Mystère des Cathédrales e de Les Demeures philosophales. )e dá-me a entender que Fulcanelli não morreu :

— Pode viver-se, diz-me, infinitamente mais tempo do que o homem não esclarecido o supõe. E pode mudar-se totalmente de aspecto. Eu o sei. Os meus olhos sabem-no. Eu sei também que a pedra filosofal é uma realidade. Mas trata-se de outro estado da matéria, diferente daquele que conhecemos. Esse estado permite, como todos os outros estados, mensurações. Os processos de trabalho e de mensuração são simples e não exigem aparelhos complicados: trabalho de mulher e brincadeira de criança…

Acrescenta :

— Paciência, esperança, trabalho. E, seja qual fôr o trabalho nunca se trabalha o bastante. Esperança: em alquimia, a esperança baseia-se na certeza de que há um objetivo. Não teria começado, disse êle, se não me tivessem provado claramente que esse objetivo existe e que é possível atingi-lo nesta vida

Tal foi o meu primeiro contato com a alquimia. Se a tivesse abordado por meio da magia, creio que as minhas investigações não teriam ido longe : falta de tempo, falta de gôsto pela erudição literária. Falta de vocação também : essa vocação que se apossa do alquimista quando êle ainda se ignora como tal, no momento em que abre, pela primeira vez um velho tratado. A minha vocação não é a de executar, mas a de compreender. Não é realizar, mas ver. Creio, como diz o meu velho amigo André Billy, que “compreender é tão belo como cantar”, mesmo se a compreensão fôr apenas fugitiva ( No seu cárcere de Reading, Oscar Wilde descobre que a falta de atenção do espírito é o crime fundamental, que a atenção extrema desvenda o acôrdo perfeito entre todos os acontecimentos de uma vida, e também, possivelmente, num plano mais vasto, o acôrdo perfeito entre todos os elementos e todos os movimentos da Criação, a harmonia de tôdas as coisas. E exclama: “Tudo o que é compreendido está certo”. É a mais bela frase que conheço.).

Sou um homem apressado como a maior parte dos meus contemporâneos. Tive o contato mais moderno possível com a alquimia: uma conversa num botequim de Saint-Germain-des-Prés. Em seguida, quando pretendia dar um sentido mais completo ao que me dissera aquêle jovem, encontrei Jacques Bergier que não saía coberto de pó de um sótão cheio de velhos livros, mas de locais onde a vida do século se concentrou: laboratórios e escritórios de informações. Também Bergier procurava qualquer coisa no caminho da alquimia. Não era para fazer uma peregrinação ao passado. Esse homem extraordinário, completamente ocupado com os segredos da energia atômica, tomara aquêle caminho para abreviar.

Eu voava, agarrado às abas do seu casaco, por entre os textos veneráveis concebidos por gente sensata apaixonada pela lentidão, inebriada de paciência — eu voava a uma velocidade supersônica. Bergier gozava da confiança de alguns dos homens que, ainda hoje, se dedicam à alquimia, bem como da estima dos cientistas modernos. Junto dele, em breve adquiri a certeza de que existem íntimos pontos de contato entre a alquimia tradicional e a ciência de vanguarda. Vi a inteligência lançar uma ponte entre dois mundos. Meti-me por essa ponte e verifiquei que ela se agüentava. Senti uma grande felicidade, uma calma profunda. Há muito refugiado no pensamento antiprogressista hinduísta, gurdjieffiano, vendo o mundo de hoje como um princípio de Apocalipse, esperando apenas (e com grande desespero) um horroroso final dos tempos e não muito seguro no orgulho de estar à parte, eis que me era dado ver o velho passado e o futuro darem-se as mãos. A metafísica da alquimia. várias vêzes milenária, escondia uma técnica finalmente compreensível, ou quase, no século vinte. As pavorosas técnicas de hoje abriam-se sôbre uma metafísica quase semelhante à dos tempos antigos. Que falsa poesia havia no meu refúgio ! A imortal alma dos homens luzia com a mesma chama de cada lado da ponte.

Acabei por acreditar que os homens, num passado muito longínquo tinham descoberto os segredos da energia e da matéria. Não sòmente por meditação, mas por manipulação. Não apenas espiritualmente, mas tecnicamente. O espírito moderno. servindo-se de vias diferentes, pelos caminhos durante muito tempo desagradáveis a meus olhos, da razão pura, irreligosidade, com processos diferentes e que durante muito tempo me tinham parecido maus, preparava-se por sua vez para descobrir os mesmos segredos. Interrogava-se a êsse respeito, entusiasmava-se e inquietava-se simultâneamente. Tropeçava no essencial, exatamente como o espírito de elevada tradição.

Vi então que a oposição entre a “prudência” milenária e a “loucura” contemporânea era uma invenção da inteligência demasiado fraca e demasiado lenta, um produto de compensação para o intelectual incapaz de tanta velocidade quanto a sua época exige.

Há várias maneiras de ter acesso ao conhecimento essencial. E o nosso tempo tem algumas. As antigas civilizações tiveram as suas. Não falo apenas de conhecimento teórico.

Vi finalmente que, sendo as técnicas atuais mais poderosas, aparentemente, do que ás técnicas de outrora, êsse conhecimento essencial, que os alquimistas provàvelmente já possuíam (e outros cientistas antes dêles), chegaria até nós com maior fôrçá ainda, maior pêso, maiores perigos e maior número de exigências. Atingimos o mesmo ponto que os Antigos, mas a uma altura diferente. Em lugar de condenar o espírito moderno em nome da sabedoria iniciática dos Antigos, ou em lugar de negar essa sabedoria declarando que o conhecimento real começa com a nossa própria civilização, seria conveniente admirar e venerar o poder do espírito que, sob diferentes aspectos, torna a passar pelo mesmo ponto de luz, elevando-se em espiral. Em vez de condenar, repudiar, escolher, seria conveniente amar. O amor é tudo : a um tempo repouso e movimento.

Vamos submeter à vossa apreciação os resultados das nossas investigações sôbre a alquimia. Trata-se apenas, evidentemente, de esboços. Ser-nos-íam necessários dez ou vinte anos, e talvez faculdades que não possuímos, para dar ao assunto uma contribuição realmente positiva. No entanto, aquilo que fizemos, e a maneira como o fizemos, torna o nosso trabalho muito diferente das obras até aqui consagradas à alquimia. Encontrar-se-ão poucos esclarecimentos sôbre a história e a filosofia desta ciência tradicional, mas algumas explicações sôbre as inesperadas relações entre os sonhos dos velhos “filósofos químicos” e as realidades da física atual. É preferível revelarmos imediatamente as idéias que nos guiaram.

A alquimia, segundo a nossa opinião, poderia ser um dos mais importantes resíduos de uma ciência, de uma técnica e de uma filosofia pertencentes a uma civilização desaparecida. Aquilo que descobrimos na alquimia, à luz do saber contemporâneo, não é de molde a fazer-nos acreditar que uma técnica tão sutil, complicada e precisa possa ter sido o resultado de uma “revelação divina” caída do céu. Não quer dizer que desprezemos tôda a idéia de revelação. Mas, ao estudarmos os santos e os grandes místicos, jamais pudemos chegar à conclusão de que Deus fala aos homens em linguagem técnica: “Coloca o teu crisol sob a luz polarizada, ó meu Filho! Lava as escórias com água tridestilada !”

Também não acreditamos que a técnica alquimista se possa ter desenvolvido por meio de tentativas, pequenos passatempos de ignorantes, fantasias de maníacos do crisol, até atingir aquilo a que temos de chamar a desintegração atômica. Estaríamos, antes, tentados a acreditar que existem na alquimia restos de uma ciência desaparecida, difíceis de compreender e de utilizar, por faltar o contexto. A partir dêsses restos há inevitàvelmente tentativas, mas em direção determinada. Há também uma superabundância de interpretações técnicas, morais e religiosas. E há por fim, para os detentores dêsses restos, a imperiosa necessidade de guardar segrêdo.

Somos levados a crer que a nossa civilização, ao atingir uma sabedoria que talvez tenha pertencido a uma civilização anterior, em condições diferentes, noutro estado de espírito, talvez tivesse o maior interêsse em interrogar com seriedade a Antiguidade para tornar mais rápida a sua própria progressão.

Finalmente pensamos o seguinte : o alquimista no fim do seu “trabalho” sôbre a matéria vê, segundo a lenda, operar-se em si mesmo uma espécie de transmutação. Aquilo que se passa no seu crisol passa-se igualmente na sua consciência ou na sua alma. Há uma mudança de estado. Todos os textos tradicionais insistem nesse ponto, evocam o momento em que a “Grande Obra” se realiza e em que o alquimista se transforma num “homem desperto”. Parece-nos que êsses velhos textos descrevem dêste modo o têrmo de todo o conhecimento real das leis da matéria e da energia, incluindo o conhecimento técnico.

É para a posse de tal conhecimento que se precipita a nossa civilização. Não nos parece absurdo supor que os homens serão chamados, num futuro relativamente próximo, a “mudar de estado”, como o alquimista lendário, a sofrer qualquer transmutação. A menos que a nossa civilização desapareça por inteiro um momento antes de ter atingido o fim, como é possível que tenham desaparecido outras civilizações. Também se podia dar o caso de que, no nosso último segundo de lucidez, não desesperássemos, pensando que se a aventura do espírito se- repete, é sempre, de cada vez, num grau mais alto da espiral. Remeteríamos a outros milenários o cuidado de conduzir essa aventura até ao ponto final, até ao centro imóvel, e afundar-nos-íamos com esperança.

Extraido do livro O Despertar dos Mágicos de L.Pauwels e J.Bergier – Difusão Européia do Livro – 1959

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