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Vampirismo e Licantropia

O sangue subliminar na boca de Átila

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Shirlei Massapust

O primeiro episódio da primeira temporada da série de documentários Myths – The Greatest Mysteries of Humanity, produzida pelo History Channel, estreou em 11 de janeiro de 2021. Seu título é “The Search for Attila’s Tomb”. Nele jornalistas acompanham o arqueólogo subaquático Attila Tóth enquanto ele mergulha no Danúbio portando um detector de metais. Diz a lenda que, quando Átila o Huno morreu, seu povo construiu uma barragem para desviar temporariamente o curso de um rio. Cavaram no fundo do leito, sepultaram o de cujo e, depois, desfizeram a barragem para que o rio tornasse a fluir.

Segundo a teoria de Attila Tóth, seria muito mais fácil desviar o curso do Danúbio em pontos estreitados pela presença de ilhotas. Tendo parado em um ponto promissor, ele escutou o som característico da detecção de algo grande, escavou e voltou à superfície trazendo um artefato idêntico àquelas estacas de metal comumente encontradas em locais de enterro de supostas bruxas e mortos-vivos, usadas para punir os mortos prendendo-os ao solo. Desinteressado, Attila Tóth disse ao jornalista que se tratava de um mero prego manufaturado no período romano. Um prego bem grandão, embora bastante comum. Então jogou aquele humilde e simplório objeto na água, de volta ao local donde veio.[1]

Se pudesse estar em seu lugar eu teria escavado mais, em busca de ossos ou de restos de madeira, a fim de determinar se o prego fez parte de um barco ou se estaquearam uma persona non grata com ele. Contudo, pessoas diferentes tem diferentes prioridades. Segundo o historiador trácio Priscus, citado por Jordanes, em Getica 49:258, Átila foi sepultado dentro de três caixões: Um menor de ouro dentro de um médio de prata dentro de um grande de ferro. Os coveiros foram sacrificados para que ninguém pudesse localizar o túmulo e profaná-lo em busca de tesouros (Jordanes, Getica 49: 255 e 258).[2] Por causa disso Attila Tóth esperava encontrar riquezas que rivalizassem com o sarcófago de prata do faraó Psusenes I e superassem a máscara de ouro de Tutancâmon. Desejando tanto acabou de mãos vazias, quando poderia ter levado ao menos um prego a um museu.

O cantor húngaro Levente Szörényi levantou a hipótese de a narrativa do enterro de Átila sob um rio possa ser mera desinformação. Ele crê que as ruínas de Sicambria, a capital Huna, estejam ainda parcialmente visíveis numa antiga pedreira. O programa continua informando que os Hunos tinham costumes interessantes. Eles praticavam o alongamento do crânio de bebês por enfaixamento. Durante velórios os Hunos de sexo masculino feriam seus rostos para chorar com sangue e não com lágrimas.

Figura de ação Attila the Hun da coleção McFarlane’s Monsters III: 6 Faces of Madness, lançada em junho de 2004.

Sangue na boca e sonho profético

Certo dia, no ano 453, o grande líder militar Átila o Huno, 58 anos, contraiu novas núpcias com a bela gótica Ildikó. O casamento foi celebrado no seu palácio em Sicambria, com festa e farta ingestão de bebidas alcoólicas. Antes de dormir Átila gozava de perfeita saúde. Pela manhã foi achado no leito, sem vida, com a boca cheia de sangue, ao lado da viúva que pranteava. Nenhum ferimento foi localizado no cadáver. Os Hunos suspeitaram de coma alcoólico, mas, por causa da presença de sangue na boca, concluíram que Átila se engasgou com o líquido jorrado de uma hemorragia nasal (Jordanes, Gética 49: 254).[3]

Estes incidentes foram registrados pelo historiador trácio Priscus, o qual teve a boa sorte de tomar conhecimento duma sincronicidade num sonho do imperador bizantino Flavius Marcianus Augustus (392-457). Enquanto Átila agonizava no leito de morte seu oponente sonhou que um arco – símbolo da superioridade bélica dos Hunos – se partia em pedaços, deixando de representar ameaça. Jordanes teorizou que tal sonho ocorreu “pois Átila era considerado tão terrível para os grandes impérios que os deuses anunciaram sua morte aos governantes como um benefício especial” (Jordanes, Getica 49: 255).[4]

Bram Stoker, lendo isso, pode ter rememorado documentos fartamente publicados pela imprensa onde vampiros eram descritos como mortos incorruptos com sangue alheio em suas bocas. Por exemplo, em um documento reproduzido no periódico Wienerisches Diarium, edição nº 21 (julho de 1725), página 10, o inspetor Frombald fala sobre a autópsia de Peter Plogojević (Петар Плогојевић) em um cemitério da vila Kisiljevo (Кисиљево), na Sérvia: “Não sem surpresa, vi algum sangue fresco em sua boca, que, de acordo com a observação comum, ele sugou das pessoas que havia matado”.[5] E mesmo antes da consolidação do mitologema um artigo do periódico francês Le Mercure Galant (edição de maio de 1693), informou que, em regiões da Rússia e da Polônia, os locais descreviam os “Upierz” como cadáveres endemoninhados que se enchiam do sangue dos vivos. “Este se encontra com o tempo em tal abundância, que sai pela boca, pelo nariz, e sobretudo pelas orelhas do morto, de forma que o cadáver nada em seu caixão”.[6]

Ainda no século XIX diversos autores reproduziam tais histórias e narravam outras semelhantes. Prestando atenção, Bram Stoker diz logo no início do romance Drácula:

Na população da Transilvânia existem quatro nacionalidades distintas:

no Sul os Saxões se mesclaram aos Valáquios descendentes dos Dácios. No Oeste ficam os Magiares, no Leste e Norte os Szekelys. Eu estou me dirigindo a estes últimos, que afirmam ser descendentes de Átila e dos Hunos. Pode ser verdade, pois quando os magiares conquistaram o país no século XI, encontraram os hunos instalados nele.[7]

Posteriormente o Conde Drácula comenta sua ancestralidade:

Nós, Szekelys, temos o direito de nos orgulharmos, pois em nossas veias corre o sangue de muitas raças corajosas que lutaram como leões pelo domínio de territórios. Aqui, no redemoinho das raças europeias, a tribo úgrica trouxe da Islândia o espírito guerreiro que Thor e Odin lhes deram. Os Berserkir demonstraram sua beligerância para os povos das costas da Europa – e da Ásia e da África também –, até o ponto de eles pensarem que estavam a enfrentar lobisomens. Também aqui chegaram os Hunos, cuja fúria guerreira varreu o solo como uma chama viva, até que os povos moribundos consideraram que em suas veias corria o sangue daquelas velhas bruxas, que, expulsas da Cítia, haviam acasalado com demônios no deserto. Tolos, tolos! Que demônio ou bruxa foi tão grande quanto Átila, cujo sangue corre nestas veias? [8]

Daí parece-me que o Conde Drácula não seria Vlad Țepeș, mas sim um membro fictício da família Drăculești, que era também um dos sículos transilvanos que aqui se supõe Attilani (descendentes de Átila). “It is said, too, that he can only pass running water at the slack or the flood of the tide”.[9] Donde Bram Stoker tirou essa ideia se nunca antes um vampiro, ou mesmo um diabo, foi impedido de atravessar um rio ou mar fora de horários específicos? Estaria ainda pensando no corpo de Átila mantido intocado em sua coleção de esquifes pelo correr das águas do rio Danúbio?

NOTAS

[1] MITOS E MISTÉRIOS DA HUMANIDADE: Temporada 01, episódio 01 – Em Busca do Túmulo de Átila. Exibido no History Channel (canal 76 na Sky) dia 26/04/2024 as 16h39.

[2] MIEROW, Charles Christopher. The Gothic history of Jordanes in english version with an introduction and a commentary. New Jersey, Princeton University Press, 1915, p 123-124.

[3] MIEROW, Charles Christopher. The Gothic history of Jordanes in english version with an introduction and a commentary. New Jersey, Princeton University Press, 1915, p 123-124.

[4] MIEROW, Charles Christopher. The Gothic history of Jordanes in english version with an introduction and a commentary. New Jersey, Princeton University Press, 1915, p 123-124.

[5] BARBER, Paul. Vampires, Burial and Death: Folklore and reality. New Haven and London, Yale University Press, 1988, p 6-7.

[6] BRAGA, Gabriel Elysio Maia. Vampiros na França Moderna: a polêmica sobre os mortos-vivos (1659-1751). Curitiba, Appris, 2020, p 94-95.

[7] STOKER, Bram. Dracula. Pandora’s Box. Edição do Kindle, p. 9-10.

[8] STOKER, Bram. Dracula. Pandora’s Box. Edição do Kindle, p 35.

[9] STOKER, Bram. Dracula. Pandora’s Box. Edição do Kindle, p 273.

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