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Segredos e Conspirações

O Futuro Anterior (O Despertar dos Mágicos)

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Excerto de o Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier

Como poderia um homem inteligente, hoje em dia, não se sentir apressado? “Levante-se, senhor, pois tem grandes coisas a fazer!” Mas é necessário levantarmo-nos cada dia um pouco mais cedo. Acelerai os vossos aparelhos de ver, ouvir, pensar, recordar, imaginar. O nosso melhor leitor, para nós o mais precioso, devorar-nos-á em duas ou três horas. Conheço alguns homens que lêem com o máximo proveito cem páginas de matemática, filosofia, história ou arqueologia em vinte minutos. Os actores aprendem a “colocar” a voz. Quem nos ensinará a “colocar” a atenção? Há uma altura a partir da qual tudo muda de velocidade. Eu não sou neste trabalho, um desses escritores que desejam conservar o leitor a seu lado o mais tempo possível, entretendo-o. Nada para o sono, tudo para o despertar. Despachem-se, escolham e partam! Lá fora há uma ocupação. Se for preciso, saltem capítulos, comecem por onde lhes apetecer, leiam em diagonal: isto é um instrumento com múltiplas aplicações, como a faca dos campistas. Por exemplo, se receiam chegar tarde demais ao âmago do assunto que lhes interessa, saltem estas primeiras páginas. Saibam apenas que elas dão a conhecer a forma como o século XIX fechou as portas à realidade fantástica do homem, do mundo, do Universo; a maneira como o século xx as reabre, e como as nossas leis morais, as nossas filosofias e a nossa sociologia, que deviam ser contemporâneas do futuro, não o são, continuando acorrentadas a esse caduco século xIx. Não foi lançada a ponte entre a época das espingardas e a dos foguetões, mas pensa-se nisso. É para que se pense ainda mais que nós escrevemos. Apressados como estamos, não é sobre o passado que choramos, é sobre o presente, e com impaciência. Pronto. Já sabem o bastante para poderem folhear rapidamente este início se for necessário, e ler mais adiante.

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A história esqueceu-se de o citar, o que é pena. Era director do Patent Office americano e foi ele que deu o sinal de alarme. Em 1875 pediu a sua demissão ao Secretário do Estado do Comércio. “Ficar para quê? – dizia ele -, já não há mais nada para inventar.”

Doze anos depois, em 1877, o ilustre químico Marcellin Berthelot escrevia: “De futuro o Universo não terá mistério.” Para obter do mundo uma imagem coerente, a ciência libertara-se totalmente. A perfeição pela omissão. A matéria era constituída por um certo número de elementos impossíveis de transformar uns nos outros. Mas enquanto Berthelot rebatia no seu sábio trabalho as fantasias alquímicas, os elementos, que o ignoravam, continuavam a sofrer alterações sob o efeito da radioactividade natural. Em 1852, o fenómeno fora descrito por Reichenbach, mas imediatamente rejeitado. Certos trabalhos, com data de 1870, evo cavam um quarto estado da matéria” constatado por ocasião da descarga dos gases. Mas era necessário recalcar qualquer mistério. Recalcamento: é a palavra. Há que fazer a psicanálise de uma certa forma de pensar do século XIX.

Um alemão, cujo nome era Zeppelin, de regresso ao seu país após ter combatido nas fileiras sulistas, tentou interessar alguns industriais pela direcção dos balões. Desgraçado! Não sabe então que há três assuntos a respeito dos quais a Academia das Ciências francesa já não admite que se fale: a quadratura do círculo, o túnel sob a Mancha e a direcção dos balões. Outro alemão, Herman Gaswindt, propunha construir máquinas voadoras mais pesadas do que o ar, propulsionadas por foguetões. Sobre o quinto manuscrito, o ministro da guerra alemão, depois de ouvir a opinião dos técnicos, escreveu, com a suavidade da sua raça e do seu cargo: “Quando será que esta ave agoirenta morrerá de vez!”

Os Russos, esses tinham-se desembaraçado de outra ave agoirenta, Kibaltchich, igualmente partidário das máquinas voadoras com foguetões. Pelotão de execução. É verdade que Kibaltchich se servira das suas qualidades de técnico para fabricar uma bomba que acabava de reduzir a pedacinhos o imperador Alexandre II. Mas não havia motivos para expor no pelourinho o professor Langley, do Smithsonian Institute americano, o qual propunha máquinas voadoras accionadas pelos motores de explosão de fabrico muito recente. Desonraram-no, arruinaram-no, expulsaram-no do Smithsonian. O professor Simon Newcomb demonstrou matematicamente a impossibilidade do mais pesado que o ar. Alguns meses antes da morte de Langley, que morria de desgosto, um garoto inglês regressou um dia da escola a soluçar. Mostrara aos camaradas a fotografia de uma “maquette”, que Langley acabava de enviar a seu pai. Proclamara que os homens acabariam por voar. Os camaradas tinham feito troça. E o professor dissera: “Meu amigo, será caso que o seu pai seja um idiota?” O pressuposto idiota chamava-se Herbert George Wells.

Todas as portas se iam fechando com um ruído seco. De facto, apenas restava pedir a demissão e o Sr. Brunetière podia falar tranquilamente, em 1895, de “A falência da ciência”. O célebre professor Lippmann, nessa mesma altura, declarava a um dos seus alunos que a Física estava concluída, classificada arrumada, completa, e que seria melhor enveredar por outros caminhos. O aluno chamava-se Helbronner e viria a ser o maior professor de química-física da Europa, e a fazer notáveis descobertas relativas ao ar líquido, ao ultravioleta e aos metais coloidais. Moissan, químico genial, era obrigado à “autocrítica” e teria de declarar publicamente que não fabricara diamantes, que se tratava de um erro experimental. Inútil procurar mais longe: as maravilhas do século eram a máquina a vapor e a lâmpada de gás, jamais a humanidade faria uma invenção mais importante.

A electricidade? Simples curiosidade técnica. Um inglês louco, Maxwell, pretendera que por meio da electricidade se poderiam produzir raios luminosos invisíveis: uma brincadeira. Alguns anos mais tarde, Ambrose Bierce poderia escrever no seu Dicionário do Diabo: “Não se sabe o que é a electricidade, mas em todo o caso ela ilumina melhor do que um cavalo-vapor e é mais veloz do que um bico de gás.”

Quanto à energia, era uma entidade completamente independente da matéria, e sem o menor mistério. Era composta por fluidos. Os fluidos desempenhavam todas as funções, deixavam-se descrever por equações de grande beleza formal e satisfaziam o pensamento: fluido eléctrico, luminoso, calorífico, etc. Uma progressão contínua e clara: a matéria com os seus três estados (sólido, líquido, gasoso) e os diversos fluidos energéticos, mais subtis ainda do que os gases. Bastava pôr de parte como fantasia filosófica as novas teorias do átomo para conservar uma imagem “científica” do mundo. Estava-se muito longe dos grãos de energia de Planck e Einstein.

O alemão Clausius demonstrava que nenhuma fonte de energia além do fogo era concebível. E a energia, se se conserva em quantidade, degrada-se em qualidade. O Universo foi construído um belo dia como um relógio. Parará quando a mola estiver frouxa. Nada a esperar, não há surpresas. Neste universo de destino previsível, a vida surgira por acaso e evoluíra simplesmente devido às regras das selecções naturais. No pináculo definitivo desta evolução: o homem. Um conjunto mecânico e químico, dotado de uma ilusão: a consciência. Sob o efeito dessa ilusão, o homem inventara o espaço e o tempo: imagens do espírito. Se se tivesse dito a um investigador oficial do século xIx que a física absorveria um dia o espaço e o tempo e estudaria experimentalmente a curvatura do espaço e a contracção do tempo, ele chamaria a polícia. O espaço e o tempo não têm qualquer existência real. São divagações de matemático e temas de reflexão gratuita para filósofos. O homem não poderia ter qualquer relação com essas grandezas. A despeito dos trabalhos de Charcot, de Breuer, de Hyslop, a ideia de percepção extra-sensorial ou extratemporal deve ser rejeitada com desprezo. Não há incógnitas no Universo, não há incógnitas no homem. Sábio meu filho, tem juízo!

Era completamente inútil tentar uma exploração do mundo interior, mas no entanto havia um facto que criava certas dificuldades na engrenagem da simplificação: falava-se muito em hipnose. O ingénuo Flammarion, o duvidoso Edgar Poe, o suspeito H. G. Wells interessavam-se pelo fenómeno. Ora, por muito fantástico que isto possa parecer, o século xIx oficial demonstrou que a hipnose não existia. O paciente tem tendência para mentir, para simular a fim de agradar ao hipnotizador. É exacto. Mas, desde Freud e Morton Price, sabe-se que a personalidade pode ser dividida. A partir de críticas exactas, esse século conseguiu Criar uma mitologia negativa, eliminando o menor traço de incógnita no homem, rejeitando qualquer suspeita de mistério.

A biologia também estava completa. O Sr. Claude Bernard esgotara-lhe as possibilidades e concluíra-se que o cérebro segrega o pensamento, como o fígado segrega a bílis. Sem dúvida, acabaria por ser possível revelar essa secreção e escrever-lhe a fórmula química de acordo com as belas disposições em hexágonos imortalizadas pelo Sr. Berthelot. Quando se soubesse de que forma os hexágonos de carbono se associam para criar o espírito, estaria virada a última página. Que nos deixem trabalhar seriamente! Os doidos que vão para o manicómio! Numa bela manhã de 1898, um senhor grave deu ordem à governanta para não mais permitir que seus filhos lessem Jules Verne.

Aquelas ideias falsas deformariam os jovens espíritos. O senhor grave chamava-se Édouard Branly. Acabava de tomar a decisão de renunciar às suas experiências sem interesse sobre as ondas para se transformar em médico de bairro.

O sábio deve abdicar. Mas deve igualmente reduzir a pó os “aventureiros” quer dizer, as pessoas que pensam, imaginam, sonham. Berthelot ataca os filósofos “que lutam contra o seu próprio fantasma na arena solitária da lógica abstracta” (eis uma boa descrição de Einstein, por exemplo). E Claude Bernard declara: “Um homem que descobre o mais pequeno facto presta maiores serviços do que o maior filósofo do Mundo.” A ciência não podia ser senão experimental. Fora dela não havia esperança. Fechemos as portas. Jamais alguém poderá igualar os gigantes que inventaram a máquina a vapor.

Neste Universo organizado, compreensível, e aliás condenado, o homem devia manter-se no seu devido lugar de epifenómeno. Fora a utopia e fora a esperança. O combustível fóssil esgotar-se-á dentro de alguns séculos, e então será o fim, devido ao frio e à fome. Jamais o homem voará, jamais ele viajará pelo espaço. Jamais também visitará o fundo dos mares. Estranha proibição essa da visita aos abismos marinhos! Nada impedia o século xIx, em relação ao estado da técnica, de construir o batiscafo do professor Piccard. Apenas uma enorme timidez, apenas a preocupação, para o homem, de se “manter no seu lugar”.

Turpin, que inventou a melinite, foi imediatamente internado num manicómio. Os inventores dos motores de explosão sentem-se desencorajados e tenta-se provar que as máquinas eléctricas não passam de formas do movimento perpétuo. É a época dos grandes inventores isolados, revoltados, escondidos. Hertz escreve à Câmara do Comércio de Dresde dizendo que é necessário desencorajar as pesquisas relativas às ondas “hertzianas”: não é possível a menor aplicação prática. Os peritos de Napoleão III provam que o dínamo Gramme nunca girará. Quanto aos primeiros automóveis, ao submarino, ao dirigível, à luz eléctrica (uma aldrabice desse maldito Edison!), as doutas academias não se incomodam. A esse respeito há uma na imortal. É o relato da recepção do fonógrafo na Academia Ciências de Paris: “Assim que o aparelho emitiu algumas palavras, o Secretário Perpétuo precipita-se sobre o impostor e aperta-lhe a garganta com pulso de ferro. – “Vocês vão ver!” disse aos seus colegas. Mas, perante o assombro geral, o aparelho continuou a emitir sons.”

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equipam-se em segredo para preparar a mais formidável revolução dos conhecimentos que o homem “histórico” presenciou. Mas, de momento, todos os caminhos estão vedados. Vedados à frente e atrás. Ocultam-se os fósseis de seres pré-humanos que se começam a descobrir em quantidade. Não provou o grande Heinrich Helmholtz que o Sol extrai energia da própria contracção, isto é, da única força, juntamente com combustão, que existe no Universo? E não demonstram os seus séculos que nos separam do nascimento do Sol, quanto muito, a centena de milhares de anos? Como teria podido produzir-se uma longa evolução? E, aliás, quem descobrirá jamais a forma de datar o passado do mundo? Neste curto espaço entre dois nadas, nós, os epifenómenos, mantenhamo-nos graves. Factos apenas factos!

Dado que a pesquisa sobre a matéria e a energia não é de forma nenhuma encorajada, os mais curiosos atiram-se para um beco sem saída: o éter. É o meio penetrando toda a matéria e servindo de suporte às ondas luminosas e electromagnéticas. Ao mesmo tempo infinitamente sólido e infinitamente subtil. Ird Rayleigh, que representa no final do século XIX a ciência oficial inglesa em todo o seu esplendor, elabora uma teoria sobre o éter giroscópico. Um éter composto por múltiplos iões girando em todos os sentidos e reagindo entre si. Aldous Huxley escreverá mais tarde que “se uma obra humana pode dar a ideia da fealdade absoluta, a teoria de Lord Rayleigh

É na especulação sobre o éter que estão comprometidas as inteligências disponíveis, no despontar do século xx. Em 1898 produz se a catástrofe: a experiência de Michelson e Morley destrói a hipótese do éter. Toda a obra de Henri Poincaré vai testemunhar esse desmoronamento. Poincaré, matemático de génio, sentia sobre ele o enorme peso desse século xIx carcereiro e carrasco do fantástico. Teria descoberto a relatividade se o ousasse. Mas não ousou. La Valeur de la Science, La Sczence et I Hypothèse são livros de desespero e demissão. Para ele, a hipótese científica. Nunca é autêntica, não pode ser senão útil. É como uma esta lagem espanhola: só se encontra aquilo que para lá se leva. Segundo Poincaré, se o Universo se contraísse um milhão de vezes, e nós com ele, não nos aperceberíamos de nada. Especulações inúteis, visto estarem separadas de toda a realidade sensível.

O argumento foi citado até ao princípio do nosso século como modelo de profundidade. Até ao dia em que um engenheiro prático observou que pelo menos o salsicheiro notá-lo-ia. Pois todos os presuntos cairiam ao chão. O peso de um presunto é proporcional ao seu volume, mas a força de um cordel apenas é proporcional à sua secção. Que o Universo se contraia apenas um milionésimo, e não haverá mais presuntos no tecto! Pobre, grande e querido Poincaré! Era esse mestre do pensamento quem escrevia: “O bom senso só por si é suficiente para nos dizer que a destruição de uma cidade por meio da desintegração de meio quilo de metal é uma impossibilidade evidente.”

Carácter limitado da estrutura física do Universo, inexistência dos átomos, fracos recursos da energia fundamental, incapacidade de uma fórmula matemática dar mais do que aquilo que contém, vacuidade da intuição, estreiteza e mecanicidade absoluta do mundo interior do homem: tal é o espírito nas ciências, e esse espírito estende-se a tudo, cria o clima no qual mergulha toda a inteligência desse século. Século inferior? Não. Grande mas estreito. Um anão que foi esticado.

Bruscamente, as portas cuidadosamente fechadas pelo século XIX sobre as infinitas possibilidades do homem, da matéria, da energia, do espaço e do tempo vão cair em estilhaços. As ciências e as técnicas darão um salto formidável, e a própria natureza do conhecimento vai ser novamente discutida.

Mais do que um progresso: uma transmutação. Neste novo estado do mundo, a própria consciência deve mudar de estado. Actualmente, em todos os domínios, todas as formas da imaginação estão em movimento. Excepto nos domínios onde se desenrola a nossa vida “histórica”, obstruída, dolorosa, com a precariedade das coisas condenadas. Um fosso imenso separa o homem da aventura da humanidade, as nossas sociedades da nossa civilização. Vivemos à base de ideias, de morais, de sociologias, de filosofias e de uma psicologia que pertencem ao século XIX. Somos os nossos próprios bisavós. Contemplamos a subida dos foguetões em direcção ao céu, sentimos a terra vibrar devido a mil radiações novas, chupando o cachimbo de Thomas Graindorge. A nossa literatura, os nossos debates filosóficos, os nossos conflitos ideológicos, a nossa atitude perante a realidade, tudo isto dormita atrás das portas que acabam de ir pelos ares. Juventude! Juventude! Ide dizer a toda a gente que as entradas estão abertas e que o Exterior já penetrou!

“A marquesa tomou o seu chá às cinco horas”

Valéry dizia mais ou menos que não se pode escrever semelhantes coisas quando já se entrou no mundo das ideias, mil vezes mais im ortante, romanesco, mil vezes mais real do que o mundo do amor e dos sentidos. “António amava Maria que amava Paulo eles foram muito in el 1 e tiveram uma série de questiúnculas.” Uma literatura intei pitações de amibas e de infusórios, quando o Pensamento arrasta tragédias e dramas gigantescos, transmuda seres, altera civilizações, mobiliza multidões imensas. Sonolentos prazeres, deleitação burguesa! Nós os adeptos da consciência alerta, trabalhadores da terra, sabemos onde se encontram a insignificância, a decadência, o divertimento corrupto…

O final do século xIx marca o apogeu do teatro e do romance burguês, e a geração literária de 1885 reconhecerá durante algum tempo como mestres Anatole France e Paul Bourget. Ora, nessa mesma época há um drama, no domínio do conhecimento puro, muito maior e palpitante do que entre os heróis do Divorce ou do Lys Rouge. Produz-se uma súbita
embriaguês no diálogo entre materialismo e espiritualismo, ciência e religião. Do lado dos sábios, herdeiros do positivismo de Taine e Renan, formidáveis descobertas farão desmoronar as muralhas da incredubilidade. Apenas se acreditava nas realidades devidamente estabelecidas: bruscamente, é o irreal que se torna possível. Observai os factos como se se tratasse de uma intriga romanesca, com mudança repentina de personagens, intervenção dos traidores, paixões contrariadas, debate entre ilusões.

O princípio da conservação da energia era algo de sólido, de fixo, de marmóreo. E eis que o rádio produz energia sem a ir buscar a qualquer fonte. Havia certezas a respeito da identidade da luz e da electricidade: só se podiam propagar em linha recta e sem atravessar obstáculos. E eis que as ondas, os raios X atravessam os sólidos. Nos tubos de descarga, a matéria parece eclipsar-se, transformar-se em corpúsculos. A transmutação dos elementos opera-se na natureza: o rádio torna-se hélio e chumbo. Eis que a Época das Certezas se desmorona.

O mundo já não brinca ao jogo da razão! Tudo se torna então possível? De chofre, aqueles que sabem, ou julgam saber, cessam de fazer a divisão entre física e metafísica, coisa verificada e coisa sonhada. Os pilares do Templo fazem-se em nevoeiro, os clérigos de Descartes deliram. Se o princípio de conservação da energia é falso, que impediria o médium de fabricar um ectoplasma a partir de zero? Se as ondas magnéticas atravessam a terra, por que motivo não poderá um pensamento viajar? Se todos os corpos emitem forças invisíveis, porque não um corpo astral? Se há uma quarta dimensão, será ela o domínio dos espíritos?

Madame Curie, Crookes, Lodge fazem mexer as mesas. Edison tenta construir um aparelho que comunique com os mortos. Marconi, em 1901, julga ter captado mensagens dos Marcianos. Simon Newcomb acha absolutamente natural que um
médium materialize crustáceos frescos do Pacífico. Uma tempestade de fantástico irreal deita por terra os investigadores de realidades.

Mas os puros, os irredutíveis, tentam repelir essa corrente. A velha guarda do positivismo insurge-se. E, em nome da Verdade, em nome da Realidade, recusa tudo: os raios X e os ectoplasmas, os átomos e o espírito dos mortos, o quarto estado da matéria e os Marcianos.

Assim, entre o fantástico e a realidade vai desenrolar-se um combate muitas vezes absurdo, cego, desordenado, que em breve se fará sentir em todas as formas do pensamento, em todos os domínios: literário, social, filosófico, moral, estético. Mas é na ciência física que a ordem se estabelecerá, não por regressão ou amputações, mas por excesso. É na física que surge uma nova concepção. Devemo-la ao esforço de titãs como Longevin, Perrin, Einstein. Uma nova ciência aparece, menos dogmática que a antiga. Abrem-se portas sobre uma realidade diferente. Como em todo o grande romance, não há no fundo nem bons nem maus e todos os heróis têm razão se a atenção do romancista se tiver colocado numa dimensão complementar onde os destinos se tornam a encontrar, confundindo-se, elevados em conjunto a um grau superior.

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Onde estamos nós actualmente? Abriram-se portas em quase todos os edifícios científicos, mas o edifício da física de hoje em diante quase que não tem paredes: é uma catedral cheia de vitrais onde se reflectem os clarões de outro mundo, infinitamente próximo.

A matéria revelou-se tão rica, se não mais rica em possibilidades do que o espírito. Ela contém uma energia incalculável, é susceptível de transformações infinitas, têm recursos insuspeitáveis. O termo “materialista”, segundo o significado do século xix, perdeu todo o sentido, da mesma forma que o termo “racionalista”.

A lógica do “bom senso” já não existe. Na física actual, uma proposição pode ser simultaneamente verdadeira e falsa. A. B. já não é igual a B. A.. Uma entidade pode ser a um tempo contínua e descontínua. Já não nos poderíamos referir à física para condenar tal ou tal aspecto do possível 1.

Peguem numa folha de papel. Façam-lhe dois buracos pouco distanciados. Aos olhos do senso comum, é evidente que um objecto suficientemente pequeno para passar através desses buracos passará quer por um, quer por outro. Aos olhos do senso comum um electrão é um objecto. Possui um peso definido, produz um clarão luminoso quando impressiona um écran de televisão, um choque quando atinge um microfone. Temos portanto

Um dos sinais mais espantosos da abertura que se produz no domínio da física é a introdução daquilo a que se chama “o número quântico de estranheza”. Eis, por alto, de que se trata. No princípio do século xIx, pensava-se ingenuamente que dois números, o máximo três, seriam suficientes para definir uma partícula. Esse número seria a sua massa, a sua carga eléctrica e o seu momento magnético. A verdade estava longe de ser tão simples. Para descrever completamente uma partícula foi necessário acrescentar uma importância intraduzível em palavras e a que se chamava spin. A princípio julgou-se que essa importância correspondia a um período da rotação da partícula sobre si própria, qualquer coisa que para o planeta Terra corresponderia ao período de vinte e quatro horas, regulando a alternância dos dias e das noites. Chegou-se à conclusão de que nenhuma explicação simplista deste género poderia manter-se de pé. O spin era simplesmente o spin, uma quantidade de energia ligada à partícula, apresentando-se matematicamente como uma rotação sem que gire seja o que for na partícula.

Profundos trabalhos, devidos sobretudo ao Professor Louis de Broglie, só parcialmente conseguiram explicar o mistério do spin. Mas, bruscamente, descobriu-se que entre as três partículas conhecidas: protões, electrões, neutrões (e as suas imagens no espelho, antiprotão negativo, positrão, antineutrão), existia mais uma trintena de outras partículas. Os raios cósmicos, esses grandes aceleradores, produziam-nas em grandes quantidades. Ora, para descrever essas partículas, os quatro números habituais, massa, carga, momento magnético, spán, já não eram suficientes. Era necessário criar um quinto número, talvez um sexto, e assim indefinidamente. E foi de uma forma absolutamente natural que os físicos chamáram a essas novas importâncias “números quânticos de estranheza”. Esta saudação ao anjo do Bizarro tem qualquer coisa de imensamente poético. Como muitas outras expressões da física moderna: “Luz Interdita”, “Algures Absoluto”, o “número quântico de estranheza” prolonga-se para além da física, e tem ligações com as profundezas do espírito humano. O nosso objecto suficientemente pequeno para passar por um dos dois buracos. Ora, a observação pelo microscópio electrónico ensinar-nos-á que o electrão passou simultaneamente pelos dois buracos. Como?! Se passou por um, não pode ter passado ao mesmo tempo pelo outro! Mas a verdade é que ele passou por um e por outro. É absurdo, mas é experimental. Das tentativas de explicações nasceram diversas doutrinas, em particular a mecânica ondulatória. Mas a mecânica ondulatória não chega no entanto para explicar totalmente um facto semelhante, que se mantém para além das nossas possibilidades de compreensão, a qual só poderá funcionar através de um sim ou um não, A ou B. Era a própria estrutura do nosso entendimento que seria necessário modificar, para que se pudesse compreender. A nossa filosofia exige tese e antitese. É preciso acreditar que na filosofia do electrão, tese a antitese são simultaneamente autênticas. Parecerá absurdo o que dizemos? O electrão parece obedecer a leis, e a televisão, por exemplo, é uma realidade. O electrão existe ou não? Aquilo a que a natureza chama existir não tem existência a nossos olhos. O electrão faz parte do ser ou do nada 1? Eis uma pergunta completamente vazia de sentido. Assim desaparecem, devido à acção enérgica do conhecimento, os nossos habituais métodos de pensamento e as filosofias literárias, provenientes de uma visão nula dos factos.

A Terra está ligada ao Universo, o homem não está em contacto apenas com o planeta em que habita. Os raios cósmicos,
a radioastronomia, os trabalhos de física teórica revelam contactos com a realidade do cosmos. Já não vivemos num
mundo fechado: um espírito verdadeiramente testemunha da sua época não o poderia ignorar. Nessas condições, de que forma pode o pensamento, no plano social, por exemplo, continuar preocupado com problemas que nem sequer são planetários, mas estritamente regionais, provinciais? E como pode a nossa psicologia, tal como ela se exprime no romance, manter-se tão fechada, reduzida aos movimentos infraconscientes da sensualidade e da sentimentalidade? Enquanto milhares de seres civilizados abrem livros, vão ao cinema ou ao teatro para saber de que maneira Françoise se sentirá impressionada por René e como, por outro lado, odeia a amante do pai e se tornará lésbica por surda vingança, vários investigadores, que fazem com que os números entoem uma música celeste, perguntam a eles próprios se o espaço se contrai ou não em redor de um círculo . Nesse caso todo o Universo se tornaria acessível: haveria possibilidades, durante o espaço de uma vida humana, de atingir a estrela mais longínqua. Se tais equações fossem confirmadas, o pensamento humano seria alterado. Se o homem não está limitado a esta terra, novas interrogações se terão de fazer a respeito do sentido profundo da iniciação e dos eventuais contactos com inteligências do Exterior. Em que ponto estamos nós ainda? Em matéria de pesquisa sobre as estruturas do espaço e do tempo, as nossas noções de passado e de futuro já não servem. Ao nível da partícula, o tempo circula simultaneamente nos dois sentidos: futuro e passado. A uma velocidade extrema, limite da velocidade da luz, o que é o tempo? Estamos em Londres, em Outubro de 1944. Um foguetão V2, voando a 5000 quilómetros à hora, está sobre a cidade. Ele vai cair. Mas vai a que é que se aplica? Para os habitantes do prédio que será destruído dentro de instantes, e que apenas possuem olhos e ouvidos, o V2 vai cair. Mas para o operador de radar, que se serve de ondas que se propulsam a 300 000 quilómetros por segundo (velocidade em relação à qual o foguetão é uma lesma), a trajectória da bomba já está fixada. Ele observa: mas não pode fazer coisa alguma. À escala humana, já nada pode interceptar o instrumento de morte, nem evitar seja o que for. Para o operador o foguetão já caiu. À velocidade do radar, praticamente o tempo não corre. Os habitantes do prédio vão morrer. No super-olho do radar já estão mortos. Outro exemplo: encontram-se nos raios cósmicos, quando
estes atingem a superfície da Terra, algumas partículas, os mesões mu, cuja vida sobre o globo não ultrapassa um milionésimo de segundo. Ao fim desse milionésimo de segundo destroem-se a si próprios por meio da radioactividade. Ora essas partículas nasceram a 30 quilómetros no céu, região onde a atmosfera do nosso planeta começa a ser densa. Para transpor esses 30 quilómetros, elas já ultrapassaram o seu tempo de vida, considerado segundo a nossa escala. Mas o tempo delas não é o nosso. Elas viveram essa viagem na eternidade e apenas entraram no tempo depois de perdida a sua energia, ao chegar ao nível do mar. Prevê-se a construção de aparelhos nos quais se produziria o mesmo efeito. Criar-se-ia desta forma uma espécie de gavetas do tempo, onde estariam arrumados objectos de fraca duração, conservados na quarta dimensão. Essa gaveta seria uma argola côncava de vidro, colocada num enorme campo de energias e onde as partículas rodariam com tal velocidade que para elas o tempo teria praticamente deixado de correr. Desta forma, uma vida de um milésimo de segundo poderia ser mantida e observada durante minutos ou horas. . .

“É preciso não supor que o tempo decorrido regressa ao nada; o tempo é uno e eterno, o passado, o presente e o futuro não passam de aspectos diferentes – gravuras diferentes, se preferem – de um registo contínuo e invariável da existência perpétua”.

Para os discípulos actuais de Einstein, apenas existiria verdadeiramente um eterno presente. Era o que os antigos místicos diziam. Se o futuro já existe, a precognição também. Toda a aventura do conhecimento antecipado é orientada no sentido de uma descrição das leis da física, mas igualmente da biologia e da psicologia no continuo de quatro dimensões, quer dizer, no eterno presente. Passado, presente e futuro são. Talvez seja apenas a consciência que se desloca. Pela primeira vez, a consciência é admitida sem discussão nas equações de física teórica. Neste eterno presente, a matéria surge como um delgado fio estendido entre o passado e o futuro. Ao longo desse fio desliza a consciência humana. Por que meios é ela capaz de modificar as tensões desse fio, de forma a controlar os acontecimentos? Sabê-lo-emos um dia e então a psicologia fará parte da física.

A liberdade é provavelmente conciliável com este eterno presente. “O viajante que sobe Sena de barco sabe antecipadamente as pontes que encontrará. Nem por isso é menos senhor das suas acções, nem menos capaz de prever o que poderá acontecer inopinadamente”. Liberdade de vir a ser, no centro de uma eternidade que é. Visão dupla, admirável visão do destino humano ligado à totalidade do Universo!

Se eu pudesse recomeçar a minha vida, com certeza não escolheria ser escritor e passar os meus dias numa sociedade retardatária na qual a aventura dormita debaixo das camas, como um cão. Ser-me-ia necessária uma aventura-leão. Far-me-ia físico teórico, para viver no âmago ardente do verdadeiro romanesco.

O moderno mundo da física desmente terminantemente as filosofias do desespero e do absurdo. Ciência sem consciência
não passa de uma ruína da alma. Mas consciência sem ciência é ruína idêntica. Aquelas filosofias que atravessaram a Europa no século xx eram fantasmas do século xIx, vestidos à moda actual. Um conhecimento real, objectivo, do facto técnico e científico, que tarde ou cedo arrasta o facto social, ensina-nos que há uma direcção nítida na história humana, um acréscimo do poder do homem, uma subida do espírito geral, uma enorme forja das massas que as transforma em consciência activa, o acesso a uma civilização na qual a vida será tão superior à nossa como a nossa em relação à dos animais. Os filósofos literários disseram-nos que o homem é incapaz de compreender o mundo. Já André Maurois, em Les Nouveaux Discours du Docteur O Grady, escrevia: “Tem de admitir, no entanto, doutor, que o homem do século xIx podia acreditar que, um dia, a ciência explicaria o mundo. Renan, Berthelot, Taine também esperavam o mesmo, no princípio da sua vida. O homem do século já não tem tais esperanças. Sabe que as descobertas só fazem recuar o mistério. Quanto ao progresso, nós constatámos que os direitos do homem só provocaram fome, terror, desordem, tortura e confusão de espírito. Que esperança resta? Para que vive, doutor?” Ora o problema já não se punha desta forma. Sem que os palradores se apercebessem, o círculo fechava-se à volta do mistério e o progresso incriminado abria as portas do céu. Já não é Berthelot ou Taine a fazer previsões a respeito do futuro da humanidade, mas sim homens como Teilhard de Chardin. De um recente confronto entre sábios de diversas disciplinas sobressai a seguinte ideia: talvez um dia os derradeiros segredos das partículas elementares nos venham a ser revelados pelo comportamento profundo do cérebro, pois ele é o resultado e a conclusão das reacções mais complexas na nossa região do Universo, e talvez contenha em si próprio as leis mais íntimas dessa região.

O mundo não é absurdo e o espírito não é de forma alguma inapto para o compreender. Antes pelo contrário, pode ser que o espírito humano já tenha compreendido o mundo, mas que ainda o não saiba…

‘ Uma das hipóteses da Thèorie unitaire, de Jean Charon.

‘ Eric Temple Bell: Le Flot du Temps, Gallimard edit., Paris

Na física, nas matemáticas e na biologia modernas a vista espraia-se até ao infinito. Mas a sociologia tem sempre o horizonte tapado pelos monumentos do século passado. Recordo-me do nosso triste espanto quando seguimos, Bergier e eu, em 1957, a correspondência entre o célebre economista soviético Eugénio Varga e a revista americana Fortune. Esta luxuosa publicação exprime as opiniões do capitalismo esclarecido. Varga é um espírito sólido e goza da consideração do supremo poder. Podia esperar-se, de um diálogo público entre estas duas autoridades, um auxílio sério para a compreensão da nossa época. Ora o resultado foi terrivelmente decepcionante.

Varga seguia à letra o seu evangelho. Marx anunciava uma inevitável crise do capitalismo. Via essa crise muito próxima. O facto de a situação económica dos Estados Unidos melhorar constantemente e de o grande problema ser agora a utilização racional dos períodos de descanso não impressionava de forma alguma esse teórico que, na época do radar, continuava a ver as coisas pelos mesmos prismas de Karl. A ideia de que o desmoronamento anunciado poderia não se produzir segundo o esquema fixado, e de que talvez estivesse prestes a surgir uma nova sociedade além-Atlântico, nem por um momento lhe passava pela cabeça. Por outro lado, a redacção da Fortune também não previa uma mudança de sociedade na U.R.S.S., e explicava que a América de 1957 exprimia um ideal perfeito, definitivo. Tudo o que os Russos podiam esperar era aceder a esse estado se tivessem juízo, dentro de um século ou século e meio. Nada inquietava ou perturbava os adversários teóricos de Varga, nem a multiplicidade de cultos novos entre os intelectuais americanos (Oppenheimer, Aldous Huxley, Gerald Heard, Henri Miller e muitos outros, tentados pelas antigas filosofias orientais), nem a existência, nas grandes cidades, de milhares de jovens “rebeldes sem motivo”, agrupados em “gangs”, nem os vinte milhões de indivíduos que apenas resistiam ao ambiente tomando drogas tão perigosas como a morfina ou o ópio. O problema de um objectivo na vida não parecia atingi-los. Quando todas as famílias americanas possuírem dois automóveis, será necessário que comprem um terceiro. Quando o mercado dos postos de televisão estiver saturado, será necessário equipar os automóveis.

E, no entanto, em relação aos sociólogos, aos economistas e aos pensadores do nosso país, Eugénio Varga e a direcção da Fortune estão avançados. O complexo de decadência não os paralisa. Eles não se entregam a uma deleitação morosa. Não pensam que o mundo é absurdo e que a vida não merece ser vivida. Acreditam com firmeza na virtude do progresso, caminham a direito para um aumento indefinido do poder do homem sobre a natureza. Têm dinamismo e grandeza. Têm vistas largas e grandiosas. Seria desagradável declararmos que Varga é partidário da empresa livre e que a redacção da Fortune é composta por progressistas. E no entanto, no significado europeu, estritamente doutrinal, isso é verdade. Eugénio Varga não é comunista. A Fortune não é capitalista, se nos basearmos nas nossas maneiras de ver acanhadas, provincianas. O russo e o americano responsáveis têm em comum a ambição, a ânsia de poder e um inquebrantável optimismo. Estas forças, manejando a alavanca das ciências e das técnicas, fazem saltar os quadros da sociologia elaborados no século xIx. Se a Europa Ocidental se devesse afundar e perder em conflitos bizantinos – praza a Deus que não! -, nem por isso a marcha da humanidade para a frente deixaria de prosseguir, fazendo explodir os alicerces, estabelecendo uma nova força de civilização entre os dois recentes pólos da consciência activa que são Chicago e Tachkent, ao mesmo tempo que as imensas multidões do Oriente; e depois da África, passarão pela forja.

Enquanto em França um dos nossos melhores sociólogos chora sobre Le Travail en miettes, título de uma das suas obras, os sindicatos americanos estudam a semana de vinte horas. Enquanto os intelectuais parisienses, supostamente de vanguarda, perguntam a si próprios se Marx deverá ser ultrapassado, ou se o existencialismo é ou não um humanismo revolucionário, o Instituto Sternfeld de Moscovo estuda a implantação da humanidade na Lua. Enquanto Eugénio Varga aguarda o desmoronamento dos Estados Unidos anunciado pelo profeta, os biólogos americanos preparam a síntese da vida a partir do inanimado. Enquanto o problema da coexistência se continua a pôr, o comunismo e o capitalismo estão prestes a ser alterados pela mais poderosa revolução tecnológica que possivelmente a Terra jamais conheceu. Estamos com os olhos colocados na parte de trás da cabeça. Seria altura de os pormos no seu devido lugar.

O último sociólogo poderoso e imaginativo foi talvez Lenine. Definiu com clareza o comunismo de 1917: “É o socialismo mais a electricidade.” Já passou cerca de meio século depois disso. A definição continua válida para a China, a África, a Índia. Mas para o mundo moderno é letra morta. A Rússia aguarda o pensador que venha a descrever a nova ordem: o comunismo mais a energia atómica, mais a automatização, mais a síntese dos carburantes e dos alimentos a partir do ar e da água, mais a física dos corpos sólidos, mais a conquista das estrelas, etc. John Buchan, depois de assistir ao funeral de Lenine, anunciava a chegada de outro Vidente que criaria um “comunismo com
quatro dimensões”.

Se a U.R.S.S. não tem a sociologia que merece, a América não está mais bem fornecida. A reacção contra os “historiadores vermelhos” do final do século xIx provocou, por parte dos observadores, o elogio declarado das grandes dinastias capitalistas e das organizações poderosas. Há qualquer coisa de saudável em tal franqueza, mas a perspectiva é pequena. Os críticos do american zuay of lzfe são raros, literários, e procedem da forma mais negativa. Nenhum parece incitar a imaginação ao ponto de ver surgir, através dessa “multidão solitária”, uma civilização diferente das suas formas exteriores, até sentir uma crepitação das consciências, a aparição de novos mitos. Através da abundante e espantosa literatura chamada de “ficção científica” sobressai no entanto a aventura de um espírito quase adolescente ainda, que se desdobra à medida do planeta, se empenha numa reflexão à escala cósmica e situa, de maneira diferente, o destino humano no vasto Universo. Mas o estudo de semelhante literatura, tão comparável à tradição oral dos narradores antigos, e que dá provas dos profundos movimentos da inteligência em marcha, não é coisa séria para os sociólogos.

Quanto à sociologia europeia, continua estritamente provinciana, com toda a sua inteligência empenhada em longas discussões a respeito de ninharias. Nestas condições, não é de admirar que as almas sensíveis se refugiem no catastrófico. Tudo é absurdo e a bomba H pôs um ponto final na história. Esta filosofia, que parece simultaneamente sinistra e profunda, é mais fácil de manejar que os pesados e delicados instrumentos de análise do real. É uma passageira enfermidade do pensamento dos civilizados que não adaptaram as noções herdadas (liberdade individual, pessoa humana, felicidade, etc.) à alteração dos fins da civilização que se inicia. É uma fadiga nervosa do espírito, no momento que esse espírito, preocupado com as suas próprias conquistas, deve, não só soçobrar, como mudar de estrutura. No fim de contas, não é a primeira vez que na história da humanidade a consciência é obrigada a passar de um plano para outro. Qualquer modificação é dolorosa. Se há um futuro, merece ser examinado. E, neste presente apressado, não é em referência ao passado mais próximo que a reflexão deve ser feita. O nosso próprio futuro é tão diferente daquilo com que acabamos de tomar contacto como o século xIx era diferente da civilização Maia. Portanto, é por meio de incessantes projecções através do tempo e do espaço que devemos proceder, e de forma alguma por meio de comparações minúsculas numa fracção ínfima, onde o passado recentemente vivido não possui qualquer das probabilidades do futuro e onde o presente, logo que toma forma, é tragado por esse inutilizável passado.

A primeira ideia verdadeiramente fecunda é que há diferença de alvos. Um cavaleiro das cruzadas que regressasse para junto de nós perguntaria imediatamente por que motivo se não utiliza a bomba atómica contra os Infiéis. De sentimentos firmes e inteligência aberta, no fim de contas sentir-se-ia menos assombrado com as nossas técnicas do que pelo facto de os Infiéis ainda possuírem metade do Santo Sepulcro, estando a outra, aliás na mão dos Judeus. O que ele teria maior dificuldade em compreender seria uma civilização rica e poderosa, cuja riqueza e poderio não são explicitamente consagrados ao serviço e à glória de Jesus. Que lhe diriam os nossos sociólogos? Que estes imensos esforços, batalhas, descobertas, têm como objectivo único elevar o “nível de vida” de todos os homens? Isso parecer-lhe-ia absurdo, pois a vida apresentava-se sem objectivo. Eles falar-lhe-iam ainda de Justiça, de Liberdade, de Pessoa Humana, recitar-lhe-iam o evangelho humanista-materialista do século xIx. E o cavaleiro sem dúvida responderia: mas liberdade para quê? Justiça para quê? A pessoa humana para dela fazer o quê? Para que o cavaleiro encarasse a nossa civilização como uma coisa digna de ser vivida por uma alma seria necessário não utilizar uma linguagem retrospectiva dos sociólogos. Seria necessário utilizar uma linguagem prospectiva. Haveria que mostrar-lhe o mundo em marcha, a inteligência em marcha, como a formidável vibração de uma cruzada. Trata-se, uma vez mais, de libertar o Santo Sepulcro: o espírito retido na matéria, e repelir o Infiel: tudo o que é infiel ao infinito poder do espírito. Continua sempre a tratar-se de religião: tornar manifesto tudo o que une o homem à sua própria grandeza e essa grandeza às leis do Universo. Seria necessário mostrar-lhe um mundo onde os ciclotrões são como as catedrais, as matemáticas como um cântico gregoriano, onde as transformações se operam, não apenas no centro da matéria, mas nos cérebros, onde as massas humanas de todas as cores se agitam, onde a interrogação do homem faz vibrar as suas antenas nos espaços cósmicos, onde a alma do planeta desperta. Então talvez o nosso cavaleiro não pedisse para regressar ao passado. Talvez se sentisse aqui como em sua casa, apenas colocado noutro nível. Talvez se lançasse a caminho do futuro, como outrora se lançava a caminho do Oriente, depois de se ligar novamente à fé, mas num grau diferente.

 


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