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Gnose Noturna e o Caminho da Serpente

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A presente compilação contém um texto introdutório sobre a Gnose em seu âmbito sombrio, seguindo para um arranjo de excertos da obra do poeta Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente, que revela profundos conhecimentos ao estudante do Caminho da Mão Esquerda.

 

Gnose Noturna

 

A raiz etimológica grega “gnos” é largamente utilizada em termos relacionados a obtenção de ciência em alguma área ou assunto. Entre as palavras cognatas dessa raiz, temos o verbo gignosco (conhecer) que deu origem ao termo Gnosis (Gnose/Conhecimento), e de todos os correlatos, o verbo gignosco é o que denota mais clara e intimamente o significado do que é a Gnose Noturna.

 

Gignosco era o principal termo utilizado pelos gregos para aludir o ato de união sexual entre indivíduos, mas não se tratava tão somente de uma troca de intimidade carnal, pois a finalidade principal era a transação espiritual, visto que o corpo com suas formas e beleza erótica era cultuado como uma exposição de atributos divinos e considerado a mais perfeita criação dos deuses. Sendo assim, nada melhor que o coito para entender isso.

 

A Gnose dessa época, então, pressupõe um gama de  conhecimentos adquiridos através da ação de justapor os opostos coeternos (materia/espírito) através da união outorgada pela Libido/Vontade, porém no acme dessa prática no Século II, época em que a Gnose é estudada por várias correntes teológicas e filosóficas cristãs, esse Conhecer foi fortemente restringido sob acusação de heresia da parte de quem praticasse-o e as escolas gnósticas atacadas pelas suas doutrinas,  estudos e operações, porque tanto a vontade pessoal quanto a libido utilizados para alcançar a Gnose eram assuntos de grandes tabus dentro do cristianismo. Isso levou a vários teólogos e pensadores cristãos a difundirem de forma veemente que essas práticas gnósticas eram pecaminosas. Isso pode ser visto em obras como Adversus Haereses de Ireneu de Lyon, Refutatio Omnium Haeresium de Hipólito, entre outras.

 

Contudo, mesmo sob perseguição, muitas escolas gnósticas mantiveram-se autênticas e não abandonaram seus fundamentos. Como exemplos temos as escolas de Gnose Ofita e Qayinita que se rastrearmos os ensinamentos que não esmoreceram ao bombardeio cristão, conseguiremos escavar até a base da Gnose Noturna.

 

A escola da Gnose Ofita  era a mais secreta e fechada em seus fundamentos. Para ela quem precursou o conhecimento para o Homem foi a Serpente, arquétipo figurativo de grande importancia em tantos mitos e culturas. Essa escola chamava a Serpente por Nachash, termo mais usual no aramaico. Nachash que tem o significado de “sibilar ou sussurrar”, som típico da Serpente, era um termo relevante para essa escola pois seus ensinamentos eram “sussurrados” em segredo entre os homens pneumáticos (espirituais) sem ser malbaratado aos ouvidos dos hiléticos (mundanos).

Não raramente, essa escola usava o Mito da Queda do cristianismo para transfigurar a Serpente na imagem do Lagarto ou Dragão com cabeça de mulher. Isso era feito com o propósito de obter a Gnose através da alquimia proibida do Nigredo, o conhecimento através da união sexual, do qual a Mulher e seu sensual poder de atração é a maior representante.

 

Esse Mito foi adotado para ensinar a transgressão de princípios e condicionamentos básicos e promover, assim, uma busca livre pela iluminação. O abandono (queda) deveria ser tão completo ao nível de infundir a plena consciência de individualidade, e nessa fase a antonomásia era usada para criar a identidade  do novo Homem que iria caminhar pelo seu próprio juízo e lei.

 

A Serpente então se tornava o próprio grifo do indivíduo: o Self (Samael), o Ego Exaltado (Shaytan), a Gnose da Unidade (Uróboro).

A escola da Gnose Cainita também tinha uma forma heteróclita de interpretar o Gênesis cristão. Em seus ensinamentos, Caim era filho da Serpente (Samael), um espírito superior a Adão, o pai de seu irmão Abel. E por conta dessa natureza superior que não sujeitava-se nem mesmo a vontade do Demiurgo. Ele teria nascido gêmeo de Kalmana, da qual não conseguia viver distante e nem desunir-se, pois Ela era seu coeterno lado feminino e também fruto da Serpente.

 

Caim era visto como um herói que lutou contra a estase de sua família e liberou-se dos grilhões que prendiam a mesma e a si. E o amor entre ele e sua irmã gêmea era a perfeita representaçao da Alquimia proibida do Nigredo. Como filhos da Serpente, eles eram os herdeiros direto da Gnose, os único de sua gente que tinham o conhecimento correndo diretamente em seu ser e que poderiam se libertar do jugo do Demiurgo. Por conta disso, o  antinomianismo se tornou importante nessa escola, visto que a Gnose Cainita incitava a libertação do indivíduo que vivia rodeado de sistemas opressivos de falsos ensinamentos que impediam a Iluminação. Ao invés de buscar nos templos, altares ou livros, a escola cainita escavava o conhecimento no íntimo do próprio indivíduo. Esses ensinamentos constituíam o Mito da Busca, onde o homem/herói larga tudo para ir em busca do autoconhecimento e valores que foram malbaratados.

 

Esses ensinamentos são os pilares da Gnose Noturna. E foram praticados e sussurrados até mesmo antes dos supracitados adventos, entre vários povos em épocas dessemelhantes, através de símbolos e mitos seculares que trazem Iluninação, transgressão e antinomia ao Homem.

 

O Caminho da Serpente

Por Fernando Pessoa

 

Trez ramos ascendentes, com trez ordens de subida em cada um. Ao todo são sete ordens, sendo trez angulares, seis externas, uma interna. Considerar isto. Na ordem externa inferior esquerda, Ordo Solis, a congregação dos infiéis, a quem só o Sol, realidade externa, é visível, atual ou simbolicamente.

 

Na ordem externa inferior direita, Ordo Signi (Solis), a congregação dos fieis externos, que aceitam não propugnar senão certos princípios abstratos e cristãos, cuja semelhança com outros não vêem.

 

Na ordem media esquerda, Ordo Serpentis, a congregação dos iniciados da O. Solis. Na ordem media direita, Ordo Sepulcri, a congregação dos IN. Na ordem media central (a oculta e sem exterior), Ordo Sebastica, a congregação Ordo Sanctissimorum.

(Esp. 53-80)

 

 

A Serpente, cujo olho direito é o sol em sua gloria…as lagrimas alquimicas do Cristo (a magua alquimica do Cristo).

 

É preciso, quando se é Serpente, passar em Satan para chegar a Deus. A Serpente, retida pela Vesica…. No vértice nada a retém…

 

Os Evangelhos Sinopticos não são mais do que o Quarto Evangelho em processo de formação…

(Esp. 54A-1)

 

 

A Serpente, que, na ordem divina é o SS, na ordem espiritual direita e na esquerda é na ordem material direita Portugal.

 

A Serpente é o entendimento de todas as coisas e a compreensão intelectual da vacuidade d’elas. Seguindo um caminho que não é o de nenhuma ordem nem destino, ela ergue-se á Altura que é a sua origem e evita os lugares por onde os homens passam. O entendimento de tudo, a fusão dos opostos, a ciencia da indiferença do bem e do mal, a ciencia da valia da emoção como emoção e da vontade como vontade, a igual ironia para com os sábios como para com os néscios. No seu culto adultaram os últimos magos, no seu nome adolesceram os primeiros.

 

_ S _

E R P

E N S

 

É ignóbil na terra porque não é da terra. É subtil porque está fora. A tentação de Eva é a admissão da Inteligencia na Vida. O fruto proibido é!

 

Conto: «O Senhor das Sete Ordens», indicando exatamente o que se queria fazer.

(Esp. 54A-2)

 

Ela atravessa todos os misterios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto reto, pôde deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como a pele largada, deixa Saturno e Satan como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.

 

E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora.

O Caminho da Serpente.

 

Manuscrito por encontrar…

 

Foi a Cobra (Serpente) do Éden, mas só em sua pele, e largou a pele. Foi Saturno do Mundo, mas só em sua pele, e largou a pele. Foi Satan de Deus, mas só em sua pele, e largou a pele.

A sua fuga é o seu misterio, e o seu caminho a chave de todos os misterios. Mas ela não sabe nem do seu misterio nem de todos os misterios, porque conhece tudo, e conhecer é não existir.

(Esp. 54A-3)

 

A consciência transcende a unidade. É o ponto absoluto que só ‘existe’ porque para que qualquer coisa exista, tem ele que existir infinitamente nela. O ponto, sendo a negação do espaço é a vida d’ele.

 

No seu feitio de S (que, se se considerar fechado, é 8, e, deitado, igualmente serpentino, Infinito), a Serpente inclue dois espaços, que rodeia e transcende. (O primeiro espaço é o mundo inferior, o segundo o mundo superior.) Em outra figuração serpentina — a da cobra em circulo, a boca mordendo a cauda — reproduz-se, não o S, de que a letra é signo, mas o circulo, simbolo da terra, ou do mundo tal qual o temos. No feitio de S a Serpente evade-se das duas Realidades e desaparece dos Mundos e Universos.

 

A ilusão é a substancia do mundo, e, segundo a Regra, tanto no mundo superior como no mundo inferior, no oculto como no patente. Assim, quando fugimos do mundo inferior, por ele ser ilusorio, o mundo superior, onde nos refugiamos, não é menos ilusorio; é ilusorio de outra, da sua, maneira. Só a Serpente, contornando os infinitos abertos — ou os círculos incompletos — dos dois mundos foge á ilusão e conhece o principio da verdade.

 

A magia e a alquimia teem ilusões como a ciencia e a sexualidade, que são as suas figurações no baixo mundo. Construimos ficções, com a nossa imaginação, tanto na terra como no céu. O mago, que evoca determinado demônio, e vê aparecer materialmente esse demônio, pode crer que esse demônio existe; mas não está provado que ele exista. Existe, porventura, só porque foi criado; e ser criado não é existir, no sentido real da palavra. Existir, no sentido real da palavra, é ser Deus — isto é, ter-se criado a si-mesmo; em outras palavras, não depender substancialmente de nada e de ninguém.

 

A G.O. é a libertação, no homem, de Deus, a crucifixão do desfolhavel no morto, do perecível no perecido, para que nada pereça. A G.O., em outras palavras, é a criação de Deus.

A magia e a alquimia são caminhos de ilusão. A verdade está só no instinto direto (representado nos simbolos pelos cornos) e na linha direta da sua ascenção ao instinto supremo; no instinto directo, cuja forma ativa é a sexualidade, cuja forma intermedia é a imaginação, fantasia, ou criação pelo espirito, cuja forma final é a criação de Deus, a união com Deus, a identificação abstrata e absoluta consigo mesmo, a verdade.

(Esp. 54A-4)

 

Sendo os números e as figuras os tipos externos da ordem e destino do mundo, a mais simples operação aritmetica, algebrica ou geométrica, desde que seja bem feita, contém grandes revelações; e, sem precisão de mais signos, na matematica estão as chaves de todos os misterios. Isto não quer dizer — o que seria absurdo — que todos os matematicos conscientemente nos estão comunicando os signos de segredos, quando fazem os seus cálculos. Assim, não ha razão para supor que Euclides, nos livros da sua Geometria, tenha tido outra especulação senão a geométrica; mas os livros de Euclides, da primeira proposição á ultima, são signos reveladores, para quem os saiba ler. Nos próprios irracionais da álgebra estão contidos grandes misterios.

(Esp. 54A-5)

 

Todo homem, que tenha que talhar para si um caminho para o Alto, encontrará obstáculos incompreensiveis e constantes. Se não fossem mais que os obstáculos que se atravessam e estimulam, pelo perigo ou pela resistência direta, bem iria, e os próprios obstáculos seriam o clarim para o avanço. Mas encontrará outros — os obstáculos reles que vexam e vergam, os obstáculos suaves que adormecem e viciam, os obstáculos ternos que o farão, como Orpheu, volver o erro do olhar para o vedado Averno. Cerca-lo-ão, não só resistências duras, como as que os penhascos erguem como tropeço, mas resistências brandas, como as memórias dos vales, e a dos lares nas faldas. E o triunfo consiste na força para, sabendo sentir essas atrações intensamente (pois não saber sentir é não ter alma para a subida), as submeter á emoção superior; sabendo organizar as vontades do amor e da terra, saber submetê-las á vontade do espirito do mundo. Este processo de vicoria, figuram-o os emblemadores no simbolo da Crucifixão da Rosa — ou seja no sacrifício da emoção do mundo (a Rosa, que é o circulo em flor) nas linhas cruzadas da vontade fundamental e da emoção fundamental, que formam o substrato do Mundo, não como Realidade (que isso é o Circulo) mas como produto do Espirito (que isso é a Cruz).

(Esp. 54A-6)

 

Há em tudo trez ordens de coisas: há trez ordens de coisas no Ser, trez ordens de coisas no Universo, trez ordens de coisas no Mundo, e assim por deante. Tudo é triplo, mas o triplo ser de cada coisa consiste em trez graus ou camadas, um baixo, outro médio, outro alto. Tudo que se dá numa camada se reflete e figura em outra. É este o principio de Hermes Trismegistos na formula, “o que está em cima é como o que está em baixo”, “e o que está em baixo é como o que está em cima”, o fundamental de toda a ciencia secreta, e assim o representou.

Devidamente entendida, esta formula explica muita cousa. Assim, na astrologia, parece a principio estranho que a posição dos astros no nascimento de um homem, ou no inicio de um empreendimento, mostre, em suas relações e aspectos, o destino d’esse homem ou o curso d’esse empreendimento. Não são porém os astros que operam sobre o homem ou o sucesso. Opera sobre eles um destino, e esse destino, que existe como força espiritual numa camada superior, encontra-se representado material, ou mundanamente, nos astros. Quando digo que devo tal sucesso de minha vida a tal aspecto de Saturno, digo, ao mesmo tempo, bem e mal. Digo bem porque, de fato, seguindo a leitura do horóscopo, posso prever esse sucesso pela previsão do aspecto de Saturno, que apparentemente o causa. Não é porém o planeta Saturno que materialmente o causa: é o que o planeta Saturno representa, no mundo material, que causa o sucesso.

 

Para os efeitos do mundo em que vivemos — não digo a terra, mas o conjunto de matéria animada que forma este universo — as coisas dividem-se em trez camadas — a material, a espiritual, e a divina. Entre elas há uma exata correspondência. Cada uma, por sua vez, se divide em trez. A camada material divide-se na camada física ou exterior, na camada magnética ou media, e na camada astral ou interior. A camada espiritual divide-se (incompleto)

(Esp. 54A-7)

 

 

Cristo, que, na dispensação material é um deus cristão, e na dispensação mágica um deus, é, na dispensação divina, Deus. Na primeira ordem podem ser-lhe dirigidas orações, que terão ou não efeito segundo as regras mágicas d’essas operações da fé. Na segunda ordem podem serlhe feitas invocações, como a Osiris, que é o mesmo deus, e o efeito derivar-se-á da perfeição do incantamento e do rito. Na terceira ordem não poderão ser-lhe dirigidas orações nem invocações; o processo de união com Ele não pode ser indicado em palavras nem compreendido com a inteligencia. Aquele que, tendo chegado até onde esse processo existe como formula de relação, pode assistir á revelação intima, só esse o saberá.

(Esp. 54A-8)

 

Considerar todas as coisas como acidentes de uma ilusão irracional, embora cada uma se apresente racional para si mesma — nisto reside o principio da sabedoria. Mas este principio da sabedoria não é mais que metade do entendimento das mesmas coisas. A outra parte do entendimento consiste no conhecimento d’essas coisas, na participação intima d’elas. Temos que viver intimamente aquilo que repudiamos. Nada custa a quem não é capaz de sentir o Cristianismo e o repudiar; o que custa é repudia-lo, como a tudo, depois de verdadeiramente o sentir, o viver, o ser. O que custa é repudia-lo, ou saber repudia-lo, não como forma da mentira, senão como forma da verdade. Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo — quando o homem se ergue a este pincaro, está livre, como em todos os pincaros, está só, como em todos os pincaros, está unido ao céu, a que nunca está unido, como em todos os pincaros.

 

A luz falsa da realidade, a luz falsa da ficção, a luz falsa da iniciação e do secreto — dia, crepúsculo, noite, que são elas a quem contempla a Razão limpa, a Serpente coleante atraves dos mundos?

 

A Serpente está acima das ordens e dos sistemas, e, ainda que ascenda como o sentido d’eles, dispensa as linhas e os caminhos. O seu movimento, para a direita na ordem inferior das coisas e dos seres, o é apenas para que possa ser para a esquerda na ordem superior d’eles. O que os homens não podem conseguir senão dominando-se, ou conjugando-se, ou impondo-se, consegue a Serpente sozinha na sua liberdade. Para ela mandar é subordinar-se á idéia de mandar; livre e cauta, ela segue rasteira através do mundo, e do espírito, até que salte do mundo e do espirito.

 

Ela liga os contrários verdadeiros, porque, ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ela segue um caminho que passa por todos e não é nenhum. Ela parte, como o caminho direito e o esquerdo, do Instinto para Deus, mas não sofre a quebra onde os triângulos se unem; não forma angulo consigo mesma.

 

(Não a traçam os simbolos senão em O ou em S, limitando ou evitando o mundo.) Nem ascende sem quebra, como o caminho médio, do Instinto a Deus. Conhecendo que há outros caminhos, que não o médio, ela reconhece-os, pois se desvia do médio, e repudia-os, pois não segue a nenhum d’eles. Ao sair do vértice instintivo, ao sair para o vértice divino, ela roça a curva produzida da vesica involvente, e assim mostra que sabe d’ela; mas roça-a e passa-a, e não segue a sua curva nem a sua maneira. Ela assim se distingue de todos os modos e condições de Deus e dos Seres. Onde parece que é igual mas é diferente, e os dois (por assim dizer) que a formam são opostos em seu feitio e natureza. No baixo mundo ela é a lua crescente, no mundo superior a minguante…

 

Ela não conhece os misterios mas os envolve, desvia-se dos caminhos e das iniciações; deixa a ciencia por onde passa; nega a magia, que atravessa; e quando chega a Deus não para.

(Esp. 54A-9)

 

Só o contato com qualquer coisa do Vértice, isto é, da Unidade, dá o poder completo, ou alguma coisa completa no poder, sobre nós e as coisas. Nos graus intermédios a força é muitas vezes confusão, e o conhecimento vertigem. É por vezes imprudente aventurar-se o espirito feliz em caminhos para que não tem bússola. Assim é que, sendo Lytton sem duvida um conhecedor de grandes segredos da ordem menor, isso o não privou de ser um péssimo escritor; não houve magia que o fizesse mestre do próprio equilíbrio e dono da sua personalidade. Com ser iniciado, qualquer que fosse o modo em alguns dos misterios do próprio Segundo Limiar, não conseguiu Robert Flood ser senão um expositor confuso e indigesto. Esta falencia do dominio estetico e superior — e a estetica é a saliência da figuração divina, pois a beleza é a forma Divina em matéria — encontra-se freqüentemente em homens que são inegavelmente versados nos misterios do mundo mágico.

 

Certo que estas considerações podem ser tomadas ao contrario: há certas disposições intimas e próprias, que fazem com que o indivíduo seja chamado, e assim ele recebe o que nasceu para merecer. Por isto foi que Shakespeare, desde que a Grande Fraternidade o chamou a si sem lhe falar, pôde adquirir aquele comando de sua própria alma que o ergueu, como expressor, acima de todos os poetas do mundo; por isso é que este homem que não buscou, senão com a substancia intima do seu ser, entrou em mais intima (embora inconsciente) posse dos Segredos Maiores do que o buscador Flood ou o maçon Bacon.

Na Tormenta estão dados mais Íntimos misterios que em todo Flood, e estão dados em beleza, porque teem o sinal de Deus na Matéria, que é essa mesma beleza.

(Esp. 54A-10)

 

A disposição mundana das coisas, que são geradas pelo Fogo, tem a figura do simbolo do Fogo, que é a Piramide (de pyr, que em grego é Fogo). Quer dizer, as Ordens das coisas são Um em cima, Dois no meio, e Três em baixo. São um em cima, porque o vértice é um ponto; são trez em baixo porque a piramide real tem trez faces, cada uma composta de um triângulo equilatero; são dois no meio porque, embora nada no meio seja materialmente, ou numericamente, dois, é dois todavia o que está entre Um e Três.

E assim é que os três graus de significação — o atual ou material, o mágico, e o divino — contêm respectivamente três, duas, e uma ordem, havendo duas pontes, transetos ou passagens, entre a ordem material e a mágica, e a ordem mágica e a divina.

(Esp. 54A-11)

 

O caminho da Serpente está fora das ordens e das iniciações, está, até, fora das leis (rectilineas) dos mundos e de Deus. O caracter maldito, o aspecto repugnante, da Cobra, traz marcado a sua Oposição ao Universo—profundo e obscuro Misterio Magno. Ela é o Espirito que Nega, mas nega mais, e mais profundamente, do que em geral se entende ou se pode entender. Nega o bem no seu baixo nivel, em que é só Serpente e tenta Eva; nega a verdade no seu segundo nivel, nega o bem e o mal no seu terceiro nivel, em que é Satan; nega a verdade e o erro no seu quarto nivel, em que é Lucifer; (ou Venus); nega-se a si mesma e a tudo no seu quinto nivel, e fuga, em que é SS, a Revelação Suprema e a si mesma se tenta e se mata.

Todos os caminhos no mundo e na lei são rectilineos; o caminho da Serpente é a evasão dos caminhos, porque é, substancial e potencialmente, a Evasão Abstrata, o reconhecimento da verdade essencial, que pode exprimir-se, poeticamente, na frase de que Deus é o cadáver de si-mesmo; a descoberta do Triângulo Mistico em que os trez vértices são o mesmo ponto, o segredo da Trindade e do Deus Vivo, que, em certo modo, é o Homem Morto em e através de Deus Morto.

(Esp. 54A-12)

Por Dom Wilians


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