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Paulo Jacobina [1]
O tema liberdade costuma ser alvo de contínuo debate na sociedade. Liberdade de expressão, de ir e vir, de pensamento, de religião, são apenas algumas das manifestações do assunto. Independentemente da área, o debate sempre se relaciona com a questão da extensão da Liberdade. Isso é, se ela é absoluta ou relativa e, sendo relativa, qual o seu grau.
No tocante à questão de a liberdade ser absoluta, uma análise simples é o suficiente para se encontrar a resposta. A própria biologia do corpo humano atua como limitador de alguns de seus desejos, a exemplo do de voar. Pode ser argumentado que, apesar de ser biologicamente impossível um ser humano voar, ele pode fazer uso de ferramentas, como um avião, para realizar o feito. De fato, tal pensamento é verdadeiro, porém estabelece, nele mesmo, uma limitação à ideia de liberdade. Se para voar, a pessoa necessita de ferramentas, ela se torna automaticamente dependente delas e, consequentemente, a sua liberdade se encontra condicionada a esse fator de relatividade. Até mesmo algo supostamente simples como permanecer parado se torna relativo se for levando em consideração que o planeta está em constante movimento e que as partes que formam o organismo também se encontram em movimento.
Verificada que, em se tratando da existência manifesta, a Liberdade não ocorre de maneira absoluta, adentra-se a análise de alguns de seus tópicos limitantes.
O primeiro deles e que já foi comentado é o biológico.
Amparada pela Química, a Biologia possui uma série de “regras” de funcionamento e possibilidades. Toda a estrutura biológica conhecida na Terra faz parte de uma mesma “árvore da vida”, isto é, um sistema de desenvolvimento e derivação que tem origem em um ponto em comum. A título ilustrativo, atualmente, são conhecidos cerca de 100 (cem) diferentes tipos de aminoácidos, entretanto, todos os seres conhecidos fazem uso de apenas 20 (vinte) tipos para construírem as suas proteínas[1]. Isso significa que, apesar das possibilidades teorizadas de se constituir estruturas biológicas com base nos demais tipos de aminoácidos[2], o padrão biológico conhecido na Terra segue uma matriz relativamente conhecida.
Apesar de ter uma mesma base organizacional e, em certos pontos, apresentar uma redundância capaz de gerar uma sobreposição de efeito final[3], ainda assim os seres vivos apresentam diferentes limitações que são intransponíveis do ponto de vista biológico. Apesar de extremamente complexa[4], a estrutura da visão humana não é capaz de captar a mesma quantidade de ciclos que um Spermophilus lateralis [5], além de captar, por limitações de sua própria estrutura óptica, uma faixa de espectro luminoso reduzido se comparado ao de uma abelha. Tais características limitam o ser humano em sua percepção do Ambiente e, por mais que se esforce ou se julgue livre, a sua visão se encontra limitada ao aparelho óptico que possui.
Reconhecendo a sua limitação biológica e conhecendo as leis que regem do Universo, o ser humano é capaz de criar ferramentas capazes de captar aquilo o que biologicamente ele não consegue. Todavia, mesmo ao fazer uso de ferramentas como aparelhos que captam Raios-X, ainda assim há a necessidade de se realizar uma conversão de um padrão não perceptível ao olho humano para um que ele seja apto a observar, demonstrando que, mesmo na transposição da limitação, ainda assim ela irá se manifestar exercendo a sua influência.
O segundo tópico limitante carrega consigo algumas similaridades com o anterior, pois, enquanto o primeiro aborda as questões biológicas, este trata das questões de natureza física.
Segundo as leis da Física, todo corpo que possui massa distorce o espaço-tempo gerando uma força denominada gravidade[6]. Em decorrência da gravidade, corpos de pequena massa, como um ser humano, ao adentrarem no campo gravitacional de um corpo com mais massa, a exemplo da Terra, encontraram dificuldade de deixar aquela região em função do processo atrativo.
Contudo, ao se conhecer as leis da Física, uma pessoa pode estabelecer a velocidade de escape gravitacional[7] e, assim, construir um aparato capaz de superar a atratividade do planeta e realizar viagens espaciais. Assim, ainda que limitado pela Física, ao conhecer as regras daquilo que a limita, a pessoa tem a possibilidade de construir um aparato capaz de superar a atração gravitacional.
Um terceiro tópico limitante da Liberdade se encontra na expressão da sociedade na qual o indivíduo se encontra.
Em sua obra mais famosa, Leviatã (1651), o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679) apresenta o pensamento de que o “instinto” humano seria o de priorizar os seus interesses pessoais, contudo, paradoxalmente, o estabelecimento de interesses comuns aos demais membros da Sociedade se revela mais vantajoso[8] e, por isso, os indivíduos aceitam integrar uma coletividade. O pensamento do filósofo inglês acaba por apresentar semelhanças com a estrutura proposta no modelo de Teoria dos Jogos do “Dilema do Prisioneiro”.
Independentemente de se concordar ou não com a ideia de que “o homem é o lobo do homem”, o pensamento do filósofo inglês, assim como outros pensadores, aborda a questão da limitação no exercício da Liberdade[9]. Apesar de supostamente ilimitada, a Liberdade de ação social de um indivíduo se encontra intrinsecamente limitada pela organização social na qual ele se encontra inserido. Essa limitação se revela por intermédio dos conceitos sobre moralidade, que visam determinar o que é certo e errado na sociedade, mas também nos mecanismos de coação destinados tanto a fazer cumprir os desígnios morais, quanto a manter a estrutura vigente.
Por mais que a questão da moralidade seja tratada por muitos pensadores ao longo da história, muitos destacam a necessidade de ela ser conjugada com mecanismos coercitivos práticos. Isso se dá pelo fato de que, embora a pressão interna que uma pessoa possa ter para se encaixar, naquilo o que alguns chamam de “efeito manada”, ainda assim, existem situações nas quais a pessoa pode descumprir o que é coletivamente estabelecido.
Sobre essa questão da moralidade, o psicólogo estadunidense Lawrence Kohlberg (1927 – 1987) desenvolveu uma teoria do desenvolvimento moral com características estruturais. A estrutura apresentada por Kohlberg é baseada em seis estágios que se dividem em três níveis: o pré-convencional, convencional e o pós-convencional[10].
O nível pré-convencional está vinculado a questões de efeito imediato e centrado na ideia do “eu” da pessoa. O estágio 1 é o da estrutura de castigo e obediência, isto é, a moralidade se encontra em observar uma regra e segui-la em sua literalidade objetivando não ser punido. Já o estágio seguinte trata de uma questão relacionada a trocas. A pessoa segue as regras quando forem do seu interesse imediato e pode realizar trocas com outras pessoas, desde que atendam aos seus objetivos.
No nível convencional a moralidade começa a deixar a questão do “eu” pessoal e adentra numa relação de comparação entre visão do mundo e expectativas coletivas. Nesse nível, o estágio 3 apresenta a ideia do conformismo no sentido de que a pessoa busca desempenhar um papel que ela entende ser o esperado dela pelas figuras de autoridade. Aqui, o foco se encontra na manutenção dos papéis sociais e conceitos como gratidão e respeito começam a serem incluídos nas relações ao passo em que o estágio 4 apresenta características bem similares. Porém, enquanto no estágio 3 existe uma figura de autoridade concreta, no 4 essa figura dá lugar à sociedade como figura abstrata.
No nível pós-convencional, a pessoa tem a crescente percepção de que, embora os indivíduos façam parte da sociedade, eles são entes separados e, portanto, as regras consideradas inconsistentes com essa percepção devem ser abolidas em prol de outras de caráter verdadeiramente universais. No estágio 5, passa-se a compreender que existem diferentes visões e perspectivas sobre as coisas e, portanto, torna-se necessário fazer um cotejo entre elas buscando encontrar aquela que seja mais abrangente. Enquanto no estágio 6, compreende-se que as normas sociais só têm validade se derivarem diretamente de princípios universais e, quando isso não ocorre, torna-se necessário atuar de maneira contrária às normas sociais. Nesse estágio, a pessoa atua no mundo porque é correto agir e não por conta de uma obrigação instrumental, isto é, a pessoa abandona as práticas relacionadas ao Imperativo Hipotético e adentra no Categórico kantiano, no qual a ação é um fim em si e não um meio.
Importante destacar que, enquanto os estágios do nível pré-convencional são alcançados naturalmente pelo desenvolvimento do aparelho psíquico da pessoa, os demais estágios demandam de uma interação exterior para o aprimoramento[11]. Tal fato denota a importância de uma sociedade harmonizada ou, na sua ausência, de grupos capazes de auxiliarem no desenvolvimento das etapas de moralidade das pessoas.
O quarto tópico limitante da Liberdade está correlacionado com a questão da moralidade presente no terceiro, no ímpeto dos desejos, da doxa.
Como ser manifesto, toda pessoa é provida de uma porção material, que algumas correntes de pensamento chamam de “corpo material”. Tal “corpo” também é representado pelos quatro elementos, fogo, água, ar e terra, e é a esse corpo que os desejos se encontram vinculados. Embora costumem ser tratados de maneira pejorativa, os desejos são necessidades básicas que essa porção da pessoa tem, e, portanto, podem estar ou não em sintonia com a Harmonia do Uno.
Fazendo um paralelo com A Theory of Human Motivation[12] proposta pelo psicólogo estadunidense Abraham Maslow (1908 – 1970), é possível se estabelecer que os quatro primeiros grupos de necessidades (fisiológicas; de segurança; de amor; e de estima) estão ligados aos quatro elementos simbólicos da composição do “corpo material”, enquanto o quinto grupo de necessidades, a autorrealização, está vinculado a demandas que não advém dessa porção. Dessa forma, as necessidades fisiológicas correspondem às da terra; as de segurança, às do ar; as de amor, às da água; enquanto as de estima correspondem às do fogo.
Uma vez que são necessidades, as demandas oriundas dessas parcelas que compõem a pessoa são inevitáveis e, por isso, atuam incessantemente de maneira a restringir a Liberdade. A fome[13] (fisiológica/terra), por exemplo, tem a capacidade de modificar o processo do pensar, como constatado no estudo sobre sentenças judiciais e alimentação[14]. E, por mais que se possa mitigar a sua influência ao comer alguma coisa, a necessidade de se alimentar continua latente na pessoa coagindo o seu processo de decisão e de escolha.
Verifica-se, então, que o aspecto psicológico de uma pessoa, aqui compreendido de forma a incluir o emocional, apresenta limitações ao conceito de Liberdade de maneira similar ao que ocorre nos demais aspectos existenciais, físico, biológico e social. Nesse sentido, é possível inferir que no plano existencial não existe aspecto onde a Liberdade seja plena e, talvez, que ela de fato nem exista.
Apesar de apresentar um tom pessimista, a constatação de que a Liberdade pode não existir no mundo Manifesto carrega, pelo menos, dois aspectos que podem determinar justamente o contrário.
O primeiro aspecto que pode demonstrar a existência da Liberdade, encontra-se na relação com aquilo que impede a sua existência.
Ao se verificar que em todos aspectos da Manifestação existem influências que atuam sobre uma pessoa de maneira a impedir que ela seja plenamente livre, estabelece-se uma relação entre a pessoa e a fonte da limitação. Apesar de não poder escapar da lei da gravidade, uma pessoa pode conhecê-la e contorná-la. Mesmo não sendo biologicamente capaz de enxergar além do espectro violeta e aquém do vermelho, a pessoa pode criar mecanismos destinados a superar essa limitação. O mesmo acontece do ponto de vista social, onde, buscando a autorrealização como expressão da sua Liberdade, a pessoa pode contribuir para o estabelecimento de uma sociedade justa e em sintonia com a Harmonia do Uno. Assim como acontece com a relação com os desejos que, como se diz que o mestre Sidarta Gautama (563 – 483 AEC) verificou no início de sua jornada para se tornar o Buda, não é possível viver sem se alimentar, mas é possível se determinar como e do que se alimentar.
Nesse sentido, o ensinamento atribuído ao poeta francês Victor Hugo (1802 – 1885) de que se deve colocar todas as suas coisas diante de si e indagar quem é o senhor de quem, revela-se como a chave para se encontrar a expressão da Liberdade no mundo manifesto. Isto é, ser manifestamente livre não significa fazer o que se quer, mas ser capaz de controlar aquilo te controla.
O segundo aspecto relacionado à existência da Liberdade está na ocorrência da sua ideia.
Tendo em vista que a Manifestação é uma sequência de planos representativos com bases simbólicas distintas, e constatando-se que, apesar de a Liberdade não possuir manifestação concreta, ela se encontra presente de maneira ideológica, deduz-se que, entre as mudanças de planos representativos, alguma informação foi perdida de modo a fazer com que a Liberdade não se concretize no plano de base 4, mas que ela continua a existir em um plano representativo de base inferior à 4, conforme ensinam os cabalistas:
Efetivamente, a Ideia criadora absoluta manifesta-se velando-se. O Alef da palavra Ain, o “Uno no início do Nada”, vela-se na multiplicidade de Elohim, palavra plural evocando o conjunto das teofanias positivas na origem da criação. Mas o processo que se desenvolve do Nada ao Uno e do Uno ao múltiplo é acompanhado por véus, portanto, por separações. Esses Véus ocultam os dados anteriores ao físico à medida que eles atingem o Mundo Físico ou Mundo Material. As funções causais tornam-se potencialidades que aspiram a se realizar.[15]
Importante salientar que informação nesse aspecto entre sistemas representativos não equivalem às palavras em um livro, mas ao “conjunto completo de coisas que precisamos saber para reconstruir, do zero, o original”[16]. Do ponto de vista das propriedades físicas, a quantidade de informação pode ser mensurada de forma equivalente a entropia do sistema, onde a entropia não seria apenas vista como “a medida de desordem”, mas como a quantidade de informação faltante.
Em suma, apesar de não possuir um aspecto concreto, a Liberdade é uma abstração existente em um sistema representativo de base inferior à 4 e que se expressa no de base 4 por intermédio da potencialidade de se controlar as forças que exercem domínio sobre esse sistema. Assim, aquele que busca se tornar livre deve, antes de tudo, conhecer as leis que o prendem e, dessa forma, executá-las como sendo o seu senhor, tal qual os grandes mestres de sabedoria ensinam e que pode ser conferido em passagem atribuída a Jesus:
Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado. Aquele, portanto, que violar um só desses menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será chamado o menor no Reino dos Céus. Aquele, porém, que os praticar e os ensinar, esse será chamado grande no Reino dos Céus.[17]
A passagem bíblica revela, dentre outras coisas, que para se alcançar o chamado Reino dos Céus e, consequentemente, também se atingir a Liberdade, a pessoa deve fazer cumprir as Leis aplicando-as. A aplicabilidade de uma lei, além de conter o seu conhecimento, retira a pessoa de uma condição de exclusiva subordinação e a transforma em alguém que também possui o seu domínio.
Notas:
[1] https://www.youtube.com/watch?v=FUYQX_TZA6k acessado às 21h01 de 13/10/2021.
[2] https://www.mso.anu.edu.au/~charley/papers/DaviesetalShadow.pdf acessado às 22h15 de 13/10/2021.
[3] Em certos pontos, tal matriz apresenta características redundantes. Tomando o código genético humano como exemplo, verifica-se que ele é composto por 64 códons (sequência de três nucleotídeos) que são utilizados para produzirem 20 aminoácidos. Os códons UUA e UUG produzem a leucina, enquanto o UUU e o UUC produzem a fenilalanina, demonstrando que, apesar de existirem diferentes padrões de códons, o resultado final alcançado é reduzido.
[4] https://link.springer.com/content/pdf/10.3758/BF03211640.pdf acessado às 12h08 de 07/10/2021.
[5] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0003347213003060 acessado às 16h20 de 08/10/2021.
[6] HAWKING, Stephen, O universo numa casca de noz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. Pg. 30.
[7] A título ilustrativo, a fórmula da velocidade de escape é: Vesc = onde G é a constante gravitacional, M é a massa do planeta; e r é o raio do planeta.
[8] DUPRÉ, Ben. 50 grandes ideias da humanidade que você precisa conhecer. São Paulo: Planeta, 2016. Pg. 189-190.
[9] COSTA, José Silveira da. História da filosofia ocidental: tópicos fundamentais. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2017. Pg. 473.
[10] https://pt.wikipedia.org/wiki/Lawrence_Kohlberg acessado às 07h11 de 17/10/2021.
[11] https://www.b9.com.br/shows/naruhodo/naruhodo-140-por-que-expressamos-tanta-raiva-nas-redes-sociais/ acessado às 20h41 de 16/10/2021.
[12] http://psychclassics.yorku.ca/Maslow/motivation.htm acessado às 08h19 de 02/09/2021.
[13] A expressão “fome” aqui utilizada não está relacionada ao fenômeno da fome em si, embora também se manifeste nele, mas a sensação de necessidade de se alimentar, o que, algumas pessoas chamam de “apetite”, como forma de diferenciar da “fome” decorrente da falta de alimentação ou da subnutrição.
[14] https://www.pnas.org/content/108/17/6889.short?subid1=20210903-2258-07e9-ac32-454f1c90f9e8 acessado às 10h02 de 03/09/2021.
[15] PAUL, Patrick. A Cabala. Volume 2: conceitos fundamentais. São Paulo: Polar Editora, 2021. Pg. 38.
[16] https://sprace.org.br/index.php/por-que-o-paradoxo-da-perda-de-informacao-em-buracos-negros-e-um-problema/ acessado às 7h09 de 17/10/2021.
[17] BÍBLIA, Mateus 5: 17-19. In Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. Pg. 1711.
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