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O Sentido Místico do Pai Nosso: um breve estudo de correspondências

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Kaio Felipe Cabrera[1]

O Pai Nosso é a oração compartilhada por todos os cristãos. É um dos pontos de convergência onde a cristandade encontra unidade e comunhão. Neste artigo, buscaremos entender o sentido profundo e místico da oração mais conhecida da cristandade.

A oração aparece em dois momentos do Novo Testamento: no Evangelho de Mateus 6:9-13 e numa versão reduzida no Evangelho de Lucas 11:2-4. Em ambos os textos, Jesus está ensinando a oração. Nesse sentido, a oração do “Pai Nosso” torna-se para o cristianismo o modelo da oração em geral.

Podemos nos lembrar de Eliphas Levi, que sonhou um mundo onde o cristianismo seria compreendido em sua essência por meio da chave fornecida pela Cabala judaica. Levi acreditava que a mística judaica oferecia a ferramenta para se comprovar que Jesus era, de fato, o Messias aguardado. Além da reflexão messiânica, Eliphas Levi também pensou as correspondências da Shekinah com Maria, os símbolos zodiacais com os doze apóstolos, forneceu uma interpretação do simbolismo do Livro do Apocalipse e, desse modo, sua obra é marcada por uma tentativa de aproximação entre Cabala e cristianismo.

Seguindo o espírito da obra de Eliphas Levi, vamos traçar um paralelo entre a Cabala e a oração do Pai Nosso. Vejamos as correspondências e como essa oração pode guardar mistérios.

Primeiro, a oração é composta por 10 versos. Na Cabala, o número 10 corresponde às dez Sefirot, as manifestações de Deus e o modelo arquetípico da criação.

A Árvore da Vida, segundo algumas das autoridades cabalísticas (o Ari e Chaim Vital), emana de forma sequencial, uma após a outra, na criação do mundo. São elas:

  1. Keter (Coroa): o ponto de unidade e Transcendência. O ser transcendental.
  2. Chokmah (Sabedoria): o surgimento do sentido, Logos, sabedoria em seu grau mais puro.
  3. Binah (Entendimento): a forma pura, a possibilidade de que haja identificação e reconhecimento de uma coisa e de outra.
  1. Chesed (Misericórdia): fluxo ilimitado de amor e Graça, doação divina sem medida.
  2. Gevurah (Força): contenção e julgamento, justiça e regra.
  3. Tiferet (Beleza): equilíbrio entre as formas. Beleza harmônica.
  4. Netzach (Vitória): emoções e sentimentos, persistência e ambição.
  5. Hod (Esplendor): intelecto e comunicação. Capacidade para a aceitação e humildade.
  6. Yesod (Fundamento): intuição, percepção da alma, da sexualidade e o canal entre o anímico e o carnal.
  7. Malkhut (Reino): manifestação plena, corporeidade, materialidade. A Sefirá mais baixa e densa.

Aqui temos algo interessante para pensar: o Pai Nosso também tem 10 versos e pode ser lido em absoluta correspondência com as 10 Sefirot da Árvore da Vida. Vamos lembrar a oração e, em seguida, esclarecer as correspondências:

  1.     Pai nosso que estais no céu,
  2.     Santificado seja o vosso nome,
  3.     Venha a nós o vosso Reino,
  4.     Seja feita a vossa vontade,
  5.     Assim na terra como no céu.
  6.     O pão nosso de cada dia nos dai hoje,
  7.     Perdoai-nos as nossas ofensas,
  8.     Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido,
  9.     E não nos deixeis cair em tentação,
  10.   Mas livrai-nos do mal.

Amém.

Para o conhecedor de Cabala, as correspondências serão percebidas quase imediatamente, mas gostaria de deixar alguns comentários para auxiliar os menos habituados ao vocabulário e ao sistema cabalístico. Acrescento também a correspondência no corpo humano de cada Sefirá, apenas para ampliar ainda mais o entendimento.

  1. Pai nosso que estais no Céu / Keter (Sefirá da Unidade transcendental – topo da cabeça)

O primeiro verso já nos fala de uma absoluta transcendência. O “Céu” da oração é o inefável, o infinito, a elevação absoluta.

  1. Santificado seja o Vosso nome / Chokmah (Sefirá do sentido)

Os nomes de Deus são o ponto mais elevado de sentido da Criação. O conhecimento dos nomes é a chave para compreender toda a estrutura Cósmica. Para a Cabala, o Nome Sagrado (YHVH) é o código do cosmo, contendo os quatro mundos em conexão.

  1. Venha a nós o Vosso Reino / Binah (Sefirá da Formação)

Binah é a força da formação — o poder que dá forma ao universo. Essa Sefirá, conhecida como a “Mãe”, é frequentemente associada a Maria, pois é a mãe cósmica e aquela que dá forma e alimento ao Deus. Quando dizemos “venha a nós o Vosso Reino”, invocamos Malkhut, última Sefirá, que se traduz por Reino, como um clamor para que o mundo perfeitamente formado — Gestado em Binah — se manifeste, tome forma e se nutra em nossa realidade.

  1. Seja feita a Vossa vontade / Chesed (Sefirá do Amor – braço direito)

  A vontade aqui é lida como a expansão da benevolência. É o amor cósmico em movimento vivo.

  1.     Assim na Terra como no Céu / Gevurah (Sefirá da Severidade – braço esquerdo)

Aqui aparece a força da separação, da sustentação e dos decretos. O verso também evoca a lei das correspondências que une os mundos superior e inferior.

  1. O pão nosso de cada dia nos dai hoje / Tiferet (Sefirá da beleza – coração)

O pão é substância e símbolo. Alimenta o corpo e a alma. Remete ao maná, o alimento divino dado diretamente por Deus. É a beleza de existir.

  1.     Perdoai as nossas ofensas / Netzach (Sefirá das Emoções – perna direita)

As ofensas estão ligadas ao mundo emocional — aos apegos, desejos, impulsos e frustrações que desequilibram o ser.

  1. Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido / Hod (Sefirá da humildade – perna esquerda)

Hod é a capacidade de reconhecer limites, de abrir-se ao outro e aceitar com humildade nossas falhas.

  1.     Não nos deixeis cair em tentação / Yesod (Sefirá Da sexualidade e do inconsciente – órgãos genitais)

A tentação é o descontrole das forças inconscientes, em especial da sexualidade desequilibrada. É o rompimento do vínculo verdadeiro com o outro.

  1. Mas Livrai-nos do mal / Malkhut (Sefirá da manifestação – pés, mundo material)

Malkhut é a presença no mundo, o lugar da queda e da possibilidade de elevação. Aqui se manifesta o mal como separação e ilusão — e é aqui que se dá também o início da cura.

O Pai Nosso segue uma lógica de descida da bênção, do alto ao mundo. Mas também é possível subir por essa oração. Como? Basta ler cada frase como um caminho de reparação da alma, uma escada ascendente que parte do mundo terreno em direção ao divino. Para isso, é necessário compreender que cada verso anterior contém a chave de cura para o verso seguinte.

Assim, o décimo verso é respondido pelo nono, o nono pelo oitavo — e assim sucessivamente, até a origem. O Pai Nosso pode, então, ser lido desta forma:

“Mas livrai-nos do mal” (10)

– Só somos livres do mal quando não caímos em tentação. (9)

“E não nos deixeis cair em tentação” (9)

– Não caímos em tentação quando somos capazes de perdoar a quem nos tem ofendido. (8)

“Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (8)

– Só conseguimos perdoar o outro quando reconhecemos que também fomos perdoados. (7)

“Perdoai as nossas ofensas” (7)

– Somos perdoados quando acolhemos com humildade o pão nosso de cada dia — a dádiva da vida. (6)

“O pão nosso de cada dia nos dai hoje” (6)

– Esse pão nos é dado quando vivemos em harmonia com a vontade de Deus, aceitando o ritmo da Terra e do Céu. (5)

“Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu” (5)

– A vontade de Deus se realiza quando o Reino é acolhido em Nós e expresso no mundo. (4)

“Venha a nós o Vosso Reino” (4)

– O Reino se manifesta quando o nome de Deus é santificado por nossos pensamentos, palavras e ações. (3)

“Santificado seja o Vosso nome” (3)

– O nome é santificado quando reconhecemos sua fonte: o Pai que está nos Céus. (2)

“Pai nosso que estais no Céu” (1)

– E é por isso que tudo começa com a invocação: há um Pai, há uma origem, há um alto do qual tudo desce — e para o qual tudo retorna. (0)

Concluo, com isso, que se o Pai Nosso for experimentado na ordem convencional, ele expressa o movimento de condensação de uma bênção; experimentado em ordem inversa, revela-se como um processo de reparação e retorno — o que corresponde a um Tikkun


Kaio Felipe Cabrera é psicanalista, professor e pesquisador em filosofia da arte, com mais de dez anos de experiência clínica. Doutorando pela Universidade Federal do ABC, desenvolve sua tese em torno da obra de Étienne Souriau, com foco na psicologia dos modos de existência e suas articulações com a estética e o inconsciente. Atua na formação em psicanálise e psicologia analítica, com trânsito interdisciplinar entre filosofia, arte e clínica, além de integrar grupos de estudo e pesquisa sobre arte, simbolismo e práticas imaginais. É também vocalista da banda Strigah e músico experimental, criando obras que exploram estados alterados de consciência e atravessamentos entre mito, corpo e linguagem.


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