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Shirlei Massapust
Mutantes existem. Todos nós somos mutantes. Assumindo que a vida humana começou no continente africano, deduzimos que os negros que lá vivem estão mais próximos da configuração original do código genético do Homo sapiens, embora nunca hajam parado de evoluir. Sempre, ao mudar de ambiente, os membros de nossa espécie sofrem adaptações. Para sobreviver em cenários climáticos mais frios, caucasianos perderam melanina e ganharam gordura. Nos olhos dos orientais a inserção do músculo reto superior é mais baixa na pele palpebral provocando diferenciação ou ausência, em 50% dos casos, da prega supra tarsal. Pessoas da tribo Huaorani desenvolveram pés planos com dedos mais curtos, em número de seis em cada membro, o que os tornam melhores para escalar árvores. Povos andinos sofreram mutação no gene AS3MT possibilitando que o organismo metabolize arsênio. Os povos Bajaus sofreram uma mutação no gene PDE10A e outra no gene BDKRB2, que resultou em mais hemácias oxigenadas e melhor reflexo de mergulho. Por este motivo eles conseguem permanecer submersos por até treze minutos em profundidades de até sessenta metros.
Sempre que dois ou mais grupos humanos se reencontram, após uma separação por tempo e espaço consideráveis, as pessoas ficam curiosas diante das diferenças étnicas e culturais desenvolvidas cá e acolá. No continente europeu os viajantes do mundo antigo costumavam exagerar e até fantasiar as características de povos vivendo nos rincões mais distantes de sua terra. Alguns acreditavam em blêmias (pessoas sem cabeça, com olhos, nariz e boca no busto) e temiam pigmeus (termo pejorativo utilizado para vários grupos étnicos cuja altura média é invulgarmente baixa, cerca de 1,50 cm).
Os portugueses transmitiram aos brasileiros o gosto por bestiários e crônicas de viagens extraordinárias, de modo que o poeta Bernardo Guimarães (1825-1884) acabou inspirado a descrever uma tribo hostil e exótica no conto O pão de Ouro (1879). As adaptações dos membros da tribo Tatu Branco são: Baixa estatura, brancura excessiva, cegueira diurna, visão noturna e unhas curvas como as dos animais carnívoros.
Todos os numerosíssimos integrantes são ágeis e robustos, apesar de “quase anões[1]”. Eles fazem caça humana e comem crus àqueles que capturam em seu território, porém não praticam endocanibalismo. Ou seja, não comem os mortos de sua própria tribo e etnia mesmo que estejam famintos e que haja muitos corpos disponíveis.
Seus bens culturais se resumem à linguagem exclusiva de seu grupo étnico, pois não pintam grafismos corporais, não produzem artesanato e desconhecem até o fogo. Suas ferramentas são paus que quebram pelo mato e pedras que encontram pelo chão. Seus lares são cavernas escavadas com as unhas. Eles conseguiram criar um grande e complexo sistema espeleológico artificial numa região do Estado de Goiás.
Em O pão de Ouro o autor romanceia histórias pitorescas sobre as expedições dos bandeirantes paulistas trilhando em busca de riquezas no interior do Brasil desde o século XVII até o meado do XVIII. Tudo termina quando Gaspar Nunes, o último chefe de expedição, encontra uma nativo-americana que lhe informa sobre a proximidade dos jardins de Tupã onde “o cascalho dos rios é de diamantes, e os rochedos das montanhas são de ouro, e o que há de mais extraordinário ainda, é um grande penedo todo inteiro do mais puro ouro, que existe encima de uma serra”.[2]
Nenhum intruso jamais sobreviveu ao pernoite nesta localidade porque a região é dominada pela temida tribo Tatu Branco. É a personagem indígena quem os define:
Uma casta de gente terrível, que vive debaixo da terra como o tatú durante o dia, e só de noite sai do buraco. São brancos, brancos como o leite d’estes meus peitos, e numerosos como as formigas, e ai de quem lhes cai nas garras; não deixam ficar nem os ossos. Tupã não quer que ninguém pise nos seus jardins, e pôs lá essa raça maldita para vigiá-lo.[3]
Hélio Lopes e Alfredo Bosi interpretam essa “raça de índios pigmeus”, como um dos “obstáculos alimentados pela imaginação” que dificultaram o desbravamento do sertão.[4] Sem atribuir autoria ao poeta, Afonso Arinos de Mello Franco (1905-1990), apresentou, em sua coletânea de palestras Lendas e tradições Brasileiras (1917), o resumo da “lenda bandeirante” rememorada a partir dum impresso lido na infância.
Imortal que ocupou a cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras, Afonso Arinos foi um dos fundadores do partido União Democrática Nacional (UDN) em 1945 e deputado federal a partir de 1947. É de sua autoria a Lei no 1.3901, aprovada pelo Congresso Nacional em 03/07/1951, pioneira na tipificação da discriminação racial como contravenção penal no Brasil. Este homem exerceu diversas atividades ao longo da vida, dentre elas as de crítico literário, historiador, memorialista, biógrafo e jurista, sendo que a preocupação em se apoiar em vasta documentação caracterizou sua produção bibliográfica. Luís da Câmara Cascudo confiou na boa-fé de tão respeitável autor e reproduziu a sua versão da lenda da tribo Tatu Branco nos livros Antologia do folclore brasileiro (1944) e Lendas brasileiras (1945). A jornalista Maria Rosa Moreira Lima também reescreveu a palestra, apresentando-a na qualidade de “lenda paulista”, publicada no Diário de São Paulo, edição do dia 09/08/1975.
Verificamos poucas, porém significativas, diferenças entre O pão de Ouro e a lenda de Afonso Arinos. O cenário esvaziado de suas riquezas maravilhosas foi transferido de Goiás para uma região agreste de Minas Gerais, “conhecida pela grande quantidade de furnas e cavernas temerosas”.[5] Quem adverte os bandeirantes sobre o desaparecimento de pessoas já não é uma jovem e elegante personagem de sexo feminino, de etnia indígena, falante dum idioma do tronco linguístico tupi, mas sim um “caboclo velho da escolta” conhecedor das tradições do sertão.
Na descrição de Bernardo Guimarães, os tatus brancos são apenas canibais que fazem caça noturna e dizimam todos os aventureiros: “A carne humana parece que era para eles finíssima iguaria por isso mesmo que raras vezes podiam obtê-la”[6].
Na lenda de Afonso Arinos os cavernícolas são definidos como “índios vampiros” com poderes quase mágicos, pois “enxergavam como as corujas” e farejavam a carne humana tão bem quanto os melhores cães de caça. [7] (Sim, eles tinham sentidos aguçados na versão anterior, mas não conforme tal mesura). Na variante posterior de Miranda Santos, compilada no livro didático Lendas e mitos do Brasil (1955), editado pela prestigiosa Companhia Nacional[8], estes ainda são “índios vampiros, que moravam em cavernas daquela região, e que só saíam à noite para atacar os viajantes”. Enfim, o conhecimento da área já não pertence a índia ou caboclo, mas a “um velho sertanejo”.[9]
Em todas as variantes da narrativa a única forma de escapar da horda esfaimada é caindo nas graças duma fêmea que faz de Gaspar Nunes o seu brinquedo sexual, ao invés de permitir que ele seja canibalizado tal como os demais prisioneiros. Quando a mulher sem nome chega no banquete, enxota seus iguais como a um bando de urubus.
sentou-se depois outra vez junto de Gaspar, tocou-lhe o corpo com as mãos, encostou as faces em suas faces, os lábios em seus lábios, e pousou seu peito sobre o dele. Gaspar reconheceu, que era uma mulher, e sentiu um horror e um asco irresistível. Essa mulher, que assim o afagava, tinha as mãos e a boca besuntadas do sangue de seu camarada a pouco devorado, e seu hálito tresandava um cheiro infecto e nauseabundo de sangueira. Gaspar sentiu as entranhas se lhe revolverem em ânsias cruéis. Se ele se visse com o pescoço enleado entre as roscas de uma serpente, que com a farpada língua lhe lambesse as faces e os lábios, não sentiria tanto horror e repugnância, como ao ver-se enlaçado nos braços de tão repulsiva criatura.[10]
No conto de Bernardo Guimarães a mulher que toma Gaspar para si percebe o nojo do bandeirante, não se apresenta mais babada de sangue e lhe oferece frutas ao invés de carne humana. Ainda assim é irremediavelmente asquerosa. Coabitar com ela na murrinha duma toca mal arejada pareceu-lhe um destino pior do que a morte.
Quando o sol dardejou seus primeiros raios, Gaspar (…) contemplou pela primeira vez à luz do dia aquele corpo, que não era mal feito, porém de alvura tão excessiva, que fazia repugnância; os cabelos eram finos, corredios e de um louro quase branco; o rosto era irregular, mas não inteiramente destituído de graça; porém as unhas curvas e compridas, e os dentes aguçados, que se viam por entre os lábios entreabertos, davam-lhe um ar feroz e repulsivo. Gaspar depois de ter lançado um último olhar de comiseração sobre aquela infeliz selvagem, pôs-se a fugir a bom andar para longe daqueles sítios fatais.[11]
A índia vampira da lenda de Afonso Arinos não entra em combustão espontânea quando exposta à luz solar, mas ainda encontra dificuldade de locomoção. Ela é uma princesa! Algumas imperfeições anatômicas desapareceram. Seus cabelos ganharam volume. Mesmo assim, durante a fuga, Gaspar só olha momentaneamente para traz para se certificar que sua perseguidora não o alcançará.
Era pequenina e branca; cabelos longos, de um louro embaçado, caíam-lhe abundantes sobre as costas. Quanto mais clareava o dia, maior parecia a angústia da princesinha dos “tatus brancos” que tapava com as mãos os olhos gázeos, bracejava e gemia, incapaz de caminhar, às tontas, como inteiramente cega. O bandeirante olhou uma última vez para a triste selvagem, e fugiu da terra maldita.[12]
Na variante de Theobaldo Miranda Santos – à época considerada adequada para leitura por alunos da terceira série primaria e crianças com mais de oito anos, – Gaspar parece tão pouco preocupado com o cárcere privado quanto a personagem protagonista do conto de fadas francês A Bela e a Fera; porque eles amam suas feras.
A madrugada encontrou fora da caverna a salvadora do bandeirante. (…) Era branca e loura. E linda como um anjo. O bandeirante ficou com pena de abandonar a princesinha. Mas não teve outro remédio.[13]
Confesso que essa monstra me causa mais embrolhos agora que é nobre, bela e virtuosa do que quando ela oferecia o braço do cadáver do colega para o cativo comer. O próximo passo para a desconstrução do antagonismo índio nesta lenda equivocada seria reconstruir elementos de terror como horror ou contágio sobrenatural de um mal europeu pelo nativo-americano. Assim surgiu a variante do imponente romance gráfico Papa-Capim – Noite Branca (2016), a 11ª edição do selo Graphic MSP, com roteiro de Marcela Godoy e desenho de Renato Guedes, publicada pela Panini.
Os extras do álbum informam que Marcela Godoy realizou “uma rica pesquisa” antes de criar vilões inspirados na lenda da tribo Tatu Branco.[14] Neste roteiro o leitor é apresentado à Noite Branca, tribo de índios possessos com poderes de desdobramento no universo onírico, onde geram pesadelos. Todo indivíduo integrado à Noite Branca se transforma num horrendo monstro albino capaz de resistir a qualquer ferimento, exceto à perfuração do coração por flechas de madeira. Somente o religar de seu Eu com a natureza, da qual se afastou, pode lhe devolver a humanidade. O fundador da Noite Branca seria um pajé imortalizado pelo consumo do coração de um vampiro europeu.
A fonte de Marcela Godoy é Câmara Cascudo que, conforme exposto, compilou um texto de Afonso Arinos. Este último certamente resumiu Bernardo Guimarães, sendo que antes imperava o silêncio… Que a verdade seja dita: Poderíamos passar um pente fino em todos os trabalhos arqueológicos e antropológicos realizados no centro-oeste e sudeste do Brasil sem localizar quaisquer menções no folclore nativo-americano a uma tribo denominada Abati Tatu, ou mesmo a um mero xingamento peē tatu.
Profissionais ocupados com pesquisa de campo fazem chacota do tema; a exemplo da ironia de Gilmar Pinheiro ao comentar o achado duma estatueta de tatu (Dasypodidae) quando buscavam por vestígios de ocupação humana em cavernas mineiras: “A análise das fontes primárias dos séculos XVI e XVII, aliada aos recentes dados que vêm sendo levantados pelo PASF, deixa uma certeza incontestável: é mais fácil crer na existência dos Tatus Brancos de Câmara Cascudo, que nos temíveis Cataguá de Diogo de Vasconcellos e seus discípulos”.[15]
Apesar de tudo, talvez não seja inútil rememorar a proposta de um personagem de Bernardo Guimarães, em O pão de Ouro, que planejou, mas não executou, um modo de vencer a tribo Tatu Branco: “O melhor é ajuntar bastante lenha na boca de cada furna, e deitar fogo; assim os sufocaremos e os mataremos todos, como se matam as formigas cabeçudas lá em nossa terra”.[16] É assim que vários povos nativo-americanos caçam morcegos. E foi assim que heróis do folclore Apinajé e Kayapó-Xikrin derrotaram a tribo dos homens-morcego kupẽ nhêp, caçadora de homens, que abduzia todos que pernoitavam nos arredores de sua caverna, numa área misteriosa no Alto Tocantins.
Faça download gratuito das fontes primárias:
GUIMARÃES, Bernardo. A Ilha Maldita. O pão de ouro. Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1879. URL: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3079
ARINOS, Affonso. Lendas e Tradições Brasileiras. São Paulo, Typographia Levi, 1917, p 23-27. URL: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=145784
Notas:
[1] GUIMARÃES, Bernardo. A Ilha Maldita. O pão de ouro. Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1879, p 280.
[2] GUIMARÃES, Bernardo. A Ilha Maldita. O pão de ouro. Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1879, p 260.
[3] GUIMARÃES, Bernardo. A Ilha Maldita. O pão de ouro. Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1879, p 261.
[4] LOPES, Hélio & BOSI, Alfredo. Letras de Minas e outros ensaios. São Paulo, EdUSP, 1997, p 23.
[5] ARINOS, Affonso. Lendas e Tradições Brasileiras. São Paulo, Typographia Levi, 1917, p 23.
[6] GUIMARÃES, Bernardo. A Ilha Maldita. O pão de ouro. Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1879, p 281.
[7] ARINOS, Affonso. Lendas e Tradições Brasileiras. São Paulo, Typographia Levi, 1917, p 23-24.
[8] A Companhia Editora Nacional é uma editora brasileira que foi fundada por Monteiro Lobato em 1925 e, em 1980, passou a fazer parte do Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas.
[9] SANTOS, Theobaldo Miranda. Lendas e mitos do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1955, p 86.
[10] GUIMARÃES, Bernardo. A Ilha Maldita. O pão de ouro. Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1879, p 287-288.
[11] GUIMARÃES, Bernardo. A Ilha Maldita. O pão de ouro. Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1879, p 261.
[12] ARINOS, Affonso. Lendas e Tradições Brasileiras. São Paulo, Typographia Levi, 1917, p 26.
[13] SANTOS, Theobaldo Miranda. Lendas e mitos do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1955, p 87.
[14] GODOY, Marcela e GUEDES, Renato. Papa-Capim – Noite Branca. São Paulo, Panini, abril de 2016, p 76.
[15] JÚNIOR, Gilmar Pinheiro. Arqueologia Regional da Província Cárstica do Alto São Francisco: um estudo das tradições ceramistas Uma e Sapucaí. (Dissertação de Mestrado). Belo Horizonte, MAE-USP, Março de 2006, p 20-21.
[16] GUIMARÃES, Bernardo. A Ilha Maldita. O pão de ouro. Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1879, p 276.
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