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O Demônio do Deserto (Prólogo)

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Lucas Oltmann

Al Baaz tremia. Suas mãos, como terremoto, pareciam emular as cordilheiras do deserto afora, rugindo ao vento. A tempestade de areia tombava a tenda dos Abuzaal, ameaçando, como um demônio, a tomar em um sopro a vida dos residentes. No auge dos seus sessenta e seis anos de idade, Al Baaz temia pelo seu bem mais precioso, a pedra mais brilhante que ele um dia já encontrou: Anuir, seu filho caçula, de seis anos. Os olhos do menino pareciam se esvaziar na poeira do deserto, sendo levado – clamado – pelos espíritos que rugiam, tenda à fora.

O tremor do pai, o movimento incessante de seus músculos em espasmo, contrastavam com a petrificação de seus olhos e de sua alma que, congelados, não sabiam como reagir.

– Eu não posso… Eu não posso deixá-lo entrar – repetia, com lamento em sua voz.

Maryah, sua esposa, encarava-o com seus olhos esmeralda, profundos, cansados, em busca de um sinal de piedade, rogando para que ele pensasse como ela.

– Nós não podemos deixar nosso filho morrer. Não podemos. Nós precisamos deixá-lo entrar. Ele é a única opção. Só ele poderá salvar o menino. – dizia, tentando tirar o marido do estado atônito.

– É ele, Maryah. É ele que está lá fora. É o Demônio do Deserto, Haru-da em corpo humano, encarnado. Ele que trouxe essa tempestade até nós. Ele que quer matar o nosso único filho. Nós não podemos deixá-lo entrar – respondeu ele, sabendo que, ao recusar hospedagem ao misterioso viajante que batia-lhe a porta, em plena tempestade, estaria recusando a única ajuda possível a seu filho, profundamente doente.

– Isso é só uma lenda, homem! – Maryah colocava as mãos sobre o rosto de seu amor, tentando trazê-lo à realidade.

Como um verdadeiro nômade, ela sabia que seu marido, vinte anos mais velho que ela e um homem experiente, já havia visto e ouvido de tudo – ou quase tudo. Seu medo era fruto das inúmeras histórias que escutara. Ela, no entanto, não podia deixar seu único filho agora morrer. Não podia.

– Isso é uma lenda. Mas isso – disse ela, apontando para seu filho enfermo – é real. Ele não resistirá até amanhã.

– Eu vou matar a todos nós se permitir que ele entre -respondeu o pai com tristeza nos olhos.

Ele sabia que não poderia deixar o velho homem que esperava à porta entrar. Mas também sabia que essa era a única forma de salvar sua joia mais preciosa. E sim, essa joia era única. Perdido, o patriarca delirava:

– Eu não posso! Eu não posso deixá-lo entrar. Nunca abra a porta para o demônio, Maryah. Este é o ditado! -.

Maryah sabia. Ela conhecia as histórias. A situação era realmente parecida – ou melhor, igual – à lenda. O homem era igual à Haru-da feito carne, como lhe ensinaram seus irmãos, sempre dizendo: “Jamais abra a porta caso um homem assim lhe apareça em casa. Vós estarás enferma, desesperada, doente. Mas não deixe jamais o Demônio do Deserto entrar”. No entanto, seu amor de mãe era mais forte, e ela não suportaria ver o próprio filho morrer em seus braços. Sentindo a inépcia do seu marido, correu à entrada da tenda, onde o homem misterioso estava parado, em meio ao deserto.

Maryah abriu. Em meio à ventania desértica incontrolável, jazia um eremita abandonado, uno à escuridão tempestuosa do deserto. Andando curvado, apoiado sobre uma velha bengala, aparentando ser um idoso de alta idade, trajava apenas um robe na cor escura, que cobria o seu corpo inteiro, incluindo o seu rosto. Ao perceber que Maryah havia lhe aberto a porta, o estrangeiro errante se aproximou da tenda. Encorujado, andando de modo trêmulo e frágil, o idoso, no entanto, ao levantar o rosto, aparentou possuir uma sabedoria profunda, uma calma que contrastava com a tormenta do mundo circundante. Ele se aproximou cada vez mais da entrada da tenda, até chegar perto de Maryah que, com os olhos lacrimejados, percebia o idoso exatamente que nem contavam as lendas:

“Como um velho inofensivo,
O monte subiu.
E sem tocar em Nada,
À Tudo destruiu.

Na ventania do deserto,
Jamais deixe-o perto.

Ó, Demônio do Deserto!
Afaste-se de nossas casas.

Ó, Serpente no Falcão!
Deixe-nos longe de tuas asas.

Serpente em forma de Homem,
Retorne ao buraco dos Deuses!
Os homens não são para ti.”

Ao chegar perto da tenda, o idoso com dificuldade ajoelhou-se e, para surpresa de Maryah, pegou em sua mão, tirou o capuz e beijou-a. Ao sentir os lábios do homem tocar-lhe a pele, Maryah por um segundo compreendeu que tudo o que haviam dito sobre ele era real, mas também a mais profunda mentira. Pois durante aquele toque de lábios, por um breve instante, o tempo se diluiu na consciência de Maryah, que, de uma simples mulher, fora exaltada à condição de sacerdotisa do universo. Por um instante, ela soube. Não soube nada em particular, mas soube tudo. E tudo estava lá, naquele momento enrodilhado dentro dela, como uma serpente envolta em torno da árvore-do-universo. E nada estava.

Maryah ajudou o senhor a se levantar, agora podendo olhar-lhe nos olhos. Muito mais jovem do que lhe aparecera antes, ela lhe percebeu um homem completamente careca, sem nenhum fio de cabelo ou barba – nem mesmo sobrancelha – em seu semblante. Parecia extremamente velho, ancião e simultaneamente jovem, cheio de vitalidade e energia. Sentia nele uma energia descomunal, uma pulsão, um tesão frenético que fazia dele o mais noviço de todos os homens na terra. E, no entanto, parecia de todos o mais velho, aquele viu o que ninguém vira, e cujos ombros pareciam atar todos os instantes e todos os povos do mundo, de Leste à Oeste, em suas costas, suportando o seu peso. O ancião carregava, em si, a humanidade inteira, a soma de todas as experiências passadas, presentes e futuras.

O homem, ao se levantar fitou com seus olhos amarelados, cor de mel, à alma de Maryah. Sem mexer um único músculo ou dizer uma única palavra, pareceu com seu olhar dizer para ela:

Até que enfim eu te reencontrei, senti tua falta -.

Pois todos eram seus filhos, mortos ou vivos. E ela parecia ter reencontrado nele seu verdadeiro pai; mas não o pai da carne, mas sim o Pai segundo o Espírito, aquele que rasteja por detrás de todas a existência, além da vida e da morte.

– Posso entrar? – perguntou ele, com um sorriso humilde no rosto. Para Maryah, ele era o mais humilde dos homens, parecia querer servi-la, servir a todos os homens; e era, simultaneamente, um rei. Mas não um Rei qualquer: o Rei de todos os Homens, o Rei da Vida, o Rei do Ser.

À sua pergunta, Maryah assentiu com um gesto, apontando para dentro da tenda. O local onde residia a família Abuzaal, os chefes da tribo nômade dos Abuzaaly, composta de mais de trezentas pessoas, se consistia em uma tenda feita de peles animais, abafada, cujo centro era habitado por um fogo sagrado, encarnação e moradia dos ancestrais da família, os regentes da casa e senhores espirituais de toda a tribo.

Ao entrar, o homem deparou-se com a cena devastadora: Al Baaz de joelhos, tremendo, rezando aos espíritos ancestrais para que salvassem sua criança; e seu filho, Anuir, de seis anos, lançado sobre uma cama de feno, coberto, apenas com o rosto para fora, vermelho e suando, morrendo. O menino jazia com os olhos fixos, sem emitir reação, e sua condição só piorava. Al Baaz já havia rezado inúmeras vezes aos espíritos do fogo, mas nada adiantara.

Quando o homem velho se tornou visível dentro da tenda, e Al Baaz pôs nele os olhos, sabia que aquela seria a última cena que viria em toda a sua vida. A imagem pareceu travar, e demorar centenas de anos naquela miragem que desde o dia de seu nascimento estava destinada a ser a sua última: o homem careca, sem pelos no corpo, fitava ele com olhar amigável e ameaçador, parecendo ouvir-lhe os pensamentos.

Tudo pareceu cambalear em câmera lenta, dominada por uma tontura inconfundível: Al Baaz lembra de ter visto sua mulher ao lado do homem, com os olhos em transe, envolta por uma chama vermelha, que parecia consumi-la na alma. Na medida que o homem se aproximava, Al Baaz ia perdendo cada vez mais os sentidos, vendo tudo rodopiar lentamente, embaraçando sua consciência. Ouvia apenas uma voz sussurrada, serpentina, velha e rasgada tomar o cômodo, sem saber se ela era captada pelos seus ouvidos ou se emergia de dentro sua própria consciência. Ela recitava a antiga cantiga, conhecida de todos os jovens nômades do deserto:

“E virá o Homem Velho,
O mais jovem de todos os seres,
E o mais rico em saberes,
Cantando às almas. 

Como um Deus será recebido,
E todo o Mundo por ele será iludido.

Pelo velho sem pelos,
O mundo inteiro se desfará.
E toda gotícula de vida e morte,
Nele acabará.”

Al Baaz caiu no chão, sentindo tudo se apagar. O velho homem parecia serpentear na tenda, andando de um lado para o outro, enquanto cantava baixinho a antiga cantiga. O fogo sagrado dos ancestrais começou a se apagar, e Al Baaz pareceu sentir todos os espíritos guardiões gritarem agoniados dentro da chama. Seu filho, que há tempos não se mexia, respirava ofegante, mas com o corpo todo paralisado, parecendo querer gritar, com medo do Demônio do Deserto. Enquanto isso, Maryah parecia dançar em êxtase no meio da tenda, bela como nunca, sensual como uma deusa, desejante como nada neste mundo. Aos poucos ela se despia, e o velho continuava a cantoria da cantiga, sugando com ela os últimos suspiros de vida do patriarca:

“Deus em forma de Homem,
Homem em forma de Deus;
Demônio em forma de Homem,
Demônio em forma de Deus.

Há! E os Deuses em forma de Demônio,
Quem há de cantá-los?
Qual homem irá lembrá-los?”

 

Ao ritmo da cantoria, que cambaleava para dentro da alma de Al Baaz, a vida foi se esgueirando para fora do seu túmulo, deixando o corpo do antigo líder tribal. Sua última visão foi perceber sua esposa nua, rodopiante e dançante, em êxtase frenético, bela como nunca, e tomada pelo beijo amável das estrelas em seu corpo. O que fez Al Baaz lembrar da última frase da cantiga:

“As mulheres dançarão,
Os homens morrerão,
E nenhum Deus há de ficar são.”

Como último suspiro de sua consciência, lembrou de todas as vezes que ele mesmo havia questionado a sabedoria dos antigos, as histórias sobre O Demônio do Deserto.

“Era tudo verdade”, pensou, tendo por este o último de seus pensamentos, enquanto sua visão final era presenciar O Demônio do Deserto a colocar um turbante negro sobre a cabeça, lembrando o misterioso verso da cantiga:

“O turbante negro colocará,
E quando o fizer,
A todo poder sobre a Terra,
Desvestirá.”


Estando já morto, no entanto pôde pressentir, com o espírito que pelos últimos segundos desanima o corpo, O Demônio do Deserto de seu cadáver se aproximar, anunciando em seus ouvidos a revelação final, a resposta para seu último pensamento, e a verdade por trás de toda cantiga verdadeira:

– Não, Al Baaz. Era tudo mentira -.

E enfim, morreu.


SOBRE O LIVRO

O Demônio do Deserto, uma antiga lenda nômade, se torna uma realidade concreta para os habitantes de Abrukir, quando a Besta é capturada pelos Irmãos, as autoridades religiosas máximas da cidade. O contato com o demoníaco, vê-lo face a face, no entanto, traumatizará e transformará toda a cidade: em especial, a Morashá Inanna, que se verá obrigada a confrontar sua sombra, revisitando a experiência mais aterrorizante de toda a sua vida. Diante da situação, ela só terá duas opções: destruir-se ou deixar-se iniciar pelo sopro sedutor do opositor.

Ambientado no mesmo mundo mítico e esotérico criado pelo autor, em que se desenrola o livro “A Festa das Máscaras (2020)”, O Demônio do Deserto traduz em termos literários e romanceados os arcanos sublimes da Iniciação, incorporando em seu imaginário a mística de tradições como gnosticismo antigo e a Lei de Thelema.

O livro pode ser adquirido pelo Clube de Autores entre os meses de Dezembro e Janeiro de 2020: www.clubedeautores.com.br/livro/o-demonio-do-deserto

 


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