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Thiago Tamosauskas
As chamadas aparições Marianas são um fenômeno muito interessante que permeou a história da cristandade desde o primeiro século depois de Cristo. Mas as aparições de figuras sagradas femininas é algo muito mais antigo e universal. Basta ver, por exemplo, o caso de Nossa Senhora de Fátima, que ocorreu em Portugal. Antes das aparições de 1917, a cidade de Fátima já tinha este nome por uma razão. Era parte do Califado Andaluz e lar de muçulmanos que lá também relataram aparições de uma linda mulher celestial, mas que identificaram com Fátima, a filha de Maomé.
Cada época deu à Ela um nome e uma roupagem. Semíramis, Durga, Gaia, Vênus, Sophia, entre tantos outros. Mas quero aqui dedicar alguns parágrafos as aparições conhecidas como sendo de “Nossa Senhora de Guadalupe”. Juan Diego Cuauhtlatoatzin é o nome do nativo americano que as testemunhou no monte Tepeyac, no México em princípios de 1500’s. Hoje Juan Diego é considerado um santo católico, toda narrativa é contada do ponto de vista dos padres da época e uma Basílica foi construída no local. Mas convido o leitor a uma releitura dos acontecimentos para, quem sabe, enxergarmos além dos véus de Isis.
Uma informação relevante que é muitas vezes ignorada é que o monte Tonantzin, onde as aparições ocorreram, tinha esse nome porque abrigava antes da conquista espanhola um templo a deusa-mãe Teteoinan. Tonantzin significa literalmente “Nossa Venerável Mãe”, um termo usado para se referir a Mãe dos Deuses e dos Homens.
Também é importante saber que após a destruição do local as migrações dos nativos não foi interrompida e isso causava bastante constrangimento ao clero local.
No dia 9 de dezembro de 1531 ocorreu a primeira aparição. Era uma exaltada figura feminina, usando trajes típicos das sacerdotisa asteca que surgiu para pequeno Juan Diego. A mulher não lhe falou em náuatle, sua lingua natal e também língua oficial do império asteca. Ela se identificou como “Mãe do verdadeiro Deus” e pediu que um local de adoração fosse construído naquele local em sua honra.
Maravilhado com o que havia visto Juan Diego contou sua experiência ao arcebispo da Cidade do México, Frei Juan de Zumárraga, mas foi simplesmente ignorado, talvez por medo de como essas aparições seriam interpretadas pelos recém convertidos.
No dia seguinte a Mulher apareceu mais uma vez e novamente Juan levou o fato ao clero. Foi então instruído a retornar ao antigo local de adoração pagã e pedir uma prova da identidade da mulher caso ela retornasse. Ela retornou e após ouvir o rapaz, declarou que traria um sinal no dia seguinte.
Mas o sinal do dia seguinte foi de doença e morte. Na manhã do dia 11, Juan Bernardino, o tio de Juan Diego acordou doente e precisou da companhia e cuidados do sobrinho. Sua condição piorou ainda mais no dia 12 e sem alternativas Juan partiu para a cidade em busca de um padre que lhe pudesse trazer a unção dos enfermos e lhe ouvir a última confissão.
Por vergonha de não ter ido no dia anterior e para evitar se atrasar ainda mais Juan Diego contornou a colina, mas mesmo assim a Mulher majestosa lhe interceptou e ele tentou lhe explicar a situação.
Foi então que ela disse, conforme o relato de Juan:
“Que não se perturbe o seu rosto, nem seu coração. Não temas esta doença nem nenhuma outra, não fiques aflito, não estou eu aqui, que sou sua mãe? Você não está debaixo da minha sombra e sob o meu cuidado? Não sou eu a fonte da sua alegria?”
Parte da frase original “Kuix amo nikan nika nimonants” (Não estou aqui, eu que sou sua mãe?), está hoje inscrita na Basílica de Guadalupe.
A Mulher misteriosa lhe assegurou que seu tio já estava recuperado e que ele retornasse ao local do antigo templo no monte Tepeyac para colher as flores. Detalhe, era inverno e o solo da montanha era geralmente estéril. Ainda assim chegando lá colheu belas rosas rubras e as carregou em seu tilma (manto tradicionalmente usado pelos nativos).
Juan levou as flores para o bispo e quando abriu seu manto as flores cairam no chão e o tecido estava agora belamente pintado com a imagem abaixo:
Importante ressaltar que essa imagem já sofreu modificações. Sabemos, entre outras interpolações, que o anjo colocado aos pés da mulher e as estampas de flor de lis são inclusões posteriores a 1531.
No dia seguinte o Juan Bernardino, o tio de Juan Diego relatou que a Mulher também havia aparecido para ele ao lado de sua cama antes de ser curado e que ela lhe informou que gostaria de ser chamada Coatlaxopeuh, que na língua asteca significa “aquela que esmaga a cabeça da serpente”. O nome transliterado para o espanhol se tornou Guadalupe de hoje.
O bispo manteve a imagem inicialmente em sua capela privada, mas a essa altura a notícia das aparições já havia se espalhado suficientemente entre o povo. A saída do clero foi levantar no mesmo local do antigo templo da deusa-mãe Tonantzin, uma capela agora dedicada a “Virgem Maria de Tonantzin” que com o tempo se tornaria a Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe.
A dualidade da morte e vida foi vista ainda mais uma vez quando o manto com a imagem foi finalmente levado em procissão até a nova capela. Conta-se que durante as exibições marciais em homenagem a Ela, uma flecha disparada por acidente foi cravada no pescoço de um dos celebrantes. O homem foi levado aos pés da imagem onde ajuda foi pedida. Ao retirar a flecha a vítima levantou-se e rapidamente estava recuperada.
O culto popular a figura feminina foi reestabelecido, com uma roupagem que se tornou cada vez mais católica e em em 1754 o papa Bento XIV declarou Nossa Senhora de Guadalupe como patrona de toda nova Espanha.
Assim relata o historiador mexicano Bernardino de Sahagun:
“Um destes está no México, onde está uma colinazinha que chamam de Tepeyacac e que os espanhóis chamam de Tepequilla, e agora se chama Nossa Senhora de Guadalupe. Neste lugar tinham um templo dedicado a mãe dos deuses, que eles chamam de Tonantzin, que quer dizer nossa mãe. Ali faziam muitos sacrifícios em honra desta deusa, e iam até ela de muitas terras distantes, de mais de vinte léguas de todas as comarcas do México, e traziam muitas oferendas: vinham homens e mulheres e moços e moças a estas festas. Era grande o concurso de gente nestes dias e todos diziam “vamos até a festa de Tonantzin”; e agora que está ali edificada a igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, também a chamam de Tonantzin, tomando ocasião dos predicadores que também a chamam de Tonantzin. […] e vem agora a visitar a esta Tonantzin de muitos locais distantes tão distantes como os de antes, a qual devoção também é suspeitosa, porque em todas partes há muitas igrejas de Nossa Senhora, e não vão a elas, e vem de longes terras a esta Tonantzin como antigamente.”
Quero destacar aqui, se é que ainda não ficou óbvio, que a Mulher cujo os sinais eram morte e a vida, em nenhum momento chamou a si mesma de Maria de Nazaré ou mesmo chamou a si mesma pelos títulos marianos como Imaculada ou Virgem. Chamou-se sim de “Fonte de Alegria”, “Esmagadora de Serpentes” e por duas vezes de “Mãe”. Na primeira a ‘Mãe do Deus Verdadeiro’ e na segunda a mãe de um pequeno indígena.
Ainda assim foi com essa vestimenta católica que lhe foi colocada e com este anjo a tiracolo adicionado no desenho que o culto ao feminino sobreviveu nos cinco séculos seguintes até chegar nos dias de hoje quando uma nova mudança de roupas parece estar ocorrendo. Em cada época. em cada lugar, e para cada pessoa Ela é reconhecida de uma forma única, vale aqui citar Plutarco em “Mistérios de Isis e Osíris”:
“Em Sais, a estátua de Atena, que eles (os egípcios) acreditam ser Isis, trazia a inscrição:
“Eu sou tudo o que foi, é e será, e meu véu nenhum mortal ainda descobriu.”
Como a mulher vestida de luz e coroada de estrelas será vista no futuro ainda não sabemos, talvez tenhamos uma pista na releitura do sagrado feminino que já esta em curso. Como registra o Credo Gnóstico da Ecclesia Babalon : “E eu conheço uma Terra, a Mãe de todos nós, e um Ventre onde todos somos gerados e para onde todos deveremos retornar, Mistério do Mistério, BABALON.”
Deusa da morte e da fertilidade, virgem cheia de graça, grandiosa meretriz. Talvez ainda não tenhamos o vocabulário certo para descrevê-la. Ou talvez devêssemos parar de descrevê-la e simplesmente ouvir o que Ela tem a dizer.
Mãe dos deuses e dos seres humanos, rogai por nós.
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