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Entre o paganismo e o cristianismo, o Natal, ou mais apropriadamente, a “Festa da Natividade” mudou e vem mudando; a cada século, a cada década. As Saturnálias Romanas e os festivais bárbaros de solstício de inverno serviram de referência para, até hoje, marcar dois eventos tão populares quanto idealmente opostos: o Natal cristão e o carnaval. A primeira festa, em teoria, celebra valores espirituais; a segunda, valores materiais, a “carne”. Estas celebrações, esse comportamento próximo ao primitivismo do aborígene mais selvagem, como todo faxineiro de ocultista sabe, essas esbórnias comunitárias são atos mágicos coletivos arcaicos. Funcionam como rituais de evocação daqueles valores que representam. As práticas características de cada festa são como um chamado à causa formativa das coisas. Como diz o povo, “dinheiro chama dinheiro”; banquete chama fartura.
Assim, o Natal celebra ou celebrava a “esperança”, nascimento, renascimento, renovação cujo símbolo principal, entre os cristãos, tornou-se a “cena” da Natividade, ou seja, uma alegoria abrangente que se refere à idéia de nascer, renascer, renovar. Uma meditação muito séria sobre os mistério da morte e da escuridão, onde a todo momento mergulham os que morrem; mistérios da vida e da luz, para onde emergem todos os seres que despertam neste mundo. Reflexão sobre o sol e seus ciclos: rotação, começo e fim do dia; translação, começo e fim de um ano, de um ciclo, como o ciclo produtivo da terra, reprodutivo entre os animais.
O carnaval, nada espiritual, é a celebração do prazer de viver na esfera da existência meramente física: comer, beber, drogar-se, copular. O aspecto carnavalesco das festas pagãs incluíam, inevitavelmente, certa dose de orgia: gente pelada, bêbada, drogada e prostituída; gente que de tal forma se entrega ao desvairio dos sentidos que já não sabe quem é nem quem meteu o quê em que lugar.
Enquanto, tradicionalmente, o Natal cristão foi instituído, convencionalizado para evocar o valor espiritual da Natividade, do nascimento de uma esperança, um Salvador do Mundo capaz de redimir a Humanidade de seus “pecados”, isto é, de seus erros; o carnaval, evocando o material, o apelo da carne, foi convencionalmente instituído/tolerado como um parêntese moral anual que permite aos civilizados-cristãos uma chance de “tirar a máscara” colocando “a máscara” [de carnaval, de Dionísio], utilizando substâncias que alteram os sentidos de modo que pessoas, despidas de vergonha, possam, literalmente, “soltar os bichos”, assumir a sensualidade, o sentir meramente animal.
Em seus primórdios, o Natal cristão era uma festa religiosa comportada e fraternal, singela em troca de cortesias, embalada por canções que falavam do menino Jesus, o “Deus-menino” e do bom velhinho. Compravam-se presentes em segredo. As crianças saboreavam o gosto da surpresa na manhã de 25 de dezembro. Na véspera, as famílias se reuniam. Nas salas impecavelmente “faxinadas” destacavam-se as árvores enfeitadas com bolas coloridas de vidro delicadíssimo e outras figinhas, preciosos acessórios guardados para esse fim, as vezes, durante décadas. Nas mesas, a estrela gastronômica, o peru! Muitas vezes comprado vivo e adequadamente tratado até o momento fatal, quando a ave era forçada a tomar uma meia garrafa de cachaça antes de sentir corte do facão da empregada. Muitas vovozinhas boazinhas já degolaram perus… Morte piedosa em nome de boa causa. Porém… as coisas mudam; a tradição se esvazia no tempo, no espaço, na evolução da cultura. A tradição se transfigura em processo natural de extinção. Se Humanidades acabam, civilizações desaparecem, não há motivo para crer ou esperar que qualquer tradição seja eterna! Grotescas degenerações transformam o sentido mais profundo de um tema. Porque na realidade humana, terrena, mundana, tudo se esgota, tudo se esvai em vapores, radiações e pó. É patético o esforço dos saudosistas em fingir que ainda é possível ressuscitar o clima primitivamente cristão, franciscano! do Natal.
A grande família não existe mais. Ela começou a morrer na Revolução Industrial! Podemos imaginar que está prá lá de moribunda. Já não existem os casarões. Seus avós são divorciados e pagam gigolôs para ter “vida sexual”. O peru é chester com apito. Nos apertamentos de dois quartos, uma masmorra, cozinha “americana” e sem dependências de empregada os nostálgicos ainda “armam” o pinheiro adornado com bolas e outros bibelôs dourados e o pisca pisca-pisca de 100 pontos. Tudo é de “prástico”. Sai por menos de 30 reais nas Lojas Americanas.
Hoje, antes, muito antes do dia 25, os demônios de 3, 5, 7 anos, os tiranos adolescentes e pré-adolescentes e até os adultos infantilizados da pós-modernidade aterrorizam a mãe solteira, separada ou mal explicada no hipermercado apontando brinquedos, roupas e caixas de DVDs que eles “qué!” nesse Natal. [Foi por isso esse articulista de mediana inteligência escolheu não ter filhos… “Larga isso, diabo!”].
O Natal genuinamente cristão acabou. Regressou ou regrediu a uma espécie de paródia enervante das Saturnálias. Maratona exaustiva e nada divertida de muitos dias. Não é o “Natal das Crianças”. É o Natal das dívidas dos próximos meses para financiar o show de hipocrisia de TER de presentear, ter de “comparecer”, ter de estar com aquela cara de boas-festas ainda que seja diante de quem te detesta. Muitos, atolados em suas próprias sacolas, dirão em tom de crítica consciente, ainda que submissos à convenção, que este é o natal do capitalismo, o natal do comércio e consumo. Mas é, sobretudo, o nosso Natal, o Natal moribundo do nosso tempo, tão moribundo quanto o próprio sistema socioeconômico caduco que como um câncer descontrolado não tem mais para onde crescer. Como diria Nostradamus:
Os simulacros de ouro e prata inflacionados,
depois de terem servido,
serão atirados a um fogo em fúria:
Esgotados e conturbados pela dívida pública,
os papéis e moedas serão destruídos
Centúria VIII-28, … meditemos …
Este é o Natal dos cristãos paganizados. Retrato irônico das marés reversas tão típicas da dinâmica da História humana: pagãos perseguiram cristãos que conquistaram cristianizando os pagãos e por fim os cristãos paganizam a si mesmos porque no mata-mata do dia-a-dia contemporâneo esqueceram do que é feita a essência de um cristão. Não há tempo. “É tarde, é tarde”, dizia o coelho para Alice. É tarde para se lembrar do significado mais belo do Natal. Agora, não temos cristãos… nem pagãos, nem budistas, nem judeus, nem muçulmanos, nem xintoístas, nem umbandistas, etc., nada disso. A Igreja mundial é a dos desesperados imediatistas. Escravos de boletos e faturas, de demoníacos cartões magnéticos. É tarde para cancelar ou boicotar o Natal. Isso arruinaria a economia mundial!
Não! Nesse fim dos tempos, nós não adoramos “a Besta”! Nós nos tornamos uns bestas e as bestas [de carga], idiotas mesmo, impelidos ao suicídio financeiro, atolados no desconforto econômico sem sentido, sufocados pela mão invisível das convenções e leis de mercado que berram nas “bocas” dos midia, “Corra! Você tem que comprar!” . Como profetizou o Mago Ladino [1686-1769]: “No tempo da máquina voadora, o homem orienta-se com um monstro falador… E o “monstro” ordena:? Tem que comprar no Natal, no carnaval, na Páscoa, no dia da mamãe, no São João, no dia do Papai e na porra do dia das Crianças! E quando, finalmente, chega um feriado mais em conta, dia 2 de novembro, que beleza! Dia de Finados, no dia 03 começa tudo de novo porque “É Natal, É Natal”…”
por Ligia Cabús
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