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Marcos Antonio de Carvalho.
Há milhares e milhares de anos, os primeiros homens tiveram contato com seres superiores — mais tarde chamados de deuses por diversas religiões —, os quais transmitiram a esses humanos primordiais as regras que deveriam seguir para viver de maneira harmônica e pacífica, conforme a visão desses seres.
Dessa forma, os homens daquele passado longínquo não tinham dúvidas sobre o que seria ou não aceitável para os deuses em termos de comportamento: os entes superiores estavam presentes, bem próximos. No caso de alguma eventualidade dúbia, bastava olhar nos olhos dos seus mais legítimos representantes — o líder sagrado, o rei ou imperador, que carregava em si a humanização e a corporificação dos desejos, vontades, exigências e proibições das divindades — para saber a resposta. Assim, não se podia sequer questionar suas palavras e atos. Dessa forma, o mundo viveu na paz sagrada durante milênios, e os seres humanos se espalharam pelo planeta, a partir das experiências dos habitantes de Lemúria, Atlântida, Mu e Shambala — ilhas, continentes e cidades que serviram como sede desse conhecimento ditado pessoalmente pelos deuses.
Mas a tragédia se aproximava: por um motivo não muito claro — questões morais, para alguns; excesso de utilização da magia, segundo outros —, nossos antepassados começaram a se afastar das regras divinas, e, desde então, o homem iniciou sua queda. Tais regras, no entanto, sobreviveram, bem ou mal, entre culturas como a do Egito Antigo, da Índia, da Grécia pré-socrática, até chegar ao Sacro Império Romano, em plena Idade Média, para só então desaparecerem — ainda que uns poucos grupos tentem manter esse conhecimento até os dias atuais.
Sociedade Divina
Mas que tipo de estrutura política e social esse conhecimento propõe? Qual é a sociedade que os deuses querem, segundo o líder sagrado? Simples: uma sociedade de castas. Para começar, o líder é um rei intocável, herdeiro de uma família ungida pelos próprios deuses e, assim, sagrado tanto em termos de ascendência quanto de descendência. Por ser sagrado, tem todos os direitos, especialmente o de vida e morte sobre seus súditos e inimigos, tanto externos quanto internos.
Em segundo lugar, na sociedade proposta — e única aceita pelos deuses — surgem os sacerdotes, responsáveis pela união entre o líder sagrado e as castas inferiores. Por isso, também são poderosos, tanto que foram os primeiros líderes de revoltas contra os reis, ainda no Antigo Egito.
Em terceiro lugar, nessa hierarquia divina, surgem os guerreiros sagrados, que só se envolveriam em guerras santas — já que, é claro, todas as guerras são santas, pois são declaradas por líderes que não se enganam jamais. E, por último, os felizes servos — sem direito a nada, exceto servir aos seus superiores e, dessa forma, usufruir das vitórias guerreiras e da expansão das sagradas verdades ditadas pelos deuses através do rei.
Ainda assim, esses servos, a maioria da população, estariam sempre contentes. Afinal, vivendo sob a paz sagrada, eles estariam, na verdade, preparando para si mesmos uma reencarnação em uma casta superior: na próxima vida, talvez voltassem ao mundo como guerreiros — e teriam, pelo menos, o direito de matar, ato proibido aos servos.
A Volta da Tradição Esotérica
O mundo viveu, portanto, em paz e harmonia durante milênios, seguindo as regras ditadas num tempo inimaginável pelos deuses. No entanto, a palavra sagrada começou a não ser mais ouvida, e tudo começou a ruir quando o Sacro Império Romano perdeu seu poder, ainda no século XIII, época em que começaram a desaparecer as últimas famílias de sangue puro, nobre e sagrado.
A Renascença, a Revolução Francesa e o Iluminismo enterraram de vez essa tradição — ainda que Napoleão e Hitler tenham, mais tarde, tentado reerguer um império europeu. Desde então, o que se tem visto é a modernidade se espalhando pelo Ocidente.
Em rápidas pinceladas, esse é o quadro que a tradição esotérica expõe ao mundo. Ou seja: o passado mítico do homem é a única saída para que os seres humanos voltem a ser divinos e para que o Ocidente — a Europa, na verdade — retome seu lugar de liderança no mundo.
Todo esse quadro poderia até parecer um curioso livro de ficção científica, escrito por um autor cheio de fantasias e com uma visão politicamente autoritária. Mas não: é a tese de um dos maiores e mais estudados autores esotéricos do mundo, o italiano Julius Evola (1898-1974), exposta no livro Revolta Contra o Mundo Moderno. Estranhamente, essa é a mentalidade de vários autores ligados ao esoterismo: para eles, a modernidade inaugurada pela Renascença marca a queda do homem, e o resultado disso será a destruição do Ocidente. Ou, antes, a destruição do homem europeu, porque, para esses esotéricos, somente a Europa branca importa.
Ora, interessa pouco, aqui, a existência histórica de lugares como a Atlântida ou Lemúria. A existência real desses locais conta tanto quanto a localização atual da Austrália, das ilhas Shetland ou do Nepal: esse é um interesse de geógrafos. O que realmente importa — para o esoterismo e para aqueles que, como eu, tentam entender o discurso dos esotéricos — é que tipo de sociedade habitava esses locais míticos, que homens como Evola consideram a única possível para a sociedade humana. A partir daí, é possível entender que a tradição esotérica propõe uma vida que homens como Átila, César, Torquemada, Napoleão, Hitler e Stalin aprovariam totalmente.
E o que é a tradição esotérica, segundo Evola? Essa tradição quer a volta do patriarcado mais violento, aprova e propõe guerras santas, tem horror a tudo que representa o feminino, afirma que o império é a única saída política, vê os reis como sagrados, insiste que somente aristocratas de sangue divino têm o direito de governar, não aceita que os servos exijam seja o que for, e quer o direito à terra apenas para os nobres — claro, porque tudo isso foi ditado pelos deuses, e não há como negar ou discutir.
Contrariando a Modernidade
Tudo aquilo que a Renascença, a Revolução Francesa e o Iluminismo propuseram, o esoterismo nega: para eles, a busca da liberdade individual — hoje ainda tão distante — é o caminho em direção ao precipício. O homem só tem uma saída: voltar a ouvir as palavras sagradas.
Em sua erudição e inteligência, Evola nada tem a ver com o analfabetismo cultural daqueles que se afirmam esotéricos, místicos, bruxos e alquimistas: ele é claro na exposição de suas ideias e não esconde que prefere o mundo da tradição ao mundo que chamamos de moderno.
Evola e o esoterismo negam, portanto, a possibilidade do futuro: todas as respostas estariam em um passado longínquo, onde a sociedade era perfeita e hierarquicamente organizada — como um imenso formigueiro humano —, onde cada um tinha seu papel estipulado antecipadamente e nada se modificava para todo o sempre.
Estou longe de afirmar que o mundo atual seja o melhor dos mundos possíveis — talvez porque não saiba qual é o melhor dos mundos —, mas não quero de forma alguma dizer que o esoterismo seja “demoníaco”. Ao contrário, afirmo que é humano, demasiadamente humano e comum, e muitas das propostas das instituições esotéricas só se tornaram ocultas porque seus membros não têm a coragem de expor o que pensam e temem críticas à sua egomania e sede de poder.
Assim, das duas, uma: ou as palavras sagradas em que todo esotérico se baseia não são sagradas e, na verdade, foram ditas e escritas por seres humanos comuns, como eu e você (e por isso estão cheias de agressividade, preconceito, medo, sonhos e emoções baratas); ou, ao contrário, tais palavras são mesmo sagradas e foram ditadas pelos deuses — e aí só posso dizer, como ser humano que quer ser livre e buscar o respeito para a espécie: “Vão para o inferno, deuses!”
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