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O resto é rio

Este texto foi lambido por 110 almas esse mês

por Raph Arrais

Ainda me lembro de quando todos nós

sentávamos à mesa da matriarca

para celebrar o nascimento de um deus.

“Deus” ali era o de menos, era só uma palavra;

o fato é que estávamos ali para celebrar

o amor de um pelo outro,

a vida compartilhada, as memórias

e o tempo: isto sim

era Divino.

 

Ainda me lembro de quando esta nossa comunidade

tinha tempo para estar junta, realmente unida,

nem que fosse uma única noite do ano.

 

Ainda me lembro de quando nos olhávamos nos olhos,

sem o risco de sermos subitamente interrompidos

por alguma notificação em nossa tela.

 

Ali, naquela época, havia tempo

para não pensarmos em tempo perdido.

Ali, naquela vida, havia sentido suficiente

para não pensarmos em busca de sentido.

Ali, naqueles dias, não vendíamos nossos minutos,

e toda a arte que apreciávamos era só arte,

não um produto.

 

E hoje, hoje não sei se vivemos,

acho que somos pautados:

a pauta do dia está lá, em nossa tela,

desde o momento em que abrimos os olhos,

dia após dia.

 

Hoje nós somos como nossa tela,

sem um tempo que seja só nosso,

sem saber o que somos ou seremos,

e sem querer saber.

Antes nós chegávamos a nos conhecer

pelo desassossego,

mas agora existimos assim,

profundamente sossegados

em nosso próprio aparelho mágico.

 

E é até engraçado de pensar,

mas não há mágica nenhuma nisso:

somos pautados pelos algoritmos,

e muitos de nós sequer sabem

o que diabos eles são.

 

Um dia chegamos a crer de pés juntos

que tempo é realmente dinheiro,

e que um crescimento exponencial de recursos

caberia dentro de um planetinha como este.

Um dia realmente achamos que o lucro por si só

resolveria todos os nossos problemas;

e, o que é pior, que a riqueza individual

traria um benefício coletivo.

 

Não poderia dar certo, e não deu.

Mas até mesmo o fim do mundo, vejam só,

até mesmo ele virou um produto…

 

Já há muitos filmes e bestsellers sobre o fim dos dias,

que tal um que fale do início de um novo tempo,

bem aqui, bem agora?

 

Tudo bem, tudo bem,

eu sei que este poema está ficando longo demais,

que está tomando o seu tempo precioso,

mas seja como for, me permita encerrar

com um pensamento:

 

Tudo o que você tem realmente de se preocupar

é em refletir sobre o que você veio fazer aqui,

neste tempo onde tudo gira

e nada está parado:

esta é a sua âncora,

o resto é rio.

 


Saiba mais sobre o autor em raph.com.br

Obs.: Texto destinado exclusivamente ao site Morte Súbita inc.

 


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