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PSICO Thelema

O Império da Vontade

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Dr.Roberto Assagioli

Texto extraído dos cursos ministrados aos domingos por Dr. Roberto Assagioli no Istituto di Psicosintesi, Florença. Tradução Livre: Centro de Psicossíntese de São Paulo, Agosto/2017.

Hoje começarei a falar da vontade. É um tema amplo, mas tentarei expor os pontos essenciais em algumas aulas.
A vontade está “por trás”, ou melhor, no centro, de toda atividade consciente e deliberada seja ela interna ou externa. Todavia poder-se-ia dizer, parafraseando o titulo do conhecido livro de Carrel “L’Homme cet inconnu” (O Homem este desconhecido) , que na psicologia atual, a vontade é “esta desconhecida”!

Se estudarmos a civilização moderna, comparando-a com as que a precederam, notamos um estranho contraste. Do Renascimento em diante o homem dirigiu com crescente paixão sua atenção e sua atividade ao estudo e a subordinação das forças da natureza. É dispensável recordar quais e quantas foram as conquistas que o tornaram senhor da terra, da água e do ar. Na verdade se um homem de outra civilização, um antigo grego ou romano pudesse por um momento reviver hoje, o homem moderno para ele seria semelhante a um mago, um semideus, mas se aquele grego ou romano fosse um sábio, um Platão ou um Marco Aurélio, se não se deixasse deslumbrar pelas maravilhas vistas e se aprofundasse um pouco no estudo da humanidade atual, teria logo uma desilusão. Descobriria que, enquanto o homem moderno é tão mais poderoso sobre a natureza externa, seu poder sobre sua natureza interna é, entretanto escasso, aliás, muitas vezes ainda menor em relação ao homem das antigas civilizações. Veria que o “mago” que pode alçar voo até as alturas sempre crescentes, ou imergir até o fundo dos mares, é incapaz de investigar os abismos da sua alma e subir até os cumes luminosos; que o semideus que com a pressão de um dedo pode desencadear ou deter forças possantes, enviar através do éter mensagens a um outro continente, é na realidade um pobre homem que não sabe dominar o tumulto das suas emoções ou o obsediante conluio da sua mente.

Este grave desequilíbrio entre os poderes externos e os internos do homem moderno, constitui a maior causa dos males individuais e coletivos que atormentam e ameaçam a nossa civilização. O homem moderno pagou um preço alto por suas conquistas: a vida é para ele mais vasta e mais rica, mas também mais complexa e fatigante. Com seu ritmo febril, suas seduções, com todos o meios que oferece aos seus desejos de prazer e domínio, com a engrenagem econômica e social que o agarra, impõe-lhes árduas e onerosas tarefas para os seus nervos, sua mente, suas emoções, para sua vontade. Basta pensar na jornada de um homem de negócios, de um político, ou mesmo a de uma mulher da vida de uma atriz! Não raro acontece que a resistência individual não consiga mais enfrentar as necessidades, as lisonjas, as insidias de tal vida; então acontece a falência momentânea ou definitiva, a queda do equilíbrio nervoso e psíquico, o abatimento moral, o abandono a impulsos violentos. Para remediar estes males, para eliminar o grave desequilíbrio entre poderes externos e internos do homem, existem duas grandes saídas: simplificar a vida externa, e desenvolver os poderes internos. Cada um pode resistir ao menos um pouco ao mau hábito geral, não deixar-se atropelar passivamente pelo turbilhão; pode eliminar da própria vida complicações e dispersões desnecessárias, entrar em contato com a natureza, desacelerar o ritmo febril, fazer repouso em períodos oportunos. Mas ir contra a corrente, resistir às sugestões e às solicitações externas pressupõe uma força de vontade que poucos têm. Em cada caso também se o saudável principio de sacrificar a vida externa penetrasse na consciência coletiva e viesse a se tornar um habito, ele poderia somente atenuar, disciplinar e corrigir, mas não mudar fundamentalmente o caráter da nossa civilização. O homem não renunciaria aos poderes conquistados sobre a natureza, e não seria bom que o fizesse; o mal não está nestes poderes, mas no uso que muitas vezes se faz e principalmente no fato que ele deixa que eles o conduzam e o derrubem. Por isso é necessário para a saúde, o bem estar e dignidade do homem moderno que ele se prepare decisivamente, com toda paixão que até agora dirigiu ao externo, a desenvolver os seus poderes internos.

O centro, o eixo de cada ação interna é a educação da vontade. Santo Agostinho, com uma de suas próprias e fortes expressões, disse: ”Homines sunt voluntates” – “ o valor do homem é determinado pela vontade”

Na verdade, a vontade constitui o centro mais profundo e real do homem, isto o faz ser homem e verdadeiramente ele mesmo, é isto que o torna autoconsciente, livre, responsável. Sem a vontade o homem mais inteligente e hábil seria somente um talentosíssimo autômato. Por mais que se construam robôs engenhosos e hábeis não se poderá infundir neles a vontade: Um homem cuja vontade seja débil é como uma palha em poder das ondas, vítima das próprias paixões, da vontade alheia, das circunstancias externas.

Mas não basta possuir uma vontade que seja somente forte; esta não está ao abrigo dos erros, dos excessos, que podem desviá-la, exauri-la, e provocar reações internas e externas. Existem leis da vida psíquica, precisas como as da natureza externa, e quem, ignorando-as as infringe, é seguramente punido. Assim vê-se não raro que pessoas dotadas de vontade forte desperdiçam suas energias e consomem seu precioso instrumento em choques violentos, em atritos desgastantes, em esforços inoportunos contra resistências internas e obstáculos externos.

Ao contrário, com procedimentos mais sábios e harmônicos, baseados na consciência da estrutura e do funcionamento do admirável mecanismo que é a psique humana, pode-se fazer o caminho através de resistências, sem levá-las adiante; muitas vezes aliás, as energias contrastantes podem ser canalizadas e dirigidas a nosso favor.

Mas nem mesmo uma vontade forte e sábia é uma vontade completa e benéfica; alias pode se tornar a mais prejudicial. De fato se mal dirigida, se usada a objetivos egoístas e perversos, se não se leva em conta as necessidades e direitos dos outros ao perseguir os seus fins individuais, constitui um poder maléfico. Um homem de vontade forte e hábil, capaz de usar com plena eficiência os seus dotes, concentrá-los até um único fim egoísta, não seguro das leis morais e de um senso de amor, pode causar a própria ruína e a dos outros. E assim uma mulher que tenha uma vontade fria e dura e saiba usar o próprio fascínio para seduzir os homens e submetê-los aos próprios objetivos, pode semear dor e ruína onde quer que passe.

Mas estes seres nocivos terminam por prejudicar a si mesmos. A grande lei da ação e reação, de ritmo e equilíbrio, vigora também no mundo moral: aqueles que realizam o mal atraem-no automaticamente para si mesmos. Ocorre então, tanto para o bem do individuo como para o da coletividade, que a vontade seja não somente boa, mas também forte e sábia. Somente esta é a vontade integral, somente esta oferece ao mesmo tempo sucessos práticos e as mais altas satisfações morais.

Também aqui é aplicado o princípio fundamental da psicossintese: nenhuma conquista particular, parcial, é suficiente, mas cada ação interna deve ser enquadrada, inserida em uma concepção integral, equilibrada, sintética, da vida psíquica e espiritual.

Somente por necessidade de exposição trataremos separadamente dos três aspectos da vontade: a vontade forte, a vontade sábia, a vontade boa; mas recordemos sempre que cada um deles é somente um aspecto da vontade integral.

A VONTADE FORTE

Muitos desejariam possuir uma vontade forte, mas poucos são aqueles que se propõem seriamente a desenvolvê-la. Muitos fogem mais ou menos conscientemente, dos esforços e sacrifícios necessários. Todavia se alguém deseja aprender uma idioma ou saber tocar um instrumento, está disposto a dedicar a tal estudo tempo, energia e dinheiro necessários. Por que não deveria ser o mesmo para a vontade? É ilógico pretender que o desenvolvimento da vontade não requeira o mesmo empenho de energias e a mesma perseverança despendida para desenvolver outras faculdades psicológicas ou técnicas.

Alguém, porem, poderia fazer uma objeção: “Para fazer isso seria necessário uma vontade determinada e decisiva, mas é justamente a que me falta”. É uma objeção equivocada, que constitui um dos obstáculos diante dos quais os homens se deixam levar pela desconfiança e pela preguiça. Na realidade, todos, também os denominados apáticos têm um pouco de vontade: eles a tem em estado bruto e rudimentar, no entanto suficiente para começar o trabalho. Recordemos que em nós existem todas as possibilidades em estado latente embora em graus variáveis. O desenvolvimento da vontade, alias, sob certo aspecto, é mais fácil que qualquer outra disciplina uma vez que, depois de um período inicial, aquele que a exercita adquire pouco a pouco a posse de quantias sempre maiores de energia volitiva, que pode empregar para favorecer o posterior desenvolvimento assim como o proprietário de uma empresa pode investir os lucros para ampliar a fábrica e aumentar a produção. Por isso todos são capazes de desenvolver a própria vontade. Diante desta verdade simples, segura, não há lugar para sofismas, recusas não são possíveis. Quem não se prepara ao trabalho é responsável diante de si e dos outros por todas as consequências da sua preguiça, do seu mal querer.

Para educar com sucesso a vontade é necessário, sobretudo saber o que ela realmente é. Isto não é fácil. A vontade muitas vezes é confundida com uma forte paixão, com a obstinação, com os impulsos, com o ativismo. Por exemplo, são consideradas e admiradas frequentemente pessoas de vontade forte, homens de negócios que do nada criaram um grande patrimônio, no entanto eles podem ser propensos e dominados pela avidez pelo dinheiro, pela ambição, pelo fascínio do risco.

Para saber verdadeiramente o que é a vontade é preciso descobri-la em nós mesmos, e esta é uma experiência que mal se pode descrever e definir. É uma daquelas experiencias fundamentais da alma humana, como a estética e a religiosa que são na realidade incomunicáveis, que devem ser vividas individualmente ou, como se diz, “existencialmente”. Quem pode explicar aos outros o que seja e como despertou nele o senso do belo? Pode ter sido uma intima revelação contemplando um intenso por do sol, uma extensão de geleiras, ou os límpidos olhos de uma criança; diante da Gioconda de Leonardo da Vinci ou lendo a Divina Comédia ou escutando as harmonias do Parsifal.

O mesmo acontece com a vontade: em dado momento temos a experiência interna, vívida e certa. Diante do perigo, quando o instinto de conservação impulsionaria a fugir ou o medo tenderia a paralisar, surge da misteriosa profundeza do nosso ser uma força inesperada que nos faz dar o passo perigoso na beira do abismo ou nos faz enfrentar corajosamente o agressor. Diante das imposições ou ameaças de um superior ou de uma multidão em tumulto, quando o nosso interesse nos induziria a ceder, esta força nos faz dizer resolutamente “Não! a qualquer custo reafirmo a minha convicção, executo a minha entrega”. Diante de uma doce sedução que se insinua pouco a pouco, a mesma força irrompe, nos sacode, nos libera.

Em outros casos a experiência da vontade vem de modo diferente, mais calmo e sutil. Na meditação recolhida, no pacato exame dos estímulos, nas escolhas ponderadas, surge em nós uma voz, leve, mas bem distinta diferente dos motivos e dos impulsos costumeiros, que nos empurram, que sentimos ser a parte mais verdadeira, ou melhor, de nós. Ou então na elevação interna, na fervorosa aspiração, chegamos a perceber que a nota essencial do Espírito é Vontade, energia pura que leva embora todo obstáculo, que se afirma de modo irresistível.

A situação mais frequente e mais simples na qual descobrimos o nosso poder volitivo é a ação, a luta. Quando estamos realizando um esforço físico ou mental, quando lutamos contra um obstáculo sentimos em nós um poder, uma energia especial e provamos naturalmente o senso de “querer”. Nestes casos porem é quase sempre “misto” e, se poderia dizer impuro, uma vez que não é somente a vontade que nos empurra à ação, mas, como foi dito, um complexo de desejos, esperanças, necessidades, interesses vários. Por isso, para colher em nós o querer puro e genuíno é necessário uma ação não determinada por outros estímulos, uma ação desinteressada, uma ação que foi chamada “inútil” (inútil, isto é, aos objetivos práticos). Tais “ações inúteis” enquanto custam a dar-nos a consciência do querer, constituem a base do modo mais direto para desenvolver as energias da vontade.

Mas antes é necessário entender completamente o valor e a importância da descoberta da vontade. De qualquer maneira acontece de modo espontâneo ou provocado, em meio a tempestade ou ao silencio, ela constitui um evento importantíssimo, decisivo na nossa vida. A vontade revela-se como essência intima do nosso EU, por isso, em certo sentido, a descoberta da vontade coincide com a descoberta de nós mesmos, do nosso verdadeiro Eu.

Mas não basta a descoberta da vontade; se a consciência da vontade não for cultivada, empalidece e se apaga ou produz somente brilhos intermitentes. Ela é facilmente derrotada e dispersa por mil ideias e imagens, desviada por desejos, escravizada por paixões. É necessário protegê-la, cultivá-la, exercitá- la; é necessário, em uma palavra, um treinamento metódico, uma “ginástica” da vontade. O principio no qual se baseia este treinamento é simples: cada função, cada órgão se desenvolve com exercício. Os músculos se fortalecem quando executamos uma série de contrações; assim a vontade se exercita querendo. E como para reforçar um grupo de músculos existem exercícios voltados ao seu desenvolvimento específico, assim também para reforçar a vontade é oportuno exercitá-la sozinha, independentemente, o quanto possível, das outras funções psíquicas. É exatamente para isso que serve o método dos exercícios “inúteis”, isto é que não apresentam outro interesse, que não têm outro motivo, que o próprio desenvolvimento da vontade. Este método foi desenvolvido principalmente pelo psicólogo americano William James que foi um pioneiro da psicologia moderna e que apesar de seus escritos remontarem a dezenas de anos, é ainda bastante atual.

Eis aqui, como James ilustra o valor daquele método: ”Mantenham viva em vocês a capacidade do esforço mediante pequenos exercícios inúteis feitos todo dia: vale dizer, sejam sistematicamente heroicos cada dia nas pequenas coisas não necessárias. Façam cada dia algo pela única e simples razão que é difícil e que preferiria não fazê-la. Assim quando chega a hora da necessidade ou do perigo, estes não os encontrarão debilitados ou mal treinados. Um ascetismo deste tipo é similar às garantias que um individuo paga sobre a casa e seus bens: pagar o seguro não o faz sentir nenhum prazer e é possível que não sirva nunca para nada, mas se acontecer do fogo queimar sua casa, ter pago o premio o salvará da ruína”.

Mas em relação a vontade não é possível que não sirva nunca; seguramente não faltarão ocasiões para usá-la! “Entretanto acontece – continua James – do homem que se habituou a fazer coisas desnecessárias diariamente. Ele estará na tempestade, sólido como uma torre, enquanto os seus companheiros de desventura serão varridos como as faíscas do grão peneirado”.

É bom definir que ao designar tais exercícios como “inúteis” entende-se como inúteis a objetivos práticos, externos, mas são utilíssimos para a psicossintese. Podemos sugerir muitos; em geral é bom escolher aqueles que contribuam para desenvolver uma função deficiente em nós, reforçar-nos onde estamos mais fracos, como se faz com a ginástica educativa.

Proporei dois tipos de exercícios: o primeiro é útil aos impacientes, aos impulsivos e foi proposto por Boyd Barret que escreveu um bom livro sobre a força da vontade (Strengthof Will). Pega-se uma caixa de fósforos, retira-se um fósforo por vez lentamente e coloca-se em fileiras de dez. em seguida, depois de uma breve pausa, volte-os um a um para dentro da caixa. Para os impacientes e impulsivos é um exercício difícil; não difícil materialmente (é por si mesmo muito fácil), mas em grau de provocar reações intensas: irritação, rebelião, contrações musculares e até algum pensamento não benévolo em relação a quem o propôs. Mas naturalmente, quanto mais o exercício suscita reações negativas, tanto mais se demonstra a utilidade em fazê-lo.

Existem muitos outros exercícios deste tipo: James propõe pegar toda manhã uma pedra e levá-la a um ou dois quilômetros de distancia. Isto é ótimo, mas pode trazer dificuldades: a falta de tempo, as intempéries podem oferecer pretextos em não fazê-lo, ao contrário para o exercício da caixa de fósforos, não existem pretextos plausíveis.

Para os preguiçosos, os passivos, os inertes, são muito indicados os exercícios de ginástica. Estes não se podem chamar de todo inúteis, porque provocam benefícios físicos, higiênicos, mas se não são feitos com tal objetivo, requerem um real ato de vontade e servem para desenvolvê-la. Este método consiste em fazer toda manhã ou em qualquer momento do dia pelo menos dez ou quinze minutos de ginástica no quarto. Pode-se fazer em qualquer condição e qualquer idade. Existem exercícios simples e fáceis, não cansativos e que, portanto não permitem desculpas e evasões. O método mais adaptado a este objetivo é o descrito e ilustrado por Muller no seu livro “O meu sistema” editado em Milão por Sperling Kupfer. Há também “O meu sistema para as mulheres” e “O meu sistema para as crianças”. Os exercícios estão em séries de dificuldades crescentes, mas os primeiros são de tal forma fáceis que todos podem fazê-los. Muller os indicou também para pessoas idosas além dos setenta anos.

Outros exercícios propostos por Barret são: Caminhar para frente e para trás em um cômodo por cinco minutos tocando toda vez nos dois extremos um objeto; escutar o tic tac de um relógio fazendo um dado movimento a cada cinco batidas. e etc. Pode-se inventar quantos se queira.

Mas há outro grupo de exercícios de vontade que não só pode-se fazer, mas que somos obrigados a fazê-los: são os exercícios de vontade na vida cotidiana. Ela nos oferece muitíssimas ocasiões, com os seus vários deveres e suas diferentes ocupações; não existem atividades que não transformemos em um exercício de vontade. Desta forma já o levantar-se da cama pode se tornar um exercício se feito com o objetivo de reforçar o querer; até o lavar-se e o vestir-se podem ser oportunidades de exercícios de vontade se vigiarmos e educarmos os movimentos necessários tornando-os precisos, ordenados e rápidos, mas não apressados.

Uma qualidade muito útil é a “ligeireza calma”. O ritmo da vida moderna é tal que nos torna todos apressados, sem razão. A ligeireza calma não é fácil, mas é possível; ela é eficiente sem produzir esgotamento devido a pressa, sem fazer-nos perder a compostura, a nobreza interna, a mesma que Dante chama “honestidade”, nos versos os quais diz justamente que a destruiu por apressar- se:

“Quando os meus pés deixarem a pressa Que a honestidade de cada ato esmaga”

Não é fácil, repito, realizar esta ligeireza calma que pede uma espécie de desdobramento: é necessário, em certa medida, sermos espectadores dos nossos atos. Isto mostra como os vários exercícios psicológicos ligam-se um ao outro. O exercício de desidentificação requer o uso de uma notável dose de vontade; por outro lado conseguir desidentificar-mo-nos como espectadores durante a vida cotidiana reforça a vontade.

No decorrer da jornada, no trabalho, no exercício da profissão, no atender os afazeres domésticos pode-se fazer muitos outros exercícios de vontade. Manter a serenidade e a vigilância durante o trabalho; dominar emoções, atos de impaciência e de cólera diante de pequenos incômodos ou contrariedades; por exemplo, quando somos pisados no bonde; durante a espera em um guichê; diante dos erros de um subordinado ou a injustiça de um superior. Poder-se-ia continuar indefinidamente… cada um pode encontrar inumeráveis ocasiões.

Devemos reconhecer que é difícil, direi quase impossível a principio, fazer de toda vida cotidiana uma serie de exercícios de vontade; tentando-o, o insucesso poderia desencorajar-nos. Por isso é aconselhável começar com poucos exercícios espalhados durante o dia. Somente depois de conseguir executar estes é que se pode aumentar o número ou variá-los. É oportuno fazê-los com interesse, mas com certo destaque, felizmente, notando sucessos e insucessos, procurando estabelecer ou bater recordes conosco mesmos; em resumo com a melhor atitude “esportiva”. Assim evita-se tornar a própria vida muito rigidamente regulada e quase mecanizada; ao contrario torna animado e colorido o que por si mesmo seria tedioso e monótono.

De tal modo obrigamos todos a nossa volta a colaborar com nosso trabalho: um superior pedante, um sócio exigente, um subordinado estúpido ou desinteressado, um familiar tedioso, tornam-se o aparelho de ginástica, a barra com a qual fazem rodopios com a nossa vontade. Uma cozinheira ou uma governanta não pontuais nos oferecem a oportunidade de tornar o nosso querer paciente e sereno alem de poder ler um bom livro enquanto se espera. Houve um cientista francês que nas esperas das refeições escreveu um livro e o dedicou a sua esposa. O amigo bisbilhoteiro ou exigente nos dá a oportunidade de reforçar o nosso poder de inibição exercitando o domínio da língua e ensinando-nos a arte das negativas gentis porem firmes. Saber dizer não aos outros, mas principalmente a nós mesmos, é uma arte difícil, mas muitas vezes necessária e constitui um dos melhores exercícios de vontade.


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