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Alquimia

Tem Certeza que Entendeu?

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por Tamosauskas

Um rabino, um padre, um sufi entram num bar. E por mais improvável que pareça, eles concordam em uma coisa: nada que vale a pena entender pode ser entendido de um jeito só.

Está bem, essa piada é tão ruim que parece não valer a pena. Mas… será que ela só parece ruim porque foi lida no primeiro nível?  Se você olhar com calma verá que muitas tradições místicas basicamente ensinam uma forma nova de ler seu próprio livro sagrado. Há uma tradição que se repete em quase todas elas com poucas diferenças que diz que toda escritura pode ser lida em camadas. Como se a realidade fosse uma cebola ou um paulista ao sair de casa pela manhã.

Uma das mais famosas dessas tradições é a judaica, que chamou esses quatro métodos de PaRDeS, uma sigla que junta quatro jeitos de ler a Torá: Peshat (literal), Remez (alegórico), Derash (homilético) e Sod (cabalistico). Traduzindo: o que está dito ao pé da letra, o que está sugerido metaforicamente, o que isso ensina pra vida, e o sentido cabalistico. Esses quatro nomes formam uma palavra que em hebraico significa “Pomar” aludindo ao fato de que uma horta pode ser apreciada de várias formas dependendo do talento e interesse do agricultor.

Pode parecer coisa de rabino com tempo livre. Mas aí você olha para os cristãos medievais e vê a mesma coisa. São João Cassiano (c. 360–435 d.C.), provavelmente inspirado pelo rabino com quem bebia no bar, propôs também quatro modos de leitura para a Bíblia Cristã, método mais tarde consagrado por gigantes como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Como a metáfora do Pomar já estava ocupada, este método foi chamado de “Quadriga Hermenêutica”, como se a leitura da bíblia fosse uma carruagem puxada por quatro cavalos. Novamente temos o Sentido Literal, o Sentido Alegórico, o Sentido Tropológico (Moral) e o Sentido Anagógico (geralmente voltado à  escatologia).

Também os comentaristas clássicos e místicos (como al-Ghazali e Ibn Arabi) afirmam que o Alcorão pode ser lido em múltiplos níveis. Tem o Ẓāhir, o que o texto parece dizer. Tem o Tafsir é o comentário explicativo, mais racional e didático — a tentativa de ordenar o mistério em linguagem..  Tem o Ishāra, o sussurro do texto, a sugestão velada.. E tem o Bāṭin, o núcleo oculto, guardado a sete chaves nos círculos sufis. 

É como se todas essas culturas que pararam pra pensar sobre o mundo e além dele tivessem percebido que entender algo de verdade é escavar.  Começa na superfície. Depois vem a camada simbólica. Aí você cava mais um pouco e acha a virtude. E se tiver coragem, cava mais fundo e encontra o mistério. É assim também com os alquimistas: “Visita o Centro da Terra, Retificando-te, encontrarás a Pedra Oculta.

Mas escavar o que? Como existem alquimistas de todas as religiões e em todas as épocas, cada um pode fazer isso com seu próprio livro sagrado, o que é muito bom. Mas teriam os alquimistas, seu próprio Livro Sagrado? Será o Atalanta Fugiens? O Mutus Liber? O de Liber Paragranum de Paracelso?

As respostas são Sim, não, não e não.

Livros de alquimia são bastante símbolos e fazer diversas leituras de um mesmo trecho pode ajudar a desvendar aquilo que o autor quis dizer, especialmente se for um desses alquimista antigos que adoravam esconder o ouro. Porém não é disso que estou falando.

Como ler como um Alquimista

Os alquimistas têm, de fato, um Livro Sagrado que permanece vivo em seus corações e mentes desde o Egito helenístico — e talvez antes. Mas este não é um livro escrito por seres humanos. É o Livro da Natureza.  E todos os místicos das religiões já citadas concordariam que seu autor é dos bons.

Assim diz o Atalanta Fugiens: “Que a Natureza te guie, e você a siga em sua arte, porque você errará se ela não for a companheira de seu caminho.” enquanto que o Confessio Fraternitatis alerta “O Livro da Natureza, que embora permaneça aberto verdadeiramente diante de nossos olhos, pode ser lido ou compreendido somente por muito poucos.” 

Este livro está aberto o tempo todo diante dos seus olhos. Está na pressão barométrica e na umidade do ar. No faro de temos uma boca e dois ouvidos e no milagre do nascer do Sol. Observamos ele no inchaço das picadas de abelha e nas ondas da praia. Mas observar é apenas o primeiro grau de leitura. Compreender a natureza de forma descritiva é apenas o começo. Nesse sentido, a Química moderna está para a Alquimia como o nível literal está para o nível místico. 

Assim como o PaRDeS ensina quatro formas de ler a Escritura, os alquimistas também lêem o Livro da Natureza de uma forma diferente da convencional. Seguindo as tradições citadas podemos organizar um método de leitura do mundo baseado em quatro destilações.

Destilações são, lembremos, extrair de misturas substâncias a partir de seus diferentes pontos de ebulição. O que propomos aqui é uma Destilação Sequencial. De um mesmo vinho podemos extrair: Metanol, Etanol, Propanol e Butanol, nenhum deles é superior ou inferior aos demais, alguns porem são mais raros do que outros.

🜃 1º Destilação (Leitura da Terra): A visão da matéria. O que aquele fato diz aos sentidos? A leitura da matéria e o sentido bruto, a descrição científica do fato material concreto. O que a Grande Alquimista está mostrando sobre a realidade material?

🜄 2º Destilação (Leitura do Água): A visão simbólica. O que aquele fato diz ao seu coração? A leitura metafórica  de como o fenômeno ilustra algo no comportamento e psique humana. O que a Grande Alquimista está ilustrando sobre os seres humanos?

🜁 3º Destilação (Leitura do Ar): A visão virtuosa. O que aquele fato diz ao seu senso do que é certo ou errado? A leitura como prescrição ética e prática. O que a Grande Alquimista diz a você em escala pessoal?

🜂 4º Destilação (Leitura do Fogo): A leitura metafísica. O que aquele fenômeno diz ao seu espírito? A leitura em busca por uma lei oculta universal. O que a Grande Alquimista está dizendo sobre si mesma?

Um exemplo aplicado

Vamos pegar um exemplo usando a  primeira lei de Newton: “um objeto permanecerá em repouso ou em movimento uniforme em linha reta a menos que tenha seu estado alterado pela ação de uma força externa.”

🜃 1º Destilação: A Leitura da Terra é a mesma do professor de química, física ou biologia. É a mais sólida e por isso mesmo menos passível de variações de leitura. A declaração da primeira lei de newton é essa leitura: corpos materiais se movem ou repousam conforme seu estado inicial, em ausência de força externa permanecem como estão. O conceito se chama a inércia. Trata-se de uma constatação empírica da realidade mecânica, sem implicações morais ou subjetivas.

🜄 2º Destilação:  A  Leitura da Água é analógica, temos que nos perguntar aqui o que a Grande Alquimista pode estar sugerindo sobre os seres humanos. A ponte aqui é mais uma sugestão emocional, um insight do que uma aplicação lógica (esse vem a seguir). Com a primeira lei de Newton podemos ilustrar que as pessoas  tendem a permanecer no estado em que se encontram. Podemos chamar isso de Zona de Conforto (ao lidarmos com o Cobre) ou Viés de Confirmação (Ferro) ou Estagnação Profissional (Estanho). Seja nos aspectos emocional, intelectuais ou status tendemos a continuar a ser quem somos até que uma força externa (trauma, amor, crise, golpe de sorte) o desloque. A procrastinação, a rotina automática, o medo da mudança são expressões dessa inércia psíquica. O ego constrói padrões de estagnação (apatia) ou movimento retilíneo (hábitos), evitando perturbações. Além disso, a inércia impede o florescimento, mas uma vez colocada em movimento agirá em seu favor.

🜁 3º Destilação: Com a Leitura do Ar damos uma guinada virtuosa buscando uma estrutura de aplicação prática. A ponte é: “Como usar que aprendei na destilação anterior para melhorar a mim mesmo?”. A Lei de Newton nos sugeriu que se não houver intervenção deliberada, não há transformação, então temos agora que levar isso para o lado pessoal e enxergar em que aspecto estamos indo no piloto automático e deixando nossa situação ser dirigida pela inércia. Essa é a ética da ação. A responsabilidade moral é tomar consciência da própria mesmice e aplicar em si mesmo a “força” necessária para evoluir em uma área particular de sua existência. Essa força pode ser disciplina, autoconhecimento, ruptura consciente de padrões. Aqui, a Lei de Newton vira preceito ético: Se não quiser que as coisas continuem como estão, faça algo para mudar agora.

🜂 4º Destilação: A Leitura do Fogo contempla o mesmo fenômeno algumas oitavas acima. A ponte aqui é feita com a chave “Assim acima como abaixo.” Se o ser humano espelha o cosmos, o que podemos descobrir sobre o cosmos a partir das destilações anteriores? Ao fazermos isso com a Primeira Lei de Newton encontramos indícios de algo que os alquimistas gostam de chamar de “Anima Mundi”. A constância do movimento inercial sugere uma regularidade no cosmos, alinhando-se com a ideia metafísica de um universo ordenado e governado por leis imutáveis. Se o cósmos tente à continuidade e portanto seria necessário algo fora do cosmos para romper este estado de indiferença. Em termos herméticos, a matéria sem forma (hyle) permanece inerte até que uma força cuja origem está fora do mundo seja responsável por sua orquestração. A matéria organizada seja orgânica ou inorgânica não poderia a organizar a si mesma. Precisa de um impulso que transcenda seu estado. O universo, por padrão, tem o silêncio de um instrumento guardado. Só o sopro da consciência faz a música tocar.

Resumindo, a primeira Lei de Newton quando lida alquimicamente nesta quadrupla destilação não diz apenas que  “Um corpo tende a manter seu estado de movimento, a menos que uma força aja sobre ele.”. Ela trás uma alegoria escondida: somos todos inerciais — só mudamos com empurrão. Essa alegoria quando vista do ponto de vista da virtude, é um tapa na cara: sem esforço externo, você estagna. E no Rubedo? Aí o bicho pega: o universo material, por padrão, é silêncio. Só a consciência cria transmutação.

É importante o alquimista lembrar que ele não está sozinho nessa investigação. Caso contrário são grandes a chances de viajar na maionese. Não faça a primeira destilação ignorando a ciência atual. Não faça a segunda destilação ignorando o que poetas e artistas já mostraram. Não faça a terceira destilação sem considerar o pragmatismo do seu ambiente cultural. E principalmente – não faça a quarta destilação ignorando a tradição mística que você está inserido. Nesse sentido o diálogo com os pares é ótimo. A orientação de um mestre é melhor.

Com essas ressalvas, faça você agora um exercício de leitura alquímica: Tente fazer as Quatro Destilações para a Lei da Conservação de Massa de  Lavoisier: “A soma das massas das substâncias reagentes é igual à soma das massas dos produtos da reação.” mais conhecida na forma “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Depois disso, vá mais além. As quatro leituras é algo que você pode fazer sempre que alguma coisa te chamar atenção durante a colheita do orvalho ou durante o trabalho dentro ou fora do laboratório. Qualquer fenômeno pode ser visto como uma carta direcionada da Grande Alquimista á sua pessoa. O Universo está falando para você agora.

A moral é simples: se você acha que entendeu algo de primeira, seja um trecho da bíblia ou o sorriso de um bebê é provável que tenha parado na primeira destilação. Essa leitura, ligada a terra é descritiva da natureza é muito útil para resolver problemas cotidianos e estacionar carros com precisão, mas é só o começo. Talvez seja interessante seguir o conselho do velho Mutus Liber: “Reza, lê, lê, lê, relê, trabalha e encontrarás.”.


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