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Uma boa forma de iniciar qualquer divagação a respeito dos traços constituintes da filosofia religiosa satânica é questionar: em que o satanismo se diferencia de outros caminhos espirituais? Para responder a isto, será necessário primeiramente pensarmos “quem” ou “o que” é Satã. Este termo foi criado pelos hebreus, significando “opositor” ou “adversário”, para designar aquele que, após o contato deste povo com o zoroastrismo, viria a ser o opositor de IHVH, o deus dos judeus. Contudo, estima-se que tal termo seja uma corruptela de nomes bem mais antigos, alguns dizem que de “Shaitan”, o anjo-pavão adorado pelos yezides, outros dizem que de “Seth”, o deus da noite, dos caos e dos desertos que teria assassinado Osiris, deus egípcio da fertilidade. Com isso, podemos partir do princípio que, seja lá “o que” ou “quem” for Satã, o mesmo tem sua existência independente do maniqueísmo dos judeus e anterior ao advento do cristianismo.
A medida que a religião cristã foi fundada e, dado ao processo histórico, passada de perseguida à dominante no mundo europeu, a figura de Satã tomou novos contornos e outros deuses e figuras míticas foram “satanizadas” de acordo com os interesses defendidos pela igreja. Pan, Shiva, Chronus, Saturno, Loki, Cernunnos, entre outros deuses, emprestaram suas características físicas, presentes em suas imagens forjadas pelo imaginário popular, para o temido e grandioso Satã, aquele que, através do medo das chamas, do escuro e da dor, manteria as pessoas atreladas ao dogmatismo senil do catolicismo. O que, contudo, tais deuses tinham em comum, para caírem do “posto” de deuses para o de demônios? Eram todos deuses que personificavam tudo o que era rechaçado pela “religiosidade da luz”! Eram arquétipos das trevas, da liberdade (e da libertinagem), do ardor sexual, do caos, da dor, do sarcasmo e da morte. Eram tudo aquilo que, tal como os judeus já haviam preconizado, “opunha-se” à ordem vigente, ao dogmatismo, à pureza, luz e estabilidade do sistema. Eram entes antinomianos, caóticos, obscuros e libertos, uma verdadeira antítese que deveria manter-se isolada a qualquer custo!
Com a ascensão da Idade Moderna e, posteriormente, da Contemporânea, os elementos que tipificavam Satã foram ganhando cada vez mais força entre os homens e mulheres, embora a religião cristã permanecesse dominante. O apego aos prazeres da carne, a ânsia por liberdade, o deslumbre pela noite, pela obscuridade e pelo proibido passaram a manifestar-se na vida de muitos, tendo sido eternizados em tendências literárias e artísticas de um modo geral, bem como em períodos conturbados de guerras e revoluções que marcaram a história deste período. Satã, outrora temido e rechaçado, passa a inspirar os sentimentos e aspirações de diversos intelectuais, como Byron, Baudelaire, Mark Twain, Bakunin, Carducci, Goethe, entre outros. Se outrora este era representado como uma besta horrenda, agora era visto pelos mesmos como um cavalheiro distinto, educado, portador dos conhecimentos herméticos, iniciador dos homens nos mistérios ocultos, sem contudo perder suas características ardilosas, libidinosas e irônicas que, queira ou não, são suas marcas registradas.
No decorrer do século XX, as sementes de Satã, que tempos atrás haviam sido espalhadas, começaram a florescer e gerar árvores e frutos, ocorrendo a formação de diversas irmandades e templos satânicos em vários países. Alguns poderiam dizer que desde a idade média já haviam cultos designados como “satânicos”. Contudo, os mesmos eram uma forma extremamente grosseira e primitiva de satanismo, sendo estes muito mais um “cristianismo às avessas”, voltado à adoração a um Satã bestial, horrendo e viciado tal como concebia o cristianismo. De igual forma, eram desprovidos de independência em relação aos princípios duais e morais do monoteísmo abraâmico, sendo estes ainda amarrados às ideias de “pecado”, “reverência”, “submissão”, etc. No século XX, longe de se “adorar” a um Satã cristianizado e deformado, buscou-se o “retorno às origens”, dando-se assim enfoque aos deuses obscuros dos antigos panteões, que serviriam de arquétipos à esta nova forma de espiritualidade que estava a ser instaurada. Agora sim, podemos questionar: em que a espiritualidade satânica se diferencia daquela praticada pelas convencionalmente chamadas “religiões de luz”?
Inicialmente, podemos dizer que o caminho satânico é o caminho da oposição, da contestação e da rebeldia. Um satanista é alguém que está constantemente questionando o mundo a seu redor, e buscando alternativas e caminhos próprios ao invés de seguir aqueles convencionados ou predeterminados. O que é chamado “renascer” ou “despertar satânico” se dá quando o indivíduo deixa de aceitar diretrizes sociais, culturais e morais estabelecidas por outrem e passa a opor-se a isso, não como um garoto rebelde e imaturo, mas sim enquanto um adulto procurando um caminho independente.
De igual forma, o satanismo é caracterizado pela liberdade de fruição dos prazeres, de individualidade e criatividade. Buscam em seus corpos e na atividade sexual livre o usufruto daquilo que lhes fora negado pelas religiões monoteístas. Do mesmo modo, uma vez que recusaram a tradição apregoada por seus pais e os dogmas de suas sociedades, tendem a buscar a construção de seus caminhos de modo independente daquilo que já fora estipulado. Mesmo que façam parte de irmandades, templos ou grupos específicos, e que sorvam de suas produções, sistemas mágicko-filosóficos e da experiência de outros iguais, estes buscam manter sua individualidade acima de tudo. Isso me leva a crer que, enquanto religiosos da mão direita, do caminho reto, buscam em seus livros, templos e irmandades um “tipo ideal” de conduta, um “ponto de chegada” infalível, satanistas enxergam nos mesmos apenas “pontos de partida”. Não existe qualquer diretriz rígida, acabada, pronta, nenhum caminho infalível para um satanista atingir a divindade, tendo em vista que o caminho satânico está em constante construção, sempre sendo construído e derrubado, enaltecido e questionado. Enquanto adeptos da mão direita e do caminho luminoso são seguidores, satanistas são desbravadores.
Ainda, cabe ressaltar que o satanismo calca-se na abolição completa da dualidade outrora apregoada. As constantes oposições matéria x espírito, luz x trevas e bem x mal são transcendidas e o ser humano é compreendido em toda a sua amplitude, em seus aspectos mundanos e divinos, em sua face luminosa e obscura. Neste sentido, alguns poderiam questionar: por que então o satanismo é tido como o “caminho das sombras”? Tal como Lord Ahriman, em sua magna obra “Satanomicon” nos lega, o nosso lado luminoso foi o mais trabalhado até então, tendo sido o cobrado pela nossa organização social. Enquanto isso, o nosso lado obscuro permeia nas profundezas de nosso abismo interno, de nosso inconsciente, lá onde está nossa essência, nosso “verdadeiro eu”, longe de regras sociais castradoras, queimando como o fogo infernal!
Aquilo que, para o caminho reto, é tido como vicioso, defeituoso e perturbador, para nós é tido como um importante aliado em nosso processo de autoconhecimento. Ser satanista é não apenas caminhar nas sombras, como vulgarmente é pensado, mas sim canalizar o potencial destrutivo e criativo das mesmas no processo de transformação da carne e do espírito. É visualizar a luz estando submerso no oceano escuro das emoções, dúvidas e conflitos internos. É usar o poder destrutivo e regenerador do caos e do fogo despertando nossa besta interna, reconhecendo quem realmente somos para, assim, nos atarmos ao todo cósmico, aquele que é comumente chamado de “Deus” (personificado na figura de Baphomet, o Tao). Tal divindade, contudo, não é atingida pela obediência a regras específicas ou pela adoção de condutas morais, mas sim pelo reconhecimento de nosso potencial transformador e criador, nosso poder de fazer valer nossa vontade, nossa lei.
A partir de tais premissas, podemos deduzir que ser satânico é atingir os conhecimentos cósmicos/gnósticos a partir do abismo, da via sinistra. Por isso o satanismo não é tido como algo pronto e acabado, pois estar no abismo é estar em meio ao “nada”, em meio ao vazio, ao vácuo. Não é a toa que, entre os yezides, Melek Taus (o vulgo Shaitan) era um ente que habitava o vazio interdimensional entre o inferno (o mundo em que vivemos) e o paraíso. Sendo assim, ele podia transitar livremente entre os dois mundos, trazendo os conhecimentos divinos aos humanos, e levando os humanos a ascenderem à divindade, traçando a união entre o profano e o divino personificada no hexagrama. Também, entre os sufis, haviam entes que habitavam o vazio entre o céu e a terra. Criaturas forjadas em fogo, gênios detentores de fundamentos preciosos, que em muito se aproximavam dos “daemons” tão abordados entre os thelemitas. Tratavam-se, naturalmente, dos “djins”, que, como era de se esperar, vieram a ser tomados como demônios pelo islamismo que veio a consolidar-se como religião dominante no oriente médio. Entre os yorubá, Esú Elegbará tipificava algo muito semelhante, sendo o senhor do caos e das trapaças (tal como o Loki nórdico), das encruzilhadas, do fogo e mensageiro dos deuses. Tal como Melek Taus, era aquele que caminhava entre o céu e o inferno, servindo assim de mensageiro dos deuses aos homens (próximo também ao que era o Hermes grego, que assim como Esú, carregava um cetro em sua mão, personificando o falo masculino). Não é nem preciso falar que, durante o processo de colonização da África, o mesmo foi tomado como “diabo” pelos conquistadores europeus.
Sendo assim, podemos concluir que Satã, embora seja um opositor da ordem vigente, da estabilidade e da decrepitude, não é um ente antidivino, permeado por vícios e pecados tal como querem fazer crer aqueles que corroboram o status quo. Satã (o pentagrama), é aquele que une o microcosmos ao macrocosmos (o hexagrama), personificado na figura de Baphomet, a totalidade cósmica, que une o individual ao universal. Sendo a personificação do acausal, do obscuro e do antinomiano, Satã é o nosso grande iniciador nos mistérios cósmicos, é aquele que, portando caracteres divinos e profanos, é o único capaz de nos conduzir à luz negra, sendo ao mesmo tempo o guardião desta (tanto que entre alguns sufis, Iblis, ou Shaitan, também era chamado “mordomo de Deus”). Neste caminho de dúvidas, conflitos e temores, será aquele que nos testará, nos enganará, nos confundirá para que possamos encontrar a verdade por nós mesmos. Estará, no nono círculo de nosso inferno interior, guardando a preciosa luz negra e, tal como Chorozon (a besta do abismo), nos obrigará a enfrentar nossos próprios demônios internos, ou nos destroçará em pedaços. Assim são as trevas: refrigeram e fortalecem os preparados, engolem e destroçam os incautos. Que possamos assim, constantemente, estar exercendo nosso potencial divino e transformador, sem deixarmos de ser opositores, contestadores, orgulhosos, satânicos por excelência, profanos e divinos em um só corpo! Hail Satan! Ave Nigra Luminis!
Frater Thanatos Daemon
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