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Cultos Afro-americanos

As entidades brasileiras da Umbanda e as faces inconfessas do Brasil

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Sulivan Charles Barros

Quem já teve a oportunidade de assistir a uma “gira” de um terreiro umbandista pode perceber, no ritual e no ambiente, a presença de elementos de várias religiões. No altar principal, chamado de “congá”, encontram-se imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora, santos como São Lázaro, São Jorge, Cosme e Damião, Orixás, ao lado de estatuetas de Buda, Iemanjá, índios, ciganos, pretos-velhos e, mais dissimuladas, representações que sugerem a figura do diabo (representando os exus e as pombas-giras). Encontram-se, também, nestes “congas”, objetos próprios do rito umbandista (“pembas”, “guias”, “patuás”, etc.), bem como, velas brancas, flores e por vezes ícones cívicos, como a bandeira nacional.

Ali, no espaço sagrado do terreiro, rezam-se padre-nossos, ave-marias e invocam-se os orixás e as “entidades” da umbanda; os espíritos “descem” nos iniciados por meio do transe, provocado pelo toque dos atabaques, cantigas (“pontos cantados”) e sinais cabalísticos desenhados no chão (“pontos riscados”). A sessão começa com a defumação da sala; durante a cerimônia os médiuns, tomados por seus “guias”, dançam, fumam charutos ou cachimbos, dão passes e conversam com o público presente. A cor das roupas é predominantemente branca, mas não faltam colares de todas as cores, chapéus de couro, de palha, dentre outros acessórios rituais.

O culto é composto de músicas e danças sagradas. Os atabaques marcam o ritmo, os médiuns cantam o “ponto” sob a liderança da mãe ou do pai-de-santo, dançam em roda, e recebem as suas “entidades” espirituais, funcionando como seus “cavalos” e “aparelhos”. Além de se expressarem dançando a sua energia vital (segundo a concepção destas comunidades religiosas), como ocorre com os orixás do candomblé, os “guias” da umbanda, ao contrário daqueles, se apresentam para dar conselhos aos fiéis que deles se aproximam. Orientam estes e purificam-os por meio de “passes”, protegendo-os de possíveis ataques místicos de que são ou poderão se tornar vítimas.

O Universo simbólico da umbanda

Na umbanda, as “entidades” situam-se a meio caminho entre a concepção dos deuses africanos do candomblé e os espíritos dos mortos dos kardecistas. O transe na umbanda não é nem estritamente individual (como no kardecismo) nem propriamente representação mítica (como no caso do candomblé), mas atualizações de fragmentos de uma história mais recente por meio de personagens tais como foram conservados na memória popular brasileira. Sua língua ritual é o português falado no Brasil.

Suas “entidades” espirituais cultuadas são espíritos de mortos que constituem categorias mais genéricas, onde a referência à vida pessoal é substituída por um estereótipo. (Vale ressaltar que nas “giras” de umbanda também se homenageiam os orixás do candomblé.) Isto é, não é a evocação deste ou daquele indivíduo em particular, mas a representação de modelos sociais expressos em seus “cavalos” que realizam a passagem destas “entidades” de seu mundo sagrado para o mundo profano dos homens.

Para muitos, o grande trunfo desta religião estaria no fato de que, por meio do seu universo mágico/religioso, expressaria uma inversão simbólica no que diz respeito às relações de poder. Tal como exposto por Maggie:

“Esses modelos sociais expressos nos exus, pretos-velhos, pombas-giras e caboclos, figuras desprestigiadas pela sociedade mais ampla transformam-se, no ritual, não só em figuras de prestígio, mas em deuses, e entre eles os que mais atuam. Ou seja, o inverso do que seriam na vida cotidiana, não sagrada” (MAGGIE, Yvonne. (2001), Guerra de orixá: um estudo do ritual e do conflito. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, p. 118.).

Esse “mecanismo de inversão simbólica”, onde figuras desprestigiadas pela sociedade mais ampla (ex-escravos, índios, crianças, marginais, prostitutas, estrangeiros)

passam à categoria de deuses, poderosos e atuantes, onde o homem “branco” – “imagem ideal colocada no topo da ordem evolutiva, não tem os poderes que possuem seus subalternos” (BIRMAN, Patrícia. O que é umbanda. São Paulo, Brasiliense, 1985, p.46.). Eis, portanto, a dependência destes em relação aos seus “deuses” na resolução de problemas quer sejam de ordem financeira, de saúde, sexual ou amorosa.

Transe e Possessão na Umbanda

Apesar dos distanciamentos teóricos e metodológicos que possam existir entre os estudiosos da umbanda, um elemento se torna denominador comum entre eles para expressar as especificidades desta religião: é na possessão que todo o edifício umbandista adquire sentido.

É por meio do fenômeno da possessão que as “entidades” espirituais desta religião se manifestam perante os homens; é a instância ritual que permite que seu “trabalho” seja feito, que as divindades colaborem com as necessidades humanas e que sejam recompensados por isto.

O fato de a possessão desempenhar um papel tão relevante no imaginário umbandista não implica, no entanto, que este seja um acontecimento extraordinário. Ao contrário, é um ato rotineiro e até banal desde que seja realizado na atmosfera permissiva e incentivadora da livre expressão das “giras”.

A possessão deve começar e terminar em hora fixa, se desenvolvendo segundo um cenário dado. A cada sessão em que o indivíduo for “possuído”, estará sob os cuidados e orientação do chefe espiritual do ritual. Inicialmente os transes serão intensos, desordenados e agitados. Com o tempo os transes de possessão ficarão mais controlados e o indivíduo, agora denominado de “cavalo”, passa a ter relativo controle sobre ele, fazendo os seus transes somente nos terreiros, em locais apropriados e nas ocasiões solenes do culto.

Existem as sessões de desenvolvimento em que os médiuns aprendem gradativamente a “domesticar” seu estado de possessão pelos espíritos, controlando o transe desordenado do início das primeiras manifestações e adquirindo de forma gradativa um linguajar e uma postura corporal características de seus “guias”, a fim de que estes cumpram o seu papel.

Os indivíduos agora, alçados à condição de médiuns de incorporação, tornam-se personalidades importantes para a comunidade e são valorizados por esta. De simples indivíduos, eles se tornam médiuns desenvolvidos, “cavalos dos santos” e prestam serviços àquela comunidade. Desensibilizados e controlados, eles voltam suas energias para um significado maior em suas vidas que, segundo a concepção umbandista, seria a de ajudar ao próximo.

Na umbanda o transe não é nem estritamente individual nem propriamente representação mítica, mas a atualização de fragmentos de uma história mais recente por meio de personagens tais como foram conservados no imaginário popular brasileiro: caboclos, pretos-velhos, exus, pombas-giras, malandros, marinheiros, sereias, ciganos, baianos, etc.

Quando “descem” em seus “cavalos”, não são evocação deste ou daquele indivíduo reconhecido pela história de suas vidas passadas, mas a representação de índios brasileiros, escravos africanos, crianças, marginais, alcoólatras, prostitutas, malandros, estrangeiros perseguidos pelas suas crenças e tradições ou ainda daqueles indivíduos desqualificados quer sejam pela sua condição social e/ou pela sua conduta moralmente condenável segundo os valores da sociedade mais ampla. Enfim, todo e qualquer tipo de minoria desassistida pela sociedade brasileira.

Suas manifestações no corpo de seus médiuns são feitas por meio da lembrança inconsciente de alguns traços que permanecem como suas características diferenciadoras: altivez e arrogância dos caboclos; humildade e compaixão dos pretos-velhos; inocência das crianças; revolta e escárnio dos exus; sensualidade desenfreada das pombas-giras; alegria do povo cigano, etc.

Este relativo distanciamento do “real”, por meio do imaginário, dá margem a uma constante recriação e explica as variações que se verificam nos terreiros umbandistas mais populares: enquanto nas outras religiões possam existir uma maior exigência de fidelidade aos modelos (mítico num caso, e pessoal, no outro), na umbanda, apesar do transe e das representações serem também regulados, há uma maior possibilidade de acréscimos e reinterpretações.

A umbanda empresta um sentido particular à esta vivência cotidiana da realidade brasileira. A construção religiosa de si própria e deste cotidiano se faz, contudo, em um universo simbólico, um código de sentido mítico. Conseqüentemente, pode-se considerar a umbanda como negação de campos estanques e a construção articulada da mediação ser humano/matéria/vida/divindades/espírito/morte: enfim, metáforas ritualizadas e dramatizadas da realidade social, econômica, política e cultural do país.

Os “guias” da umbanda

São numerosos os personagens possíveis que transitam pela mitologia e cerimonial umbandista o que permite afirmar que esta religião possui um caráter   de abertura contida nos limites de uma progressão geométrica e por isso mesmo humanamente infinitos.

Esta possibilidade, contudo, tem seus limites estabelecidos por alguns tipos de personagens retirados da realidade nacional: caboclos, pretos-velhos, exus, pombas-giras, crianças, boiadeiros, marinheiros, sereias, ciganos, soldados (“linha” dos oguns), estrangeiros (“linha” dos orientais), os meninos de rua (exus-mirins) e outras categorias que embora não tenham “linhas” específicas se agregam a outras como   é o caso dos judeus e dos homossexuais.

Cada “guia” representa, para o campo e temática de trabalho umbandista, um tipo de virtude que deve ser desenvolvida pelo ser humano a fim de que este possa chegar a graus superiores de evolução espiritual.

Na construção das diferentes representações que as comunidades religiosas umbandistas fazem de suas “entidades”, bem como das relações que se instauram entre fiéis, médiuns e “guias”, percebe-se que estas são construídas mediante uma tradição (no caso específico, religiosa) assumindo a categoria de uma narração de experiência transmitida, herdada e fundando relações entre o passado e o presente simultaneamente, aproximando-se do conceito de alegoria de Benjamin. Aqui estas mesmas “entidades” passam a designar diferentes significados (para as comunidades umbandistas) de uma mesma coisa: apresentam-se como símbolos de virtudes ou de vícios, possibilitando diferentes representações.

Suas associações com uns e com outros são freqüentemente explicadas em termos de suas experiências históricas comuns como povos e personagens subalternos.

É aqui que o imaginário umbandista se alimenta, exatamente no fato de mergulhar tão profundamente na realidade brasileira, de buscar a partir daí sua fonte de inspiração, transformando em símbolos figuras do nosso cotidiano popular que sofreram (e ainda sofrem) as formas mais desprezíveis de preconceito mas que, apesar de tudo, possuem as qualidades e atributos necessários para ajudar aqueles indivíduos que os procuram todos os dias nos terreiros.

Caboclos

Os caboclos são geralmente considerados, pelos umbandistas, como espíritos das primeiras civilizações que viveram durante o Brasil colonial e período escravo e que possuíram uma sociedade totalmente organizada, em que tudo era feito por eles, desde o plantio e colheita dos alimentos até suas moradias. Eles conhecem tudo o que se relaciona com a terra.

Apresentam-se como caçadores, guerreiros e profundos conhecedores da mata. São considerados pelos umbandistas como “entidades” fortes e cheias de vigor físico. Durante a “incorporação” soltam “brados” fortes que funcionam como verdadeiros “códigos” que fazem parte de uma linguagem comum entre eles, que se cumprimentam e se despedem por meio destes sons.

Pretos velhos

Os pretos velhos são as “entidades” mais carismáticas que povoam os terreiros de umbanda, são reconhecidos nacionalmente como espíritos de ex-escravos africanos nos anos de escravatura e, sobretudo, após a abolição.

A mística do preto-velho é fruto de condições e circunstâncias únicas em terras brasileiras. A sofrida vida dos escravos trazidos da África, fazia com que os indivíduos, em função do penoso e extenuante trabalho, somado aos maus tratos a que eram submetidos, vivessem em média sete anos no máximo após a sua chegada ao Brasil.

Os pretos velhos, enquanto representações mais amplas, são marcados pela tolerância, pela rústica simplicidade e, por um profundo sentimento de caridade. Somente aqueles que sofreram na carne as desventuras da vida podem de fato entender ou se aproximar da compreensão do sofrimento alheio. Porque é possível responder a toda violência sofrida com amor, sem nenhum sentimento revanchista ou de vingança.

Crianças

Estes “guias” se apresentam como personagens infantis alegres e brincalhões, sempre denotando infantilidade em suas ações. Costumam usar chupetas, comer bolos, balas, doces e chocolates, bebem bastante refrigerantes, normalmente guaraná e gostam também de tomar água misturada com açúcar.

Por oposição aos adultos, as “entidades” crianças, segundo meus interlocutores, não possuem nem senso de moral nem de responsabilidade. Por isso, fazem “brincadeiras” nem sempre inocentes mas que se explicam pelo fato de que “ainda não cresceram” e que não fazem suas travessuras por maldade.

Exus

Difícil falar de exu sem comentar a controvertida face do mal que se formou no imaginário popular. Não há quem ignore a força e o perigo potencial atribuído na umbanda aos exus. Eles representam, antes de tudo, o “outro lado” da civilização, o lado marginal, caótico e ambíguo, aquele que deve ser eliminado, esquecido.

Eles são vistos como perigosos e maus, são os representantes em potencial da “esquerda”. Outros, entretanto, demonstram que os exus devem ser vistos como   a “polícia de choque” da umbanda, isto é, são eles os responsáveis por “cobrar o que tem que ser cobrado”, não havendo nenhuma ligação dos exus com a figura do demônio.

Os exus também são vistos como a própria representação daqueles que já padeceram dos mesmos sofrimentos pelos quais os homens comuns padecem. Talvez daí venha a sua grande “força” e popularidade. Estas entidades estão mais próximas do homem, são “entidades” mais “humanas”, neste sentido. Contudo, esta proximidade maior para com as fraquezas humanas é o que os colocam numa situação de espíritos “inferiores” que devem ser submetidos, antes de tudo, a doutrinação.

Na versão dos exus prevalece a imagem do subalterno bárbaro, demônio e sanguinário. Aqueles que não são confiáveis e, portanto, devem ser evitados.

Pombas-giras

As pombas-giras são vistas pelos umbandistas como a “mulher de Exu” ou “Exu fêmea”. Elas se referem, antes de tudo, segundo os umbandistas, aos espíritos de prostitutas, cortesãs, cafetinas, mulheres sem família e sem “honra”. Além de possuirem as mesmas características que seus “parceiros”, estas “entidades” carregam consigo toda a ambigüidade dos exus aliada a uma imagem feminina fortemente sexualizada.

As pombas-giras carregam consigo toda a idéia de ambigüidade. Elas parecem representar, no contexto umbandista, uma imagem invertida da concepção que situa o espaço doméstico como o espaço feminino por excelência e onde os recursos femininos estão definidos complementarmente aos personagens masculinos. As pombas-giras, ao contrário, são percebidas como uma ameaça a esse espaço doméstico e às relações aí legitimadas. A sua sexualidade, por exemplo, não está a serviço da reprodução. Ela usa a sua sexualidade em benefício próprio. Os poderes e perigos de sua imagem estão certamente associados a essa liminaridade. Em outras palavras, a imagem da pomba-gira seria a contraface de uma outra: aquela da mulher associada à casa, a família, as esferas mais controladas socialmente.

Malandros

Chefiados pela “entidade” Seu Zé Pelintra, os malandros costumam “descer” nos terreiros de umbanda nas “giras” de exu e são geralmente confundidos com estes. Alguns terreiros afirmam que os malandros são um tipo de exu. Outros, entretanto, dizem que os “malandros” não devem ser confundidos com estes, vistos que eles possuem características que lhe são próprias.

Estas “entidades” quando manifestadas nos corpos de seus médiuns, possuem as características típicas do malandro brasileiro, aqueles que viveram em início do século XX, nos bairros pobres e nas favelas. São considerados, no imaginário umbandista, com gigolôs, amantes da noite, das mulheres, da bebida, dos vícios, dos jogos, do samba e também das brigas.

Os malandros são comumente vinculados à idéia de vadiagem e se referem aos tipos sociais que se entregaram ao ócio, voltando às costas para o trabalho: “sempre descansando”, “perambulando na rua”, “não querendo procurar o que fazer”. Por outro lado, são também vistos como sujeitos espertos, “descolados”, que conseguem se sair bem em qualquer situação.

Boiadeiros

Os boiadeiros representam “entidades” que se apresentam como trabalhadores da zona rural: vaqueiros, laçadores, peões de boiada, posseiros, capatazes, cangaceiros e violeiros. São também conhecidos como “caboclos sertanejos” ou “caboclos de couro”.

São considerados os autênticos mestiços brasileiros, sendo a síntese de toda a mistura de raças, da miscigenação deste povo, com seus costumes, supertições, crendices e fé. Para os umbandistas, o “guia” boiadeiro simboliza a natureza empreendedora dos homens, mas também sua simplicidade, persistência e determinação, mostrando o jeito de ser e a história do típico homem do sertão.

Marinheiros

Os marinheiros ou marujos representam os homens do mar: aqueles personagens que dia após dia, se aventuram sobre o mais perigoso e profundo dos abismos, o fundo do mar. Segundo os umbandistas, estes “guias” se encarregam de “descarregos”, consultas, passes, no desenvolvimento dos médiuns e em outros “trabalhos” que possam envolver “demandas”. Em muito, seu “trabalho” é parecido com o dos exus, os quais, também podem “trabalhar nesta “linha”.

Eles têm a fama de serem alcoólatras, mulherengos e machistas. Geralmente nas “giras”, os marinheiros se dirigem às mulheres com galanteios pouco sutis. Não obstante a fama de alcoólatras e mulherengos, eles são considerados pelo povo da umbanda como bons “mensageiros”. Geralmente quando “descem” nos terreiros, falam em união, amor, fé e equilíbrio.

Sereias

As sereias representam para os umbandistas, os espíritos envoltos em mistérios, raramente falam e apenas emitem cantos tristes. São seres mitológicos, fantásticos, metades mulheres, metades peixes. Há histórias de sereias em todos os mares.

Na umbanda, as “entidades” sereias, aparecem como criações do inconsciente, nas quais se esboçam as pulsões obscuras e primitivas do indivíduo. De certa forma, elas lembram uma espécie de “viagem inconsciente”, o pensamento de uma última viagem, e no contexto brasileiro, aquela que deu origem à formação do Brasil.

Na busca de novas terras, domínios e territórios, o mar sempre foi o grande enigma a ser decifrado. Não era raro, nos relatos dos grandes navegadores, a presença de sereias que em princípio representavam os perigos da navegação marítima, do desconhecido e da própria morte. Tal fato, não deve ter sido uma exceção para os navegadores que vieram a “descobrir” o Brasil.

As sereias se colocam entre o lado doce e maternal da mãe e o lado terrível da mulher devoradora, ou seja, são a expressão em seu aspecto mais doloroso, dos perigos de uma sedução que leva à auto-destruição, devendo manter sob controle visto que seu corpo anormal não pode satisfazer os anseios que seu canto e beleza de sua face e de seu busto despertam.

Cigano(a)s

Os ciganos da umbanda representam o povo andarilho, que vivia em grupos e, não tinha destino nem caminho certo. São caracterizados na umbanda como sendo espíritos livres, alegres, festeiros, gostam de danças, músicas e de receberem presentes. Suas origens são as mais diversas: Índia, Espanha, Portugal, Hungria, Marrocos, etc.

Os ciganos são espíritos poucos chamados nos terreiros. Sua presença é mais marcante fora das “giras” onde “trabalham”, principalmente, na área da cartomancia, quiromancia, astrologia, runas e outras artes divinatórias.

As ciganas aparecem mais do que os ciganos. Estas “entidades” quando “incorporadas” vestem-se com saias rodadas, lenços coloridos, com muitas pulseiras, colares, utilizando pandeiros enfeitados com fitas e castanholas. Os ciganos, por sua vez, se apresentam também com roupas coloridas, argolas na orelha e punhais na cintura, comunicam-se em “portunhol”, intercalando palavras em português e em suposto espanhol.

Geralmente são confundidos com os exus e pombas-giras e como estes, os ciganos podem tanto fazer o bem, quanto fazer o mal. Geralmente os ciganos sofrem os mesmos preconceitos que são dirigidos aos exus e as pombas-giras.Para outros, entretanto, os ciganos são vistos como pré-concebidos freqüentemente como vadios, ladrões, desordeiros.

Os ciganos agregam a categoria tipo da marginalização histórica: andarilhos, nômades, estrangeiros, estranhos, hereges, errantes, malditos, embusteiros, ociosos, bárbaros… e paradoxalmente são também vistos como bons músicos, dançarinos, bons amantes, mestres das artes da adivinhação, alegres e, principalmente, senhores da própria liberdade…

Baiano(a)s

Os baianos da umbanda são espíritos ligados ao Nordeste do país, que viveram ou passaram parte de sua vida em Estados dessa região. Segundo os umbandistas, a maior parte dos baianos em vida, foram nordestinos pobres, brigões, alguns cangaceiros, outros pais e mães-de-santo, macumbeiros, mestres do catimbó e da pajelança.

No imaginário umbandista, o baiano representa o povo nordestino, aquele que imigrou para as grandes metrópoles brasileiras a procura de melhores condições de vida. Refere-se também ao tipo social “inferior” e “atrasado” e, por isso, objeto de preconceito e ridicularização, mas também de admiração, pois igualmente representa aquele que resiste bravamente diante das adversidades.

São nos terreiros de umbanda paulistanos que os baianos da umbanda conseguiram alcançar maior popularidade. Souza, A. (2001) ao estudar o crescimento do culto dos baianos na umbanda paulista faz referência as próprias mudanças sociais ocorridas em São Paulo nas décadas de 50 e 60 do século passado. Ao mesmo tempo em que a umbanda se firmava neste período histórico no Estado, via-se crescer o fluxo migratório do Nordeste.

Oguns

Ogum é um dos orixás mais populares do Brasil. É conhecido pelas comunidades de umbanda e de candomblé como o deus da guerra, vencedor de “demandas”, do embate físico, das disputas materiais e espirituais, do aço, do ferro, do fogo, da espada e das armas bélicas. Nos terreiros de umbanda, a “linha” de Ogum retrata os soldados romanos, de armadura, capacete e capa vermelha ( a proteção necessária, segundo meus interlocutores, para atuar em ambientes considerados inferiores), também podendo ser africanos e brasileiros. São considerados, sobretudo, como “entidades” sérias e enérgicas.

O povo do oriente

O Povo do Oriente representa para os umbandistas espíritos que tiveram vida corpórea nas regiões orientais do globo terrestre. São considerados, segundo meus interlocutores, como espíritos de elevado senso espiritual e moral e, na maioria das vezes, se apresentam nos terreiros sob a roupagem dos pretos-velhos, caboclos ou até mesmo crianças. Outros ainda “descem” na “linha” de médicos ou mestres de cura.

A posição da “linha” do oriente é determinada, essencialmente, no imaginário umbandista, pelo fato de não terem pertencido a ele desde o começo e, principalmente, por terem introduzido qualidades que não se originaram nem poderiam se originar no próprio grupo.

Outros personagens foram incluídos no panteão da umbanda porque se sabe que eram perseguidos, no caso dos judeus. Outros porque foram (e são) considerados como delinqüentes, como é o caso dos meninos de rua e outros ainda porque se constituem as principais vítimas do preconceito e da discriminação dentro da sociedade, como é o caso dos homossexuais.

Dentre estes personagens, somente os meninos de rua possuem uma categoria que lhes é própria a dos “exus-mirins”. Judeus e homossexuais não possuem categorias próprias, sendo mais uma “característica” pessoal da “entidade”, do que da “linha” da qual eles possam fazer parte. É possível encontrar: “caboclos judeus”, “exus judeus”, “marinheiros judeus”, “exus homossexuais”, “pombas-giras lésbicas”, “ciganos homossexuais”, etc.

Judeus

Em visita a terreiros de Mina no Maranhão, encontrei referências a presença de caboclos judeus, como é o caso da “entidade” Jaguarema, um dos filhos do Rei da Turquia mais resistentes ao cristianismo.

Seu Jaguarema, como é mais conhecido nos terreiros maranhenses, é visto como um dos turcos mais avessos ao cristianismo e como judeu. É descrito como forte, valente e, às vezes, duro, violento, “meio doido” e cruel. Outros afirmam que Jaguarema é dos turcos mais travessos, mais populares e mais queridos do Tambor de Mina pois, além de ser um grande protetor, é também visto como um grande amigo. Acredita-se que ele “nasceu” (enquanto “entidade” espiritual) em Codó, nos terreiros de terecô daquela cidade.

No mundo de pombas-giras e exus, pode-se constatar também a presença daqueles que se intitulam enquanto “polacos” e “judeus”. No Brasil, a expressão “polaco” na linguagem popular apresenta um estereótipo negativo que caracteriza também as ligações raciais socialmente definidas, tanto do imigrante da primeira como das outras gerações. No imaginário umbandista, a expressão “polaco” denota o indivíduo proveniente da Polônia que teria como religião o judaísmo. Acredita-se que algumas das “entidades” pombas-giras que “trabalham” nos terreiros de umbanda teriam sido em vida “polacas” e “judias”. Muitas delas vieram para o Brasil com propostas de casamento e aqui se tornaram prostitutas. Ao morrerem, aquelas que viveram no baixo meretrício transformaram-se em deusas, passando a serem cultuadas em terreiros desta religião.

Meninos de rua (exus-mirins)

Os exus-mirins são considerados, pelos umbandistas, espíritos infantis que fazem parte da “linha” dos exus. Em todos os relatos colhidos, tais “entidades” são vistas como crianças perversas, delinqüentes e más e que, por isso, apesar da pouca idade deles, são considerados exus crianças.

Acredita-se que estes espíritos infantis conviveram nas ruas, afastaram-se das relações familiares já em idade tenra e foram expostos às mais perversas formas de discriminação social, além dos riscos de violência das grandes cidades.

Geralmente referem-se a espíritos de crianças que viveram nas ruase que carregam dentro de si a mágoa contra uma sociedade que os colocou nesta condição. Apesar de serem espíritos infantis, são considerados espíritos de muita força.

Homossexuais

Na sociedade mais ampla, os homossexuais constituem a única “minoria” que se faz presente em todas as demais “minorias” sociais. São tão fortes o preconceito, a opressão e a discriminação contra este grupo, que a quase totalidade de gays e lésbicas, segundo Mott, introjetaram a homofobia dominante como parte de suas próprias ideologias, tornando-se homossexuais egodistônicos, “não-assumidos”.

Interessante notar que na umbanda não existe nenhuma categoria específica que irá abarcar estes personagens discriminados, vítimas dos preconceitos e tal como na sociedade mais ampla, torna-se possível ver a presença de “entidades” espirituais que tenham este tipo de identidade integrando as mais variadas “linhas” da umbanda.

Não dispondo de nenhuma “linha” espiritual específica, os homossexuais, segundo a fala do Exu M., se encontram principalmente sob a roupagem dos exus e pombas-giras, embora existam outros que façam parte também de outras “linhas” como a de ciganos, baianos, marinheiros, etc.

Percebe-se que aqui, em termos desta religião, tal como na sociedade mais ampla,as próprias “entidades” que possuem a homossexualidade como um símbolo de sua identidade, tratam-nas como coisa íntima, de foro pessoal, tal como os indivíduos reais da sociedade mais ampla.

Mesmo havendo “entidades” que se definem como homossexuais, não como categoria positiva, mas como condição de identidade, a homossexualidade é ainda um tema bastante “delicado” e sujeito aos mais diversos tipos de preconceitos, inclusive a sua própria condenação. Isto acaba por perpetuar, para muitos indivíduos, a vergonha de sua própria história de vida, preferindo a condição de “silêncio”.

Considerações finais

Caracterizados como possuidores de atitudes, hábitos e modalidades de comportamento estabelecidas conforme as diferentes origens geográficas e sociais e do pertencimento a categorias sociais marginalizadas, as entidades “brasileiras” da umbanda, enquanto representações coletivas, constituem fatores sociais projetados e vividos pelos homens comuns. Na unidade de construção destas figuras míticas e no entendimento de suas narrativas formuladas em seus próprios termos e proferidas pela boca de seus “cavalos”, superpõem-se as diversidades indicadoras de sentimentos, aspirações e atitudes individuais de suas experiências sociais, revelando o sentimento comum e individualizado que os seus próprios médiuns e fiéis possuem da sociedade.

No plano ideológico, estas “entidades” são codificadas, conceituadas e hierarquizadas dentro de um universo cósmico como projeção e projeto do universo social. A própria hierarquia dos espíritos corresponde à estratificação hierárquica das classes, dos tipos étnicos, raciais e sociais da sociedade brasileira mais ampla.

Aí está composto todo o campo e temática de trabalho umbandista. Calcado em cima dos médiuns e “cavalos” que se identificam como espíritos abnegados (no momento em que são “possuídos” por estes) e de suas narrativas de dor e sofrimento, é possível mergulhar tão profundamente na realidade brasileira, de buscar aí sua fonte de inspiração, transformando em símbolos emblemáticos figuras do cotidiano popular e buscando a sua maneira o seu significado mais profundo.

A possessão permite perceber o encontro do coletivo com o individual, pois ela valoriza a participação individual do médium no ritual. Este fenômeno deve ser visto, antes de tudo, como coletivo já que é um processo socialmente aceito, no qual as “entidades” que “incorporam” no médium fazem parte da mitologia e do sistema de representação do grupo. Mas ela é, ao mesmo tempo, a individualização desse coletivo, pois cada médium personifica uma ou várias dessas “entidades”, dando a elas uma elaboração pessoal.

Assim, a valentia de um caboclo, a humildade de um preto-velho, a inocência de uma criança, a agressividade de um exu, a alegria do povo cigano ou as atitudes sedutoras de uma pomba-gira são tidas como normais e mais que isso, estas ações são vistas como necessárias para o convencimento da platéia, garantindo a liberdade destes atos.

Talvez venha daí, segundo os umbandistas, a fonte maior dos poderes destas “entidades” espirituais. Esta condição implica em perigo e poder, conforme assinala Mary Douglas: “ter estado nas margens é ter estado em contato com o perigo e ter ido à fonte de poder” (DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo, Perspectiva, 1976.). As margens são, assim, perpetuamente o santuário dos conflitos sociais e também o “lugar do trânsito”. É evidente que estas duas lógicas se cruzam, interpenetram-se, chocam-se.

Contudo, viver na marginalidade é bastante precário, de vez que o marginal não pode cortar todos os laços com a sociedade dominante. Ele está permanentemente sob seu olhar, que cedo ou tarde o conduz à exclusão total ou a uma possível reinserção, desde que os valores da sociedade dominante sejam absorvidos por estes grupos marginais.

Desta forma, a umbanda se torna uma excelente oportunidade para refletir e questionar formas sociais de cognição e alternativas de resistência étnica e cultural. Eminentemente performance, o culto conjuga saber popular, práticas de cura de feridas históricas e de mazelas da memória, e uma ética crítica implícita às suas “magias”.

Referências

BARROS, Sulivan Charles. Brasil Imaginário: umbanda, poder, marginalidade social e possessão. Tese de Doutorado em Sociologia. Brasília, Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2004.

BIRMAN, Patrícia. O que é umbanda. São Paulo, Brasiliense, 1985 DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo, Perspectiva, 1976.

MAGGIE, Yvonne. (2001), Guerra de orixá: um estudo do ritual e do conflito. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.

Sulivan Charles Barros é Pós-Doutor em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Pós-Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília, UnB. Doutor em Sociologia, Universidade de Brasília, UnB. Professor do Departamento de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – UFG, Campus Catalão/GO.

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