Categorias
Thelema

Procurando Nemo

Leia em 27 minutos.

Este texto foi lambido por 208 almas esse mês

Curitiba, 09 de Novembro de 2017

dies Iovis, Sol in Scorpio 17º, Luna in Leo 02º

Lua Cheia

Faze que tu queres há de ser o todo da Lei!

Uma das coisas que mais me marcaram na minha vida acadêmica no curso de Psicologia foi um documentário que eu assisti, provavelmente na cadeira de Psicologia Sócio-Histórica II.

Pesquisando muitíssimo a fundo na darkweb (google e wikipédia mesmo, tá?) achei o bendito filme no youtube, enquanto começo a escrever essas linhas. Google, wikipédia e youtube… três fontes inquestionavelmente fidedignas, o que já mostram a solidez desse texto e a confiabilidade do seu autor.

“As Borboletas de Zagorsk é um documentário produzido pela BBC em 1990 que trata do trabalho desenvolvido em uma escola russa com crianças surdas e cegas, inspirado nos estudos de Lev Vigotski.” (https://pt.wikipedia.org/wiki/As_Borboletas_de_Zagorsk)

Neoliberalzinho ridículo que sou, ainda assim tenho um imenso carinho e respeito pelos camaradas soviéticos que estudei na psicologia sócio-histórica, e esse filme dá mostra da amplitude do conhecimento assombroso que foi alcançado na Psicologia da União Soviética. Pelo menos isso prestou de lá desse período (da União Soviética, não da minha vida acadêmica).

Pense no desenvolvimento de uma criança, que, em termos de input de informação, acaba por ter um streaming muitíssimo restrito de dados sobre o mundo, relegado somente ao campo tátil. Supondo que seu sistema nervoso seja morfologicamente perfeito e funcional (à exceção da surdez e cegueira, claro, der), ainda assim fica puta impossível decodificar o mundo exterior a você dessa forma, não? Ter que depender só de propriocepção, sensores de pressão, temperatura e dor, e do deslocamento das pedrinhas dentro do labirinto para tentar, com isso apenas, se relacionar com o mundo a sua volta…

Se me lembro direitinho das aulas de neurofisiologia, quase metade do córtex cerebral participa de uma forma ou outra do processamento do input de informações visuais. Observe que essa área acaba não sendo estimulada nessas crianças surdas-cegas. Não só essa parte, aliás. Pense que o tipo de estímulo recebido por essas crianças é igual a você comprar um computador quântico e rodar só paciência spider nele.

Resultado, obviamente, é a incapacidade de entender o mundo, se comunicar de qualquer forma, de processar qualquer informação complexa e uma completa dependência de um cuidador.

SPOILER ALERT: no fim do documentário, mostra-se o resultado inacreditável de pacientes que chegaram lá piores do que animais (em termos de seu desenvolvimento cognitivo e comportamental), e que demonstravam, após alguns anos de estimulação adequada, pleno grau de humanização, autonomia e tinham, inclusive, adquirido a capacidade de ler braille em russo e na língua nativa deles, que sempre era algum tipo de língua eslava.

Foda, né? Veja esse documentário! No mínimo, a gente dá graças e se contenta um pouco mais com a vida…

Esse documentário demonstra o poder do potencial humano, mesmo contra todas as adversidades, e da importância que podemos ter para mudar a vida de alguém para melhor.

Mas eu estava pensando sobre esse filme, e comecei a juntar umas caraminholas de cabala e outras insanidades, e resolvi escrever esse texto sobre a interação corpo-alma e sobre a jornada de conquista da alma. Penso que, se bem sucedido, poderei contribuir para desmistificar algumas práticas mágickas e revelar a importância de outras. Duro é conseguir, né? Banzai!

ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA

Bom… inicialmente, o que as borboletas de Zagorsk têm a ver com isso? TUDO!

Também na faculdade, além de neuroanatomia, neurofisiologia, filosofia e a fundamentação das principais matrizes epistemológicas da psicologia acadêmica, tivemos uma matéria logo no começo do curso, chamada História das Idéias, com milhões de conceitos e visões do que é o psicológico humano.

Tudo isso, colocado no cucuruto de um jovem adulto, acompanhado de drogas, sexo e rock’n’roll – ou no meu caso, ao menos, de um excesso de cafeína, videogame, x-videos e anime, já que eu era um nerd virjão – buga a mente do cara.

Eu entrei numa bad trip filosófica que só começou a abrandar bem depois que eu descobri a magia cerimonial. Se é que isso também não é pira da minha cabeça.

Por que dessa crise? Porque o nosso método científico é eminentemente baseado em uma construção materialista da mente. E o que isso quer dizer?

Que, para a psicologia, psiquiatria, neurologia e qualquer outra ciência que estude academicamente a nossa estrutura psicológica, não existe alma, e nem uma essência à priori. A existência precede a essência.

Ou seja: sabe aquele cara da aula de catequese, o profeta Jeremias? Não? Tudo bem.

“Antes mesmo de te formar no ventre materno, Eu te escolhi; antes que viesses ao mundo, Eu te separei e te designei para a missão de profeta para as nações!” Jeremias 1,5

Como pode ser atestado pela citação acima – e infinitas outras, do ponto de vista bíblico, judaico, cristão e derivados, a ideia é absolutamente oposta. A alma já existia antes de vir para a terra. A essência precede a existência. Você já era desse tipão errado antes de nascer.

Logo, em termos acadêmicos, há uma fundamental incompatibilidade entre esses dois princípios, a que damos o nome de materialismo e mentalismo respectivamente.

Por coerência de princípios, a Ciência, que é materialista, afirma que nossa personalidade, nosso ‘eu’, é fruto da interação entre inúmeras variáveis, que operam nos níveis genético, ontológico e cultural. Ergo, não há alma.

Você é como é porque você era uma bolinha de carne que tinha uma programação default, que começou a interagir com o ambiente e modificar essa programação.

Isso faz um baita sentido e ajuda a explicar uma quantidade absurda de fenômenos observáveis.

E no epicentro dessa suruba de variáveis está ele, sentado no trono de ferro de Westeros: seu sistema nervoso central, ou, de maneira mais reducionista, o seu cérebro.

Até houve um movimento chamado de frenologia, que tentava relacionar diretamente partes da anatomia da cabeça, e mais especificamente do crânio, com traços de personalidade. Tipo, você tem a testa grande, então é inteligente. Você tem o cucuruto grande, é assim, mas se tem a parte occipital (acima da nuca) grande, é assado. Óbvio que é furada. Senão, o MIT e o CERN ficariam no Ceará. Piada de mal gosto, mas vou deixar aí. O texto é meu!

Mas na ciência contemporânea, há um tesão inesgotável pelo uso dos aparelhos de ressonância magnética e contrastes – que mostram qual área do cérebro está trabalhando quando o sujeito coça a bunda ou pensa em doritos. Mapas mentais da circuitaria cerebral prometem ler a nossa mente em breve e recebemos palestras e coquetéis farmacológicos para explicar que patologias são causadas por desequilíbrios nos neuromoduladores e vamos ficar bons logo. Assim que nossos salvadores acertarem a medicação e a dosagem através do incrível método científico da tentativa e erro, é claro.

Um dos livros introdutórios do assunto quando eu era acadêmico era ‘O Erro de Descartes’, de Antônio Damásio. Prefiro Oliver Sacks, mas foi importante na época.

Baseados em estudos de caso, como o do famoso Phineas Gage, que teve seu cérebro estuprado por uma barra de ferro marota que atravessou seus pobres miolos nos EUA, esses autores demonstram como o dano em uma determinada parte do cérebro ou patologia tem consequências para o modo que a informação é processada ou que a personalidade se manifesta, argumentando que isso demonstra inequivocamente que o cérebro, ou mais precisamente, a estrutura orgânica como um todo, em sua interação com o ambiente, é que produz a personalidade.

Emendando com o começo do texto, a psicologia soviética também tem uma base materialista (embora com um twist da dialética marxista!), e os estudos, por exemplo, de A.R. Luria feitos durante o tratamento dos soldados feridos durante a segunda guerra mundial, e que inauguraram o campo da neuropsicologia, corroboraram essas premissas.

Entretanto, vou em breve fazer uso de outro Luria, Yitzchak Luria, o ARI, que foi o Bruce Lee da Cabala Judaica, lá no século 16. Depois dos comerciais!

A abordagem materialista faz certo sentido, e ajuda a agir sobre o mundo, sobre os pacientes que são afligidos por vários males, e tudo mais. ‘Verdade é o que funciona’, diz o pai do pragmatismo William James.

Entretanto a questão é justamente essa. Funciona?

LEMBRE-SE DE QUEM VOCÊ É, SIMBA!

No que concerne a atuação sobre patologias, traumas físicos, AVCs, aneurismas e distúrbios psiquiátricos, essa concepção materialista tem efeitos muito positivos na eliminação do problema ou ao menos na atenuação dos efeitos negativos, aumento da resiliência e adaptabilidade do paciente e tudo mais. Ótemo.

Só que há uma sombra mefistofélica desse olhar sobre o ser humano.

Fomos reduzidos a um recorte do que realmente somos.

Segundo essa abordagem, não somos uma alma que utiliza um corpo para se manifestar. SOMOS um corpo. Pior ainda: esse corpo não é tipo o Rodrigo Hilbert. É mortal, pançudo e com celulite.

Se pensássemos sobre outras questões analogamente à visão médica, se um componente do rádio estivesse quebrado, a onda de rádio deixaria de existir, porque por essa lógica ela seria apenas resultado da interação dos componentes com o ambiente.

Ou, expresso de outra forma, podemos pensar em um veículo defeituoso.

Imagine que temos um piloto de fórmula 1 ultra fodão e agressivo na boléia; e ele está morrendo de pressa. Entretanto, há algum tipo de problema mecânico no carro que impede que haja uma aceleração muito potente, ou ainda que a velocidade fique muito alta.

O piloto soca o pezão no acelerador até o fundo, mas o carro não responde. Olhando de fora, o carro desfila alegremente a 30 km/h, embora sob o insufilm o motorista esteja xingando como um marinheiro e empurrando mais do que mulher em trabalho de parto. Percebe?

O fato de apresentarmos alteração de personalidade e problemas de percepção ou de processamento quando temos uma alteração no funcionamento do cérebro – como, por exemplo, a correlação sólida entre episódios epilépticos e a sensação de êxtase religioso – ou qualquer outro fenômeno oriundo de questões neuroquímicas, neuroanatômicas e coisarada, pode ser entendida como apenas restringindo a capacidade daquele aparelho, órgão ou indivíduo de desempenhar segundo os comandos de algo que está acima hierarquicamente, como na historinha do piloto com o carro quebrado.

Neste ponto do texto, sou visitado por um professor de neurologia desencarnado, que me pergunta, ousado: ‘então como é possível que uma entidade não-física, como a suposta alma, interaja com uma estrutura física, como o corpo? Como o não-material age sobre o material, espertão?’ e desaparece igual ao Mufasa do Rei Leão ou o pai do Hamlet.

Essa pergunta, clássica no repertório dos incrédulos na transcendência, tem ainda razão de ser?

Parece-me, se o LSD não estiver atrapalhando o raciocínio, que essa dicotomia físico/não-físico já não tem lugar de ser nessa vida de meu deus.

Pensemos primeiro na coisa do ‘físico’. Se por este termo a pessoa se refere a algo que é sólido, que dá para por no carrinho do mercado, melhor pensar mais cuidadosamente, não?

Pegue as minhoquinhas Fini, a Boêmia ou o rabanete que estão no carrinho de mercado e dê um zoom.

Daí a gente vê que o negócio todo é composto de células, e que essas células possuem estruturas menores, e que essas organelas são formadas de moléculas, que são feitas de átomos e vamos entrar naquela loucurara subatômica que é o orgasmo da piazada New Age.

Mas é fato, não é?

Tem mais espaço vazio numa jujuba do que átomos e elétrons ou todas essas bobeiras subatômicas. Então que sólido é esse? É tudo espaço vazio!

Ademais, não tem aquela putaria do Princípio da Incerteza desde o começo do século XX? DISCLAIMER: Não sou perito em Física. De fato, não consigo nem fazer conta de mais e menos sem calculadora – e tenho paúra daquelas HP demoníacas.

Mas se não dá para saber a posição exata de um elétron porque o maldito fica bancando o Mestre dos Magos – se a partícula pode ser onda e a onda pode ser partícula, que fisicalidade e que solidez tem nesse ‘físico’?

Assim, sendo um leigo quantumfóbico, parece-me que essa dicotomia (físico/não-físico) não tem mais razão de ser quando analisada do ponto de vista da ciência acadêmica materialista, tem? Vai bater boca com o Heisenberg então, porra.

BRISA DE RABINO

Seguindo pela outra ponta do Ouroboros, temos os velhos cabalistas com aquela barba cabulosa, tirando onda de Gandalf.

Sem entrar em grandes minúcias, mas a cabala vê uma progressiva densificação da criação, desde Kether de Atziluth, que é a coisa mais etérea e cheia de luz que dá pra ser, tipo pum de anjo, até Malkuth de Assiah, que é o cocô da bactéria da hanseníase. Isso sem jogar no mix as qliphoth, por exemplo, ou a chapação dos três véus negativos da existência…

Mas para cada nível da criação – pensando só nos mainstream da cabala, sem esse conteúdo mais crazy – já podemos ver uma gradação em que essa energia vai virando matéria, ou o etérico vai densificando, em uma verdadeira Escada de Jacob. Em tempo, um dos maiores expoentes da Cabala Judaica moderna, Yehuda Ashlag, é chamado de Mestre da Escada ou Baal HaSulam, por seus comentários sobre o Zohar, conhecidos como Escada, ou Sulam, em que discorre sobre esses progressivos estágios de evolução do íntimo do ser humano.

Obviamente que há complicações. Se a tal da ‘alma’ é energia, como se mede essa merda? Pois é. Daí encrespa o bagulho.

Do ponto de vista da cabala, não há uma única coisa não física, mas sucessivas camadas de ‘eu’ – quatro, para ser exato, que são densificações e manifestações desse princípio de Uno.

Essa divisão da criação em quatro níveis é bastante arbitrária, já que o negócio todo é um contínuo de emanação. É tipo tentar demarcar onde começa o vermelho no arco-íris, ou onde termina a linha da zaga e começa o ataque. Cinquenta tons de Yahweh. Mesmo assim, para fins didáticos, acho válida essa arbitrariedade. Novamente, o pragmatismo de James: é verdade na medida em que é útil.

Tipicamente vemos na literatura cabalista a divisão desse Todo em quatro partes, embora também ocorra na cabala judaica chassídica moderna (do Dr. Laitman, por exemplo) uma divisão em cinco partes que também funciona. A divisão em quatro partes utiliza como base o tetragrammaton, ou a palavra de quatro letras, YHVH – o Sagrado Nome do Inefável. O Dr. Laitman usa conceitos bem estranhos, como ‘a ponta do Yod’, mas não estamos aqui para criticá-lo. Faze o que tu queres. Se o Yod é o falo, a ponta do Yod é o que os judeus cortam fora. Tudo certo. Toca o barco.

Sendo o homem o microcosmo que espelha o macrocosmo do universo, a estrutura da manifestação da alma espelha a estrutura da manifestação do universo, e como temos a Criação manifestando as dimensões de Atziluth para Beriah, de Beriah para Yetzirah e de Yetzirah para Assiah em um contínuo, assim também temos a alma humana.

Macrocosmo (Universo) Microcosmo (Homem)

Atziluth Yechidah

Beriah Neshamah

Yetzirah Ruach

Assiah Nefesh

De novo a coisa dá ruim, porque há ainda o conceito de Guph, que é o corpo físico propriamente dito. Daí como que fica? Assiah tem duas coisas? Guph e Nephesh? E tem Chiah, que está lá com Yechidah… botão de pânico! Acho que não existem dois teóricos de cabala que usem a mesma morfologia da Árvore da Vida ou das partes da alma.

Mas foquemos em algo mais simples por enquanto.

Como Nephesh atua sobre Guph? Embora pareça que só trocou seis por meia dúzia, a pergunta acaba que ficou bem diferente, na verdade. E por quê? Porque já não estamos falando de físico interagindo com não-físico.

Na Qabalah, a estrutura humana não pode ser categorizada de forma tão simplista.

Na interação mais básica das diferentes partes humanas, temos o corpo físico Guph interagindo com Nephesh, que podemos chamar de ‘alma animal’ ou ‘instintiva’.

BATISMO DO SAPO

Eu lembro de um experimento da faculdade, na aula de neurofisiologia, em que o córtex cerebral de um sapo era completamente destruído, mas se preservava a parte do cerebelo, bulbo e do tronco do mesencéfalo.

O professor ia gradualmente inclinando a placa onde estava o infeliz do sapo (que, dizem, começou a escutar sertanejo e querer o Bolsonaro como presidente depois que o seu cérebro foi retirado). O grau de inclinação chegou a um ponto em que o coeficiente de atrito da pele do sapo não dava mais conta de segurar o pobre batráquio no lugar, e ele começou a deslizar, e ia se estatelar.

Para nossa surpresa, uma bruxaria louca aconteceu. O sapo, locão, sem cérebro, se reacomodou em um movimento absolutamente harmônico, ajustando suas pernas e braços de sapo zumbi graciosamente para se reacomodar e não cair. Quase gritei ‘Apopantos, Sapodaimonos!’

Por que isso ocorreu e o que isso tem a ver com Nephesh e com Qabalah?!

Ora, me poupe! Temos em nosso cerebelo circuitos neurais já perfeitamente estudados e mapeados e que conseguem agir independentemente de nosso controle mais sofisticado e ‘humano’. Não é alma, é biologia.

Sim, fio. Biologia. E isso não é um tipo de alma que o cadáver do sapo em putrefação não possui? Se pegarmos um ser humano que está sendo velado em um caixão e um que não está, os mais observadores de nós conseguirão identificar que essa é uma das pequenas diferenças entre gentes vivas e mortas.

Logo, esse é, sim, um tipo de alma, apesar de muito rudimentar. E já está lá incomodando desde a concepção. O que faz as células se dividirem em mitose, meiose e toda aquela porcaria que a gente estuda no segundo grau?

Os centros que cuidam de respiração (não por acaso Pneuma era o princípio anímico para os grego antigos) e batimento cardíaco no bulbo, o controle de temperatura, apetite e sede do hipotálamo, a modulação dos ciclos de sono (ciclo circadiano) em que participam a glândula pineal e a formação reticular – esta última também filtrando o input de informações que sobe até o córtex cerebral… tudo isso é parte de Nefesh.

Quando algum imbecil encosta mão em algo pelando, se espeta ou leva um choque, não dá para esperar a informação chegar no cérebro, ser processada e voltar. Esse tempo iria manter o corpo em exposição à ameaça e agravar a lesão. Assim que ela chega na coluna vertebral, ela já recebe uma ordem padronizada de ‘tira a mão dessa porra!’, que chamamos de reflexo de retirada. Isso é Nephesh. A contração da pupila mediante estímulo luminoso, Nephesh. O chute que a gente dá quando o médico bate no joelho, Nephesh.

Aliás, quanto mais estudamos todos esses processos, mais vemos que não somos os donos do nosso corpo no sentido de ‘controlarmos’ tudo. Agora, enquanto eu escrevo esse texto, meu corpo faz micromovimentos para que minha bunda não fique achatada sob o peso do meu corpo e apodreça por falta de sangue, e eu nem percebo.

Na balada, quando chega um boy magia para falar com a menina, ela não percebe que ficou mais rosadinha na bochecha (e outros lugares), ou que sua pupila se dilatou, e nem ele percebeu que fez uma pequena correção em sua postura para ficar mais dominante. Nenhum dos dois percebeu conscientemente os feromônios, mas ambos já ‘intuem’ que hoje tem!

Isso é Nephesh. E muito mais. Isso é a manifestação do Uno (divindade, não jogo de cartas), em uma cascata infinita de progressivas modulações e densificações energéticas, para fazer com que essa bola de carne e pêlos que chamamos de corpo possa continuar vivendo e vendo novela.

Isso, dentro de nós, trabalha em uníssono com o que está fora de nós, para produzir algo a que chamamos de homeostase, que quer dizer que o corpo está de boas.

Esses impulsos de Nephesh que estão dentro de nós são a forma mais básica de harmonização com o todo, que pode ser entendido enquanto unidade biológica isolada, ou como bilhões de células que trabalham juntas, ou como um organismo em interação com um bioma, ambos compondo uma unidade. E esta unidade arbitrariamente escolhida é somente um recorte da unidade total do universo, a que chamamos de Assiah, ou o ‘dimensão física’.

PARLA, PARLA!

Lembra da pergunta em algum momento do texto acima? Como se mede a alma? Bem… se mede em microamperes, micro-ohms, micro isto, micro aquilo, neurotransmissores, neuromoduladores – e tudo mais que possa servir para fazer rodar a carcaça de Guph, mas não se pode medir esse trem em uma única unidade. Tipo o conceito de Qi, que vai tomando formas diversas na MTC, Feng Shui e Taoísmo…

Então a alma é física, ao menos em alguma medida, assim como, segundo a lengalenga pseudofísica acima, o corpo é não-físico e vazio em alguma medida.

E da mesma forma, as outras partes do que entendemos popularmente como alma podem ser entendidas como se manifestando através do físico; não porque elas sejam, de fato, estritamente fenômenos físicos, mas porque é dessa forma em particular que o todo manifesta dentro de nosso corpo nessa dimensão.

Assim, reitero, somos também físicos, porém não exclusivamente.

Ruach é tipicamente definida como a manifestação da racionalidade na natureza humana, entendida como o reflexo no microcosmo-homem de Yetzirah do macrocosmo.

No tarot de tradição Maçônica, Rosacruz, Golden Dawn e Thelemita, Ruach vem associada ao elemento ar, à letra hebraica VAV e à espada/adaga como arma da magia cerimonial.

Como vemos no Macrocosmo com a relação entre Assiah e Yetzirah, em que há uma abstração de conceitos que aumenta do primeiro para o segundo, a relação entre o bovino Nephesh e o analítico Ruach também é de progressiva abstração. Assim como é acima, é abaixo.

Etimologicamente, inclusive, esses adjetivos são curiosos, já que ‘bovino’, além de descrever a função vegetativa de Nephesh ainda remete à Touro, que é a manifestação fixa do elemento Terra, pertencente a Assiah. O adjetivo empregado para Ruach, por outro lado, ‘analítico’, significa separar em partes, o que é perfeitamente cabível para a espada e a adaga. Não só a atribuição de Ruach é concernente à análise, mas também a elaboração de planos à partir das informações coletadas desse processo, outra característica atribuída ao naipe de ar no tarot.

Poderia tentar seguir pormenorizadamente uma correlação com habilidades específicas da psiquê humana, mas espero que ao esmiuçar a relação de Nephesh com os processos fisiológicos tenha sido possível observar a idéia geral, embora seja um exercício muito interessante de pensar, por exemplo, em toda a separação dos diferentes sensores visuais e circuitos mais básicos envolvidos, que, por exemplo, detectam movimentos em determinada direção somente, e como essas pequenas partes são direcionadas, desde os receptores, através do nervo óptico até a área occipital, onde há zonas responsáveis por compilações desses dados e comparação com a base de dados já existente em outras áreas do cérebro na região temporal, e como esse conteúdo é então direcionado para a área prefrontal, onde planos e decisões são formulados baseados nesta informação que chega, em um processo que me lembra muitíssimo a compilação dos relatórios de performance emitidos pela contabilidade, produção, expedição, financeiro, jurídico e todos os outros, que chegam ao CEO e ao conselho que delibera para tomar decisões. Já que estamos na era do armazenamento de dados em nuvem, acho que vale pensar em Ruach também como essa nuvem…

O REI ESTÁ NU!

Ainda sobre Ruach, vale à pena mencionar que há, em nossa sociedade e no indivíduo, a noção de que esta é a parte mais importante, a analítica, e que todo o restante é submisso ao controle do ‘racional’. Via de regra, ha uma errônea identificação do ‘eu’ com Ruach, no melhor estilo cartesiano.

Contudo, como vimos em todos os processos autonômicos do corpo, por exemplo, essa concepção não poderia estar mais afastada da verdade. Tente dialogar racionalmente com o seu corpo para não sentir tesão na sua prima que te deixa louco, e verá o quanto é ridícula essa abordagem.

Algo digno de nota é como, na sequência do TETRAGRAMMATON, o ar vem abaixo da água, e o racional vem abaixo do emocional. Isto é muitíssimo relevante inclusive para a práxis mágica, já que mostra a importância de submeter Ruach ao Uno por via de Neshamah, e não deixar que Ruach ache que está no controle. Como disse a véia loca da Blavatsky, a mente é ótima serva, mas péssima mestra.

Em grande parte, é para isso que serve toda aquela baboseira de circunvolução, nomes sagrados em línguas bárbaras, cores e toda essa putaria cerimonial de templo, porque, enquanto Ruach estiver ocupada com isso, ela está sendo conduzida por Neshamah. O importante, nesse sentido, é que isso evita a hiper-racionalização durante o ritual mágicko. A pior coisa possível é ficar pensando em ‘por quês’ durante o vudu.

“28. Agora uma maldição sobre Porque e sua parentela!
29. Seja Porque amaldiçoado para sempre!
30. Se Vontade para e clama Por quê? invocando Porque, então Vontade para e nada faz.”

Liber Al vel Legis II

Note que essa impotência do racional diante do emocional é uma das questões mais importantes inclusive para o ambiente terapêutico.

Desde o começo do século XX com a Psicanálise Freudiana já se sabe que racionalizar a inquietação não é de grande valia, já que, se assim o fosse, o maldito do psicanalista poderia simplesmente dizer para o camarada o que há de errado e rolaria algo do tipo um ‘uh, sério mesmo?’ e zás! Não precisava gastar até as cuecas para pagar as horas caríssimas de um bom analista, ou ficar sofrendo durante anos.

Quantos nóia, pudins-de-cachaça ou mulherengos nós não conhecemos, que com aquele olhar de sinceridade juram ‘por deus’ que jamais falharão novamente, para em dois ou três dias estarem fudendo suas vidas e a de seus entes queridos como se não houvesse amanhã…

Evidencia-se assim a impotência de Ruach diante do controle de Neshamah, ou em outros termos, a importância do sistema límbico na motivação e modulação do processo analítico e cognitivo.

E mais uma vez, quando trazido o contexto da magia cerimonial, faz um sentido louco que haja sinos no templo, ogãs no terreiro e aquele gritaredo insano na igreja de fundo de quintal pentecostais. São mecanismos de tentar conectar o maluco com Neshamah, dando um balão em Ruach. Essa também é uma das justificativas de usar psicoativos para a quimignose dos xamãs, prática quase ubíqua na história da humanidade.

EU SOU A VOZ QUE CLAMA NO DESERTO

Mas é interessante pensar que há coisas que são emocionalmente devastadoras, e que são racionalmente entendidas como sendo indesejáveis, que fodem com o dia a dia, e ainda assim são uma busca insaciável, como uma ‘farpa na alma’. Ou seja, física, intelectual e emocionalmente elas não são justificadas nem para o próprio indivíduo.

É que existe uma coisa acima ainda desse nível emocional.

Contudo, assim como acontece na Árvore da Vida, em que a coisa toda fica abstrata demais para a gente colocar os pingos nos ‘i’s das supernas e inventa um daat marido-de-aluguel para tentar dar uma ajeitada – um constuto teórico instrumental para auxiliar na apreensão parcial de algo tão inacessível por visa normais da razão – a idéia de Yechida e Chiah acaba ficando tão abstrata que basicamente qualquer coisa que se fale sobre isso, tanto em termos cabalísticos quanto tentando colocar uma ponte com a ciência, vai resultar na mesma frustração e furada.

O exemplo que me ocorre para ilustrar essa inquietação mais íntima é o processo de manifestação de uma identidade de gênero distinta do corpo em que a pessoa nasceu, por exemplo. Um trans vai contra o mundo porque só assim ele consegue a paz consigo, apesar de armar uma guerra com a sociedade. Ou um profissional de sucesso – com mulheres, dinheiro e vida perfeita de comercial de margarina, e que não é feliz porque está desconectado dessa fagula divina mais profunda. Não importa o que você faça ou deixe de fazer, a sensação de crise existencial vai surgir se você não conseguir se conectar com isto. Mais especificamente, penso em Lovecraft ou Tesla, que tiveram uma vida lixo, mas essa foi a única forma que encontraram para manifestar o que tinha de mais divino em seu íntimo. Ou metaforicamente expresso na trucada que Aquiles leva de sua mãe, a deusa Tétis.

“Se for a Tróia a glória será sua, vão escrever histórias sobre você por milhares de anos, o mundo se lembrará do seu nome.”

Daí o sujeito larga uma vidona de rockstar e vai lá para morrer igual a um trouxa, mas isto é a quest que ele tinha que cumprir para poder se alinhar com seu íntimo.

VOLTAM AS BORBOLETAS AO SONHO DO GENERAL

Última brisa antes de concluir. Voltamos ao começo do texto e às borboletas de Zagorsk, para falar ainda de outra questão concernenta à relação corpo-alma.

Não que tenhamos (necessariamente) algum defeito nos nossos sentidos extrafísicos. Mas já pararam para pensar que a pessoa mediana – por falta de adestramento das habilidades de inteligência emocional, auto-observação, concentração, relaxamento, pranayama e todas essas coisitas mais básicas que a gente aprende a fazer quando tá iniciando a jornada esotérica – não passa de uma das crianças do documentário, que tenta entender o mundo à sua volta sem fazer uso dos sentidos em sua plenitude, tentando organizar o mundo espiritual a sua volta sem poder contar com outras fontes de informação que não a sua sofisticadíssima mente cultivada pela TV globo e pelo cristianismo conservador?

Outra questão que também vale a pena apontar, antes de terminar o texto, é que, uma vez que temos o corpo como veículo para nossa manifestação em Assiah, é também vital que tenhamos cada vez maior entendimento das leis que regem essa esfera de nossa vida, para podermos administrar melhor os recursos que a biologia e a natureza nos emprestam.

Quanto melhor entendermos, por exemplo, o funcionamento do sistema nervoso central e a maneira que este processa a informação que circula em nossa caixola, ou diferentes teorias de desenvolvimento da psicologia, melhor vamos poder discernir até que ponto os resultados obtidos em ritual são, de fato, mágickos, e qual a medida de nossas autoilusões.

Isto me traz à mente dois pontos muito importantes no que concerne a interface entre o ocultismo e a psicologia.

Primeiramente o comportamento supersticioso. Obviamente estamos sujeitos a esse efeito em um primeiro momento de aplicação dos princípios cabalísticos e mágickos. Entretanto, como bem nos lembra B. F. Skinner, superstição é a atribuição errada de causalidade, ou como diria um professor meu de behaviorismo radical, contiguidade é diferente de causalidade.

Não é porque foi possível observar dois fenômenos ocorrendo contiguamente (juntos, ou um depois do outro), que um tem relação com o outro ou tenha causado o outro.

Aliás, a obra de Skinner aponta até mesmo para a possibilidade de criarmos o comportamento supersticioso em pombos. Já pensou que comédia?

O que isso tem a ver com a aplicação da magia na vida? Tudo.

Somente podemos atribuir relação das variáveis identificadas em um ritual mágico com o efeito obtido nesse ritual mediante estudo longitudinal e verificação sistemática através da repetição e isolamento de variáveis. Isso demonstra a necessidade de diligência e um registro acurado no diário mágico, para evitar que sejamos enganados por nossos delírios e erros de interpretação e método.

E outra questão importante no que concerne o entendimento de nossa estrutura biológica e psicológica é saber quais as nossas tendências de comportamento, para que possamos agir mais facilmente sobre nós mesmos e o ambiente e obtermos mais eficiência no controle do nosso universo. Novamente, faz-se mister a porra do diário!

“Deus não costuma interferir arbitrariamente no curso da natureza, mas regê-la dentro de suas leis. Que o adepto não faça o contrário.” Aleister Crowley

E isso quer dizer, por exemplo, entender que temos uma tendência natural a buscar sentido em tudo ao nosso redor, pois isso, de uma perspectiva evolucionista, teve valor de sobrevivência para os nossos antepassados e acabou sendo um comportamento selecionado filogeneticamente; estamos o tempo todo buscando relações entre acontecimentos e coisas, objetos e sentimentos.

NEM TODA SARÇA ARDENTE É UM YAHWEH

Se entendemos isto, recebemos esses ‘insights’ de sabedoria com um pinguinho a mais de parcimônia, para evitar ficarmos iguais àqueles malucos com chapéu de papel alumínio que vêm revelação divina em tudo – tipo aquelas véia que enxergam Jesus na mancha do vidro ou na torrada, ou aqueles pirados que vemos nos filmes como o personagem de Jim Carrey no filme ‘23’ (2007), ou de Russel Crowe em ‘Uma mente brilhante’ (2002).

Ligando isso com cabala agora, vou apanhar de tudo que é ocultista no mundo! E da judeuzada!

Sabe aqueles exercícios de interpretação do Zohar ou de qualquer outro texto cabalístico fodão, usando-se de técnicas de Gematria, Temurah e essas piras?

EXATAMENTE!

Não é porque você percebe as coincidências entre a morte do J. F. Kennedy e do Abraham Lincoln – que realmente são assombrosas! – que há um plano illuminati por trás da morte dos dois (talvez haja, mas não é o ponto…).

Então, não é porque há uma relação de valores gemátricos entre, digamos, ÁGAPE e THELEMA que uma coisa tem de obrigatoriamente ter a ver com a outra. Pode ser só coisa da sua cabeça. Além do que, todo thelemita é um belo de um filho da puta, então fica bem complicado achar sentido nisso. Disclaimer: sou thelemita, então não venham de mimimi.

Qual é a diferença, olhando de fora, de ficar esfregando o nariz no Sepher Sephiroth (Liber 500) ou no Gênesis, para achar relações gemátricas entre as palavras e frases, e o mito do futebol Mário Jorge Lobo Zagallo, que conseguia achar o número 13 em tudo que ele quisesse?

Enfim… o propósito deste texto era uma elaboração das relações possíveis entre a ciência e a cabala no que concerne a estrutura da alma, com a ambição de contribuir para possíveis avanços na prática mágica a partir de um avanço no entendimento do sistema psicobiológico.

Dado o meu entendimento capenga de ambos os campos, não era de se esperar grande coisa, mas é o que tem para hoje, já que não há literatura dessa natureza que eu conheça.

Exercício de futilidade, mas essa é a brasa que queima na minha alma, e escrevo, não para responder algo necessariamente, mas para cavar mais fundo a cova em que me deitarei, exausto, porém realizado.

Amor é a Lei. Amor sob Vontade.

por Antonio Dissenha


Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.

Deixe um comentário


Apoie. Faça parte do Problema.