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por Felícia Guerreiro, revisado por Ícaro Aron Soares.
É fácil dizer que uma mulher é qualquer pessoa que se identifique como tal. E por mais que isso seja verdade, não anula o quanto mulheres trans não-binárias muitas vezes acabam se sentindo sozinhas e menos mulheres que as outras.
Depois que uma mulher trans se assume como mulher, há uma pressão social para que ela entre no binário. “Faz a barba”, “usa maquiagem”, “anda direito” muitas vezes parecem ordens dadas pelo bem da passabilidade e da heteronormatividade em vez de serem simples sugestões para ela experimentar durante a transição.
E se eu preferir chamar minhas amizades de “cara”, “meu” e “maluco” no lugar de “miga”? Será que eu perco minha feminilidade?
Estive falando com algumas garotas trans sobre isso. Em particular com algumas que se identificam com a comunidade lésbica. E parece ser um desafio ser uma mulher trans e uma Butch ou uma Tomboy ao mesmo tempo. Só consigo imaginar como mulheres trans de outras identidades femininas não-binárias devem se sentir.
O desejo pela passabilidade muitas vezes pode acabar oprimindo o desejo dessa mulher de expressar a sua feminilidade como ela quiser. “Eu adoro meu colete e minhas gravatas, mas se eu usar isso na rua as pessoas vão achar que eu sou homem.” Mesmo sabendo que roupas não tem gênero de verdade, a ideia de situações sociais com pessoas nos tratando pelos pronomes errados tem potencial de ser bastante assustadora.
Mas muitas vezes, como pessoas cis estranhas nos veem não é a única barreira contra diferentes formas de expressar feminilidade.
Centros de acolhimento de pessoas transgênero podem muitas vezes nos afastar mais da comunidade trans do que nos aproximar.
Indo para o CPATT (Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais) de Curitiba, eu me vi de frente para um tipo de feminilidade que eu não conhecia. É ótimo conhecer outras mulheres trans e ver como cada uma delas expressa sua feminilidade de forma diferente, mas não é legal quando você se vê socialmente obrigada a tomar parte desse tipo de expressão.
Colegas de sala de espera e a própria psicóloga me pressionam a ser “mais feminina”. E a mesma coisa acontece com outra garota com a qual conversei. É claro que nenhuma dessas mulheres quer nos fazer mal nos chamando de “miga”, esperando que nós cheguemos de saia para a próxima consulta, dando dica de cabelo e maquiagem, ou falando dos points da cidade bons pra “caçar macho”. Mas isso não somos nós.
Esse tipo de “comentário amigável” vindo de outras mulheres trans pra mulheres como eu (que não se encaixam no binário heteronormativo) faz com que nós não nos sintamos bem-vindas em meios trans. E muitas vezes nós acabamos nos sentindo “menos mulheres” ou “menos trans”.
Geralmente eu sinto mais facilidade em me aproximar de homens trans do que de mulheres trans por causa desses “comentários amigáveis”. Homens trans em geral, pra alguém de fora dos círculos principais pelo menos, parecem ser mais tranquilos em relação às formas de expressar as próprias masculinidades, então eles parecem ligar menos ainda pra forma como mulheres trans expressam a feminilidade delas.
E eu não sou a única que se sente mais a vontade perto de homens trans. Uma dessas garotas que comentei, ela se identifica como Butch, uma variação do gênero feminino dentro da cultura lésbica que geralmente é vista como “masculinizada”. Ela disse que só conseguiu encontrar mulheres trans com as quais ela conseguia se identificar em um evento sobre transição FTM. Sente a ironia.
A forma como eu expresso minha feminilidade é baseada nas minhas amigas de infância e adolescência. Cabelos curtos, camisas xadrez, muito Rock ’n’ Roll e Videogame, falando palavrão mas não xingando ninguém, chamando as pessoas de “cara”, e só usando saia ou maquiagem quando tá afim. Estes são os exemplos de mulheres que eu tive e quis seguir. Mas por que isso faz de mim uma pessoa masculina?
Se uma mulher cis pode fazer isso tudo sem deixar de ser mulher, por que não eu? Por que isso me tornaria homem?
Não. Nada disso faz de mim um homem. Essas coisas fazem de mim a mulher que eu sou. “Mulher transfeminina variante Tomboy” como eu gosto de me chamar. Eu demorei pra encontrar pessoas e meios nos quais eu me sinto plenamente confortável pra ser uma tomboy, mas eu encontrei.
Então se a sua forma de expressar o seu gênero estiver fora dos padrões binários heteronormativos, quer essa expressão seja parecida com a minha ou algo completamente diferente, não se envergonhe dela.
Eu sei que é difícil ignorar os olhares feios, os comentários impertinentes, e que dói MUITO sentir que você não pertence a lugar nenhum, nem aos meios trans. Mas não desista!
Seja qual for o seu gênero ou a forma de expressá-lo, ele é válido. Ninguém tem o poder de tirar o seu gênero de você. Você tem todo o direito de ser quem é.
E se você ainda não encontrou o lugar ao qual você e o seu gênero pertencem, eu tenho certeza de que um dia você o encontrará.
Icaro Aron Soares, é colaborador fixo do projeto Morte Súbita, bem como do site PanDaemonAeon e da Conhecimentos Proibidos. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares e @conhecimentosproibidos.
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