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Verónica Rivas (@veronica.sabah)
(O presente texto esta baseado na palestra que dei no Left Hand Consortium celebrado em Weymouth, Inglaterra, em Março deste ano. )
No Tantra budista, o aspecto feminino está fortemente relacionado com a aquisição de conhecimento, mas é também a expressão do aspecto feroz do Cosmos, que tem na figura da dakini a sua expressão mais completa. Se analisarmos a iconografia das diferentes deusas e espíritos que compõem o panteão tântrico budista, veremos que o princípio da dakini está sempre presente. Podemos encontrar a importância deste princípio nas liturgias por exemplo, desde a descrição da divindade ou espírito até as invocações. A arte tântrica é outro grande exemplo disto, já que este tipo de arte tem como propósito refletir a mente e o Cosmos nas suas diversas manifestações.
Para compreender a função da dakini no budismo tântrico, precisamos considerar dois aspectos importantes: a origem da dakini como entidade espiritual e a maneira como foi amalgamada ao budismo. O conceito da dakini nem sempre fez parte do Budismo e precisou de um longo processo até ser incorporado, mas uma vez que isso aconteceu, tornou-se um dos conceitos filosóficos e práticos mais importantes do Budismo tântrico. É muito difícil definir a dakini, mas é mais fácil abordar seu conceito se o fizermos do ponto de vista do que ele representa dentro do contexto prático. Nas práticas do Budismo Vajrayana(1), bem como em seus ensinamentos, vemos claramente que desenvolver o contato ou vínculo com a dakini é de importância capital, uma vez que sem isso as realizações, – sejam mundanas ou sublimes -, não podem ser alcançadas. A figura da dakini aparece, na maioria das vezes, revestida de um caráter ambivalente, pois ela pode conceder tudo o que um praticante espiritual deseja, mas também pode significar um grande obstáculo e colocar o praticante em um grande risco. O que não falta na literatura Vajrayana são histórias de eventos em que o não reconhecimento de uma dakini pelo praticante ou a desobediência de seus conselhos resultaram em situações de grande perigo ou mesmo morte.
Em determinado momento histórico, e devido às condições sociais imperantes, o ideal do arhat (o sábio que se retira do mundo para transcender sua existência mundana) não era algo que pudesse estar ao alcance da maior parte da população e, em resposta a isso, a Escola Mahayana (2) do Budismo surgiria. O curioso a respeito de tudo isso é que, em certo ponto da história que é difícil de determinar, certos espíritos demonizados se infiltraram no Budismo Mahayana. Começou a ser produzido, na maioria dos casos de forma anônima, um grande número de dharanis (feitiços), e seus autores foram o que muitos chamaram de “monges hereges”. Esses dharanis tinham como objetivo obter condições materiais auspiciosas como riqueza, poder, amor, influência, mas também para fins de cura ou mesmo para a destruição de inimigos. Mas, essas práticas não se enquadravam na doutrina Mahayana e muito menos no que se considerava serem os ensinamentos originais dados pelo Buda Sakyamuni (o Buda histórico). Por outro lado, esses dharanis também significavam que o Tantra já havia penetrado o Budismo Mahayana e isso, junto com outros fatores, deu origem a uma nova escola, a Vajrayana. O amálgama da filosofia tântrica com o Budismo foi um processo gradual e progressivo, que deu origem a muitas controvérsias. O Tantra deu ao Budismo um conteúdo mágico, assim como uma orientação cosmológica e epistemológica que não tinha antes. Para alguns, isso era inaceitável e discutiam que práticas nessa base, com elementos tântricos, podiam ser qualquer coisa menos Budismo.
Ao falar da introdução do Tantra no Budismo, não podemos esquecer de mencionar os grandes sábios (siddhas) conhecidos como “Os 84 Mahasiddhas”, dos quais 4 foram mulheres. Esses mahasiddhas (grandes sábios versados em técnicas tântricas e outros diversos métodos) foram iniciados em várias técnicas e formaram com elas um todo funcional que poderia ser aplicado a diferentes condições e circunstâncias humanas. Estes sábios eram pessoas provenientes de diferentes entornos sociais e económicos, alguns deles tiveram vínculos entre sim de mestre ou discípulo, mas outros aparentemente não se conheceram. Eram considerados grandes magos, para alguns feiticeiros praticantes de magias proibidas, e a maioria deles se caracterizava por ir contra os cânones culturais da sua época. Um desses sábios, conhecido como Dombi Heruka, foi um grande iniciado nos mistérios da deusa Kurukulla e é a ele a quem devemos o Aryatarakurukullakhalpa, uma das práticas (sadhana) mais importantes relacionadas à deusa. Mas quais são os aspectos mais importantes do amálgama do Tantra ao Budismo? Em geral, podemos citar as seguintes:
– A introdução de divindades femininas que ocupam um lugar central.
– A iconografia e representação dessas divindades é altamente erotizada e o princípio feminino, criativo e destrutivo ao mesmo tempo, é profundamente evidente.
– As divindades não representam apenas a natureza real da mente, mas também tudo o que somos e sentimos aqui e agora. O que nos dá prazer e o que nos apavora. O que queremos e o que não queremos. As divindades expressam um aspecto mundano e um sublime e pode-se dizer que este é um dos pilares básicos da filosofia tântrica.
– Uma criação cosmológica em que o Universo é um ser pulsante, em constante transformação e que se manifesta através de um princípio feminino. No Tantra Hindu, isso é evidenciado na figura da shakti e no Budismo Tântrico como prajna. Prajna, entre muitas outras coisas, pode ser entendido como a sabedoria primitiva que é a expressão da verdadeira natureza da mente, e é essencialmente feminina.
No início da sociedade hindu, a palavra dakini tinha um sentido pejorativo. Foi utilizada em relação a mulheres que exerciam profissões que na época eram consideradas ilícitas como a prostituição, por exemplo. Também foi dito que a palavra dakini alude a espíritos de mulheres que em vida se dedicaram a práticas proibidas pelos parâmetros religiosos vigentes, atividades posteriormente classificadas como magia negra. Eles também eram espíritos de mulheres que morreram durante o parto, geralmente dando à luz filhos ilegítimos; ou que tiveram uma morte trágica ou quando muito jovens. As dakinis aparecem como assistentes vorazes de deusas como Durga ou Kali. Elas aparecem relacionadas a campos de batalha, e a locais de morte como cemitérios e locais de cremação. Nestes casos, cumprem o papel de assistentes e mensageiras de deusas que aparecem manifestando o seu aspecto mais terrível.
Este aspecto terrível em certas divindades ou espíritos femininos é encontrado em culturas como a mesoamericana por exemplo, na deusa Tlazolteotl (a grande devoradora), ou na mitologia iorubá na temível Iyami. A deusa Tlazolteotl é representada na figura de uma mulher agachada, da maneira que as mulheres indígenas mesoamericanas pariam, e enquanto ela dá à luz, também devora. Mas essa posição da deusa também foi interpretada, especialmente pelos missionários cristãos, como altamente erótica, sugestiva e, portanto, imoral. Esta também foi considerada uma posição de poder, onde a deusa, mostrando sua vagina, exerce um poder de atração e dominação ao mesmo tempo. Diz-se que as mulheres nahuatls e maias, durante os rituais lunares, também adotaram essa postura como expressão de divindade.
Tlazolteotl foi no início uma deusa de caráter agrícola, mas com o passar do tempo e com a introdução de novos pontos de vista cosmológicos, foi adquirindo atributos diferentes. Ela foi progressivamente se transformando em uma deusa feroz e sua conexão com o submundo começou a ser estabelecida. No Códice Borgia, a deusa aparece rodeada por certos espíritos femininos chamados Cihuateteo. Esses espíritos eram temidos pela maioria, já que se dizia que eles desceram do céu na forma de estrelas que caíram na terra trazendo calamidades e destruição. Diziam que eram mensageiros de deuses terríveis do submundo. Essas Cihuateteo eram espíritos de mulheres que morreram no parto ou na primeira gravidez. Em alguns casos, também eram mulheres que tiveram mortes violentas. Os guerreiros que iam para campo de batalha acreditavam que se levavam consigo uma parte do corpo de uma mulher que havia morrido em alguma das circunstâncias descritas acima, – especialmente um braço ou uma mão -, teriam proteção das Cihuateteo e seriam vitoriosos na guerra. De acordo com algumas interpretações e seguindo as imagens do Códice Borgia, Tlazolteotl parecia ser quem comandava esses espíritos femininos.
Tlazolteotl (Codice Borgia)
Cihuateteo
Por outro lado, na mitologia Yoruba, temos a presença da Iyami. Na cultura Yoruba, o poder divinizado feminino é expresso por meio de Iyami (“minha mãe”). Em geral, a Iyami é a expressão da “grande mãe ancestral”. A figura da Iyami separa-se da imagem da mãe benevolente e surge como princípio ativo que ao mesmo tempo constrói e destrói. Ela representa a sabedoria ancestral, que é tão elevada e tão perfeita que não pode ser personificada ou representada em todo o seu esplendor. A Iyami era muito temida, pois se dizia que ela estava sempre furiosa e pronta para se vingar. Para isso, era celebrado um ritual denominado Gèlède, que é basicamente um ritual cuidadosamente executado para homenagear o poder feminino, aplacar sua cólera, honrar e invocar o poder ancestral da mulher pássaro (como é chamada a Iyami) para que os practicantes tornem capazes de usar esse poder de forma benéfica. A Iyami representa o poder feminino que tem seu centro de expressão na vagina das mulheres.
Esse poder da mãe ancestral se expressa da maneira mais terrível no poder do Ajé, das temíveis feiticeiras. Elas são tão temidas que ninguém é encorajado a sequer pronunciar seus nomes. Elas são referidas como Eleiye (a dona do pássaro) e esses poderes são sintetizados no que se conhece como Iyami Oxoronga. Iyami Oxoronga não aparece como tal, mas se manifesta por meio de feiticeiras e alguns Orixás femininos. Segundo algumas fontes, o orixá feminino chamado Oxum (dona dos rios e cachoeiras, da fertilidade e abundância e quem também governa o ventre das mulheres) é uma das principais Yami Ajé e neste aspecto é chamada de Iyalodé, que é o nome dado a quem comanda o culto de Iyami Oxoronga.
Iyami Oxoronga (autor desconhecido)
Encontraremos quase todos esses atributos anteriormente mencionados na figura da dakini e em sua iconografia. Parece que a inscrição mais antiga em que a palavra dakini aparece é de 423-24 DC, encontrada em Ganghadar. Nesta inscrição, as dakinis aparecem ligadas às Matrikas. As Matrikas são um grupo de deusas que, no Hinduísmo, quase sempre são representadas juntas. Em algumas fontes, existem sete, mas outras adicionam uma oitava. Uma das Matrikas é Chamunda. O interessante aqui é que todas as outras deusas deste grupo são emanações de deuses. Por exemplo, Vaishnavi emanou de Vishnu, Maheshvari de Shiva, Varahi de Varaha, mas Chamunda emanou de Devi (o próprio princípio divino feminino). Essa deusa é considerada a líder das Matrikas e é aquela que é representada em seu aspecto mais temível. Nas histórias mais antigas, essas deusas eram relacionadas a aspectos terríveis e eram muito temidas. Elas deviam ser reverenciadas para aplacar sua ira, caso contrário, doenças de todo tipo se estenderiam, assim como a infertilidade da terra e das mulheres. Diz-se também que costumavam devorar crianças quando não eram devidamente adoradas, especialmente Chamunda que, em suas origens tribais, gostava de sacrifícios animais e humanos. Se dizia que ela era comumente encontrada em locais relacionados à morte como cemitérios e vertedouros de cadáveres (3). Se olharmos para sua iconografia, sua relação com esses aspectos é mais do que evidente. As características das Matrikas foram se suavizando com o passar do tempo, e nas histórias posteriores também as vemos mostrando um aspecto um pouco mais benevolente, de grandes protetoras para aqueles que as adoravam, mas não perderam completamente seu aspecto temível.
Matrikas
Chamunda (Museu Británico)
Alguns estudiosos atribuem a mudança no papel das dakinis nas práticas espirituais à elevação da figura da deusa no Hinduísmo. O Devi Mahatmya, que faz parte do Markandeya-purana, é citado como uma obra de capital importância a esse respeito. Este texto, que parece ter sido escrito entre os séculos V e VI DC, é um texto muito importante no que diz respeito ao estudo da figura da dakini, porque coloca a figura da deusa (Devi) como centro da criação. Neste texto, a figura da deusa aparece em seu aspecto benevolente e maternal (Ambika), e também em seu aspecto feroz e violento (Chandika). Resumindo a estória que conta, podemos dizer que os deuses foram derrotados pelos demônios chamados asuras e o asura Mahinsa tornou-se supremo. Da combinação da energia de todos os deuses emergiu uma deusa em corpo adulto e com uma aparência muito bonita e de grande poder chamada Chandika (um dos nomes dados a Durga). Foi a deusa quem derrotou os asuras, então ela é o centro de adorações neste texto.
Este texto é importante desde diferentes ângulos. Por um lado, o processo de criação é diferente do que podemos encontrar em outros textos hindus. Por outro lado, na verdade a energia da deusa já existia como a energia que cria e sustenta o Universo, mas para esse propósito específico, os deuses a fazem se manifestar na forma de uma deusa guerreira para restaurar o equilíbrio do Cosmos. Mas, por outro lado, diz-se que a deusa é a manifestação feminina do deus Shiva. Então Chandika (Durga), sendo modelada pela energia de todos os deuses, representa o néctar de todos os deuses, e o fato de que o Cosmos se manifesta como um princípio feminino. Também que o equilíbrio do Cosmos é restabelecido por uma manifestação irada do princípio feminino.
Agora, para considerar o que a figura da dakini no Budismo Vajrayana representa, seria interessante notar que Lawrence Austin Waddell em 1895, um dos pioneiros nos estudos tibetanos, define as dakinis como seres demoníacos que concedem siddhis ou poderes aos praticantes, e que os seguidores da escola Vajrayana procuram com fervor o contato com esses seres. (citar fonte) Por outro lado, em 1903, outro estudioso, Sarat Chandra Das, em seu Dicionário Tibetano-Inglês, expressa que, etimologicamente, a palavra “dakini” significa “aquela que voa pelo ar”, ou “aquela nascida daqueles que se movem pelo céu”. A palavra mkhak-hgro-ma é equivalente à dakini em tibetano.
Mkhah-hgro-ma: uma classe, principalmente de fadas femininas, semelhantes às nossas bruxas, mas não necessariamente feias ou deformadas. Existem dois tipos de khadoma: – aquelas que ainda estão no mundo e aquelas que já passaram por nosso mundo ou estão prestes a falecer. (Chandra Das 1903: 180-181)
Mas, este autor também nos diz que a palavra Mkhah-hgro-ma também pode ser usada para se referir a uma mulher que alcançou uma grande evolução espiritual e é reconhecida por seus ensinamentos e sabedoria. Alguém reconhecida como uma grande mestra, que tem a habilidade de ensinar e transmitir ensinamentos para a evolução espiritual e liberação dos seres.
A estudosa Judith Simmer-Brown, no seu livro O Cálido Hálito das Dakinis (The Dakini’s Warm Breath) fala sobre a dificuldade de classificar as dakinis dentro do Budismo e distingue, a modo geral, dois grandes grupos: as dakinis mundanas e as dakinis completamente liberadas. Dentro da literatura budista se diz que uma habilidade que o praticante deve se focar é saber reconhecer uma dakini. Muitas vezes, uma dakini completamente liberada pode se apresentar ou se manifestar como uma dakini mundana. As dakinis mundanas devem estar sempre sob o comando de uma divindade ou de uma dakini completamente liberada. As dakinis mundanas podem ser de grande ajuda para o praticante, mas também podem se apresentar para o enganar, e isso causaria um grande retrocesso para o praticante. Estas dakinis estão ainda sujeitas ao ciclo de renascimento e morte, mas dependendo de vários fatores elas podem se tornar dakinis completamente liberadas.
A manifestação tibetana da dakini mundana está intimamente relacionada à sua precursora indiana, pois ela surge como um demônio ou carniçal com seu arsenal de poderes e exércitos, que causam calamidade ou dano dependendo da seriedade de suas intenções. Seu gosto pelo sabor da carne e do sangue humano continua desde suas formas anteriores. Essas dakinis vagam por aí, não afiliadas e indomáveis, criando o caos em muitas situações, inconstantes e aterrorizantes. Eles incorporam magia e poder mundanos, assombrando suas vítimas em cemitérios e vertedouros de cadáveres, em lugares onde cadáveres apodrecem. Elas também habitam montanhas e nascentes, e servem como protetoras regionais. (Simmer-Brown 2002: 55)
Dakini Padma (Tibet 1700- 1799)
Diz-se que as dakinis pertencem a um lugar mítico chamado Orgyen, Uddiyana ou Odiyana, o qual é chamado de “a Terra das Dakinis”. Este lugar é frequentemente descrito como um lugar montanhoso, cheio de cavernas e árvores frondosas e antigas. Diz-se que as dakinis se reúnem neste lugar celebrando grandes festas e outorgando iniciações aos praticantes. Este lugar é considerado uma Terra Pura, e se diz que os grandes praticantes, quando deixam o mundo físico, se retiram para esse lugar. As dakinis podem aparecer em sonhos, em visões, durante a meditação ou através de alguém na rua, até mesmo um animal. Elas podem ser encontradas em lugares como cemitérios ou lugares relacionados com a morte, cavernas, bosques com árvores antigas, encruzilhadas, mercados na rua que reúnem um grande volume de pessoas, entre outros. Seus ensinamentos, assim como as suas aparições, nem sempre são de forma benevolente, em alguns casos incluem manifestações iradas e causam verdadeiro pavor no praticante.
Vamos analisar os aspectos que temos mencionado até aqui na figura da deusa Kurukulla através da sua iconografia. Mas primeiro é importante fazer uma pequena menção sobre a importância da visualização nas práticas tântricas e especificamente na escola Vajrayana. Desde um ponto de vista filosófico, o Vajrayana postula a existência de uma realidade que flui incessantemente, mas que não tem um sustento real além da mente que a cria e a pensa. Dessa forma, a realidade é uma exibição ilusória da mente. Tudo o que percebemos e experimentamos é um tipo de construção que não possui uma realidade inerente. Essa base filosófica é o que sustenta a metodologia tântrica, pois da mesma forma que percebemos como real uma montanha, um lago, qualquer edifício ou pessoa diante de nós, a percepção de uma divindade não é diferente desta. A realidade que uma divindade tem quando a visualizamos diante de nós ou em nós mesmos não é menos real do que nosso reflexo no espelho ou as pessoas com quem estabelecemos vínculos em nossa vida cotidiana. A visualização no contexto do Vajrayana é um dos componentes mais importantes da prática, pois por meio dela a realidade é criada. Por meio de símbolos que aparecem associados às divindades por exemplo, e que têm um efeito específico em nossa percepção, adquirimos uma nova compreensão do que é nossa mente. Em outras palavras, e usando outra terminologia, poderíamos dizer que o que existe é energia que se configura de maneiras diferentes, e nossa mente é responsável por essa configuração. Desse modo, se mudarmos a forma como nossa mente funciona, podemos modificar qualquer realidade que nos apareça, pois, no final, é simplesmente uma construção que não é permanente e está em constante fluxo e mudança.
A deusa Kurukulla teve sua origem como uma deusa tribal relacionada à fertilidade e proteção, que foi introduzida no panteão budista como a personificação da Energia Primordial, e por isto ela é a corporificação de prajna. Ela é uma deusa relacionada à magia, ao amor, ao magnetismo e à subjugação. É considerada uma dissipadora de obstáculos do caminho espiritual, bem como a fonte de realizações supremas. Kurukulla é representada como uma força essencialmente feminina que incorpora toda a força da feminilidade, sendo esta uma força geradora, pacificadora mas, ao mesmo tempo, devoradora e assustadora. Em Kurukulla, os opostos são diluídos e ela representa o próprio conceito de transformação. Ela transborda sensualidade, poder, força e nos cativa com sua sexualidade, que está representada, não somente em seu corpo, mas também em suas armas e elementos iconográficos. Ela representa o princípio devorador do poder feminino da criação. Nas práticas litúrgicas que se conhecem, vemos que a deusa é invocada para assuntos amorosos, para ter sorte e prosperidade, para atrair condições auspiciosas na vida, mas também para subjugar a vontade de alguém e até para se livrar de inimigos. Em alguns casos, Kurukulla é invocada para presidir rituais de exorcismos.
Kurukulla (Tibet 1700 – 1799)
Kurukulla é o guru, então ela é a mestra perfeita e o caminho para todas as fontes de conhecimento. Ela é a dakini, a própria fonte da sabedoria, de empoderamentos e iniciações:a chave sem a qual não podemos ter sucesso em nenhum caminho espiritual. Ela é a yidam, a própria natureza de nossa mente. Ela representa os ensinamentos internos, externos e secretos. O yidam é o próprio princípio do prajnaparamita, é a própria mente iluminada. Ao mesmo tempo, o yidam é inseparável da dakini porque ela também é a unidade do vazio e a sabedoria. Kurukulla às vezes é vista como uma Padma dakini da direção leste. As dakinis desta direção são consideradas maliciosas, complicadas, difíceis de se lidar, e representam o aspecto magnetizante da mente iluminada. Geralmente são representados na cor vermelha, como seres muito sensuais e com aspecto irado ou semi-irado. Algumas fontes destacam a função de Kurukulla como chefe das dakinis.
O tantrismo usa a experiência simbólica, a mente arquetípica como base de suas técnicas. Por meio dos símbolos é possível penetrar na mente de uma maneira muitas vezes imperceptível e, com isso, a reação da própria mente é minimizada. A representação de uma divindade é um elo entre nossa mente dualística e a natureza perfeita inerente a nós. É fato que nossa mente é agitada, os pensamentos se sucedem sem cessar um trás outro. Através dos símbolos que são incorporados à divindade há uma forma de acessar as realidades internas e vê-las desde uma perspectiva diferente e mais integral. E, ao mesmo tempo, acalma nossa mente a qual fica absorvida na exibição iconográfica.
Os principais elementos iconográficos que podemos ver em muitas das imagens de Kurukulla que mostram seu aspecto de dakini são os seguintes:
– Sua postura dançante e insinuante. Na tradição tântrica budista, as dakinis são a personificação da sabedoria e a expressão dessa sabedoria como vazio. Sua postura de dança representa a aniquilação do ego e de todo apego. Representa também a impermanência de nossas experiências.
– Ela está seminua, pois aqui é enfatizado o princípio feminino e fonte de toda existência. A natureza primitiva da mente, sem maculas e perfeita. Em algumas representações ela usa uma saia de pele de tigre que representa sua natureza selvagem e indomável. Alguns autores interpretam que, como geralmente na mitologia hindu os seres demoníacos são representados de certa forma antropomorfizados com aspecto de animais selvagens, o fato da deusa usar uma saia assim representa seu domínio sobre este tipo de seres.
– Ela está sobre um cadáver. Em algumas fontes, isso alude à transcendência do ego. Mas, do meu ponto de vista, também representa que sua existência está além dos conceitos de vida ou morte. A transcendência da experiência da vida humana que é o resultado da própria prática.
– Ela tem um só rosto. As Dakinis são geralmente retratadas com uma única face, que neste caso representa a não dualidade.
– A guirlanda de caveira ou uma guirlanda feita de cabeças decapitadas sangrando são outro atributo importante das dakinis. Provavelmente é herdado de sua associação com deusas como Chamunda. Elementos como crânios, cabeças decapitadas e sangrando e cadáveres representam a decadência da vida, brutalidade e morte. Elas representam que essas são fases inevitáveis da vida. Fazem parte da nossa experiencia mundana, mas também na divindade representa a transcendência desse ciclo. Aqui é bom lembrar que, desde um ponto de vista tântrico, o mundano e o sublime são exatamente o mesmo, mas dependendo do estado da nossa mente, nos identificamos com um o outro.
– A flor de Lótus representa a nossa natureza intrínseca. Um lótus pode florescer no meio da lama e ainda assim mostrar a sua beleza. Representa que apesar das condições externas, apesar do que pensamos sobre nós mesmos e como vivemos nossa vida, nossa natureza não é poluída, é perfeita, e é a própria sabedoria.
– Ela pertence à direção leste. A direção oeste é considerada pertencente à família Padma. (Temos cinco famílias búdicas: Família Padma, Família Buda, Família Karma, Família Ratna e Família Vajra. Cada família representa uma expressão da mente iluminada e como praticantes, geralmente somos mais influenciados por uma delas. Nosso tipo de prática dependerá disto). É por isso que às vezes ela é chamada de Padma Dakini. A direção leste correspondente ao Buda Amitaba, que é representado pela sílaba HRIH. (mostrar a imagem). Por esta razão, esta sílaba é a sílaba semente de Kurukulla. Podemos trabalhar com ela, invocá-la, apenas visualizando essa sílaba, por exemplo.
– As armas mais representativas de Kurukulla são o arco e a flecha e o gancho. Elas representam a união da sabedoria e o método pelo qual podemos despertar nossa sabedoria intrínseca. Mas elas também representam o poder de comando e subjugação. Esses atributos são representados nas dakinis na faca em forma de gancho (kartik) que elas geralmente exibem. A faca em forma de gancho também representa que uma dakini corta o letargo e a preguiça de nossa mente.
Na sadhana (texto ritualístico) dedicado à deusa Tara Vermelha, revelado como um terma (tesouro da mente que leva à iluminação) por Apong Terton, encontramos uma seção dedicada aos Protetores da Deusa Kurukulla. Diz-se que os servir facilita muito o caminho para realizar a deusa. Então são chamadas as dakinis das quatro direções. Elas apareceram de forma antropomórfica: no leste, a dakini branca com cabeça de leão (ela segura um gancho e um machado); no sul, a dakini amarela com cabeça de leopardo (ela segura um laço e uma pedra preciosa); no oeste, a dakini vermelha com cabeça de garuda (ela segura uma corrente e um vaso) e na direção norte, a dakini verde com cabeça de serpente (ela tem um sino e uma taça de crânio cheia de sangue). Esta sadhana reforça o fato de que as dakinis possuem as chaves de todas as portas e, se um praticante tântrico não as adora, não há progresso espiritual que possa ser realizado ou atingido.
Eu gostaria de terminar esta breve análise deste aspecto da deusa Kurukulla com o que Lama Allione Tsultrim diz sobre as dakinis. Ela expressa que a dakini representa o fluxo da energia em constante mudança, com o qual o praticante deve trabalhar para se tornar realizado. E então Lama Tsultrim expressa:
Acho que essa energia espiritual luminosa e sutil é o significado do conceito da dakini. Ela é a chave, a que abre o portão, e a guardiã do estado primordial incondicionado que é inato em todos. Se não estou com vontade de brincar com ela, ou se tento forçá-la, ou se não a invoco, o portão permanece fechado e fico na escuridão e na ignorância. (Allione 2000: 28)
Notas:
(1) Vajrayana (Veículo do Diamante), também conhecido como Mantrayana, é uma escola do Budismo tântrico que se desenvolveu na India mas que antingiu um grande esplendor em países como Tibet e Nepal.
(2) Mahayana (Grande Veículo) é um dos dois grandes ramos do Budismo (a outra é a Theravada). O Mahayana se refere ao caminho do Bodhisattva, aquele que procura a iluminação pelo beneficio de todos os seres. De acordo com algumas fontes, o Vajrayana seria um ramo do Mahayana, mas não existe concenso sobre isto entre os académicos.
(3) Decidimos traduzir o termo “charnel ground” como “vertedourdo de cadáveres”. O termo se refere a um lugar aonde os cadáveres são despostos seja para enterrar ou para cremar. Desde o ponto de vista espiritual, sobre todo dentro do contexto tântrico, o termo tem o siginificado de trascendencia do ego, e esta ligado também ao apego e ao medo da impermanência.
Bibliografia:
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Simmer-Brown, Judith. The Dakini Warm Breath. The Feminine Principle in Tibetan Buddhism. Ed. Shambhala. USA, 2002.
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Coburn, Thomas. Devi Mahatmya. The Crystallization of the Goddess Tradition. Ed. Motilal Banarsidass. Delhi, 1984.
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