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Bruxaria e Paganismo

Uma visão de bruxaria como religare

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Sei que o título deste artigo comporta dois conceitos que, em si, já são bastante nebulosos e polêmicos. Por isso mesmo, quero definir logo de início qual o significado que estou atribuindo a cada um deles, para que o restante do texto não dê margem a dúvidas. Ao falar de “bruxaria”, aqui, estou momentaneamente deixando de lado meu papel de historiador e minhas pesquisas. Não é à bruxaria como fenômeno histórico, situado temporalmente entre os séculos XV e XVIII, que irei me referir, mas sim àquela “bruxaria” que surge em meados do século XX, com a obra de Gerald Gardner, e ganha especial notoriedade ao final desse mesmo século. Além disso, usei no título e usarei adiante o termo latino “religare”. No entanto, não o usarei na acepção comum (embora controversa) de raiz da palavra “religião”. Ao contrário: eu o usarei no seu significado mais explícito de “religar”, reunir duas coisas que estão afastadas, mas sobre as quais se pode subentender que, em dado momento, estiveram próximas.

Depois de vários anos de convivência com praticantes da bruxaria – e não apenas da Wicca mas também de outras vertentes que seguem princípios semelhantes -, e de ler uma boa parte literatura sobre o assunto, uma coisa me parece bem clara: a grande maioria dessas pessoas, sejam veteranos ou iniciantes, atribui um significado eminentemente religioso às suas práticas. Deusas e deuses são interpretados da mesma forma que nas grandes religiões estabelecidas do Ocidente, como entes reais e com ativa interferência nos assuntos mundanos, e como objeto de reverente adoração. Celebram-se ritos com um rigor e uma contrição que fariam inveja a um calvinista ou, por vezes, vê-se nessas celebrações manifestações de “louvor” que envergonhariam um neopentecostal. A magia, que por analogia veio incorporar-se a essa forma religiosa de bruxaria, é praticada com a mesma contrição, e com uma crença dogmática que se iguala à não menos mágica transubstanciação católica.

Mas vamos parar um momento para pensar nas bases, nos fundamentos da bruxaria. Quando retiramos as fadas e duendes, a viagem astral, as velas acesas com um sopro, e tudo mais que pode representar um arroubo místico ou um interesse mercadológico de determinado autor, o que temos como indiscutível? Os clássicos, mesmo histórica e antropológicamente incorretos e ultrapassados, como Margaret Murray, George Frazer, Robert Graves ou Gardner – por que não? – nos dão uma boa diretriz: um culto de fertilidade, onde a figura da Deusa-mãe e do Deus-filho-consorte simbolizam e personificam a harmonia da natureza, e onde as celebrações representam – tornam presentes e reproduzem – os ciclos pelos quais essa harmonia se processa. Isso, nem um notório vendilhão como Cunningham conseguiu negar.

Pois bem: essas características, grosso modo, podem ser encontradas nos cultos da maioria das sociedades não-urbanas. Por isso mesmo, são denominados “pagãos”, em alusão – como já foi tantas vezes repetido – ao modo de vida de seus praticantes, que viviam (ou vivem) em estreito contato com o pagus – o campo – ou, em última análise, com a natureza. A reprodução dos ciclos naturais e de fenômenos da natureza, muitas vezes personificados em divindades, através de cerimônias sazonais específicas, tem o caráter simbólico de recriação, representificação e perpetuação de uma cosmogonia que rege a vida desses povos, orienta o seu modo de pensar e de viver.

A pergunta que pode surgir a partir das afirmações acima é: qual o sentido, então, de celebrar esse tipo de culto, se vivemos quase completamente apartados da natureza, em um ambiente urbano onde a dependência dos ciclos naturais é apenas indireta e mesmo relativa? Minha resposta é: justamente por causa disso.

Se há alguma coisa da qual o homem moderno, habitante das grandes cidades e dependente da tecnologia está afastado, é da natureza. A profunda arrogância da civilização ocidental, gerada em primeiro lugar pela mentalidade judaico-cristã que demoniza a natureza e posteriormente exacerbada, a partir de meados do século XIX, pela revolução tecnológica e pelo triunfo do capitalismo de mercado, trouxe a convicção de que a natureza é algo a ser dominado, colocado a serviço do ser humano. Embora o discurso ambientalista, relativamente recente, tenha trazido significativas mudanças na consciência ecológica, não é possível negar que, para uma imensa parcela da população, a ligação com a natureza é algo, simplesmente, inexistente.

Nesse sentido é que eu posso entender a bruxaria como uma forma de “religare”. Não a deuses de culturas estranhas à nossa, ou a um passado mirabolante de sacerdotisas-feiticeiras que jamais existiu, mas um religar profundo: às nossas origens e à própria fonte da vida. As celebrações sazonais da bruxaria podem, efetivamente, promover essa reconexão entre o praticante e os (por vezes sutis) movimentos naturais. Podem fazê-lo compreender melhor a dinâmica própria da natureza e promover essa necessária reaproximação.

É claro que, para isso, é preciso que o praticante tenha, também, um foco distinto daquele da religiosidade simples e da devoção. Deuses e deusas que “abençoam” e interferem no cotidiano são diferentes de divindades que propiciam. Estas últimas são consequências do natural, surgiram através da sua compreensão e da convivência. Os primeiros são preternaturais: foram criados a partir da presunção que algo pode estar acima da natureza e comandá-la, ou contrariá-la. Enquanto uns, através de um processo espontâneo, nos legaram a vida, os outros justificaram o egoísmo humano e a destruição. Resta, portanto, saber que tipo de “religação” anseiam os que se dizem pagãos e bruxos, entre nós.

Jan Duarte


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