Categorias
Magia do Caos PSICO

Psiconautas e multiplicidade dos mundos

Este texto foi lambido por 190 almas esse mês

Kaio Felipe C. Cabrera

A obra Sandman, do aclamado autor inglês Neil Gaiman, nos oferece um universo muito precioso para psiconautas, filósofos e ocultistas refletirem. Um dos aspectos mais formidáveis desse universo é a construção dos mundos particulares de cada um dos Perpétuos – seres eternos que personificam mundos inteiros. Para quem não conhece a obra, os Perpétuos são sete: Desejo, Destruição, Destino, Morte, Delírio, Desespero e Sonho. Cada um deles governa um reino que representa a essência do próprio Perpétuo. Essa concepção mágica e filosófica pode servir como ponto de partida para pensarmos na multiplicidade de mundos e nas camadas de existência que permeiam tanto o universo literário quanto nossas próprias percepções e práticas espirituais.

Se pensarmos na tradição cristã, sabemos que ela dividiu o mundo em três reinos: o Inferno, a Terra e o Céu. O ser humano, de certo modo, também se encontrava dividido nessas três regiões: seu aspecto desejante e carnal apontava para o Inferno; sua alma fazia escolhas na brevidade da existência; e seu espírito, com o intelecto, o orientava para o celestial.

Com o passar do tempo, essa concepção de ser humano foi ainda mais reduzida na modernidade. Com a progressiva destruição da metafísica medieval, o que sobra é apenas o campo empírico e material, no qual todos os outros níveis de existência são subordinados a um único reino: o “Reino das Ciências Naturais”.

Parece que muitas correntes do ocultismo herdaram esse modo dualista ou monista de pensar a realidade. Observamos, por vezes, certos sistemas mágicos posicionarem o ser humano entre o manifesto e o não manifesto, entre o finito e o infinito, entre o pilar da direita e o da esquerda, entre a luz e as sombras, etc. Basicamente, o que encontramos é um pensamento que coloca o ser humano e o cosmo em uma dualidade: entre o “sim” e o “não”, com poucas nuances entre esses dois polos.

Alguns autores do universo da filosofia, no final do século XIX, iniciaram, conscientes ou não dessa empreitada, uma ruptura com essa limitação dos reinos da existência. Freud parece ter encontrado o mundo do inconsciente; Jung e os neojunguianos revitalizaram a imaginação e até mesmo a presença arquetípica dos deuses sobre o mundo; Heidegger desvelou a dimensão do Ser em todo ente.

Porém, se retornarmos ao mundo “pagão”, o que encontraremos é uma multiplicidade de mundos. É comum os deuses gregos representarem simultaneamente uma presença imortal na estrutura da natureza e, ao mesmo tempo, um reino de existência. Por exemplo, Hades, Tártaro, Morfeu, Fantasos, Gaia, Urano, Cronos e Zeus são todos deuses, mas também esferas de realidade. Isso não significa que precisamos ir a um reino espiritual para acessar a realidade desses deuses. Se você está sonhando, está no reino de Morfeu; se está fantasiando, está no reino de Fantasos; se está desejando, está no reino de Eros; e, se de alguma maneira está na existência, está em Zeus. Cada um desses reinos também possui seus habitantes particulares: qualquer um pode reconhecer os seres dos sonhos (Morfeu), os seres das fantasias (Fantasos), as emoções desejantes (Eros) e os seres no pluriverso das existências (Zeus).

Iniciamos falando que na obra de Neil Gaiman existem sete reinos e que, na obra de Hesíodo e Homero, podemos ver que os gregos admitiam diversos reinos de existência. Mas propomos aqui dar um passo adiante: não existiriam infinitos mundos para serem acessados e descobertos? As descobertas da filosofia contemporânea não nos permitiriam uma nova forma de aventura espiritual e até mesmo um novo método de pensar a espiritualidade?

Não existiria, por exemplo, o mundo dos rascunhos de seres: como uma poesia que ainda não foi escrita, um projeto de vida que parece ainda nebuloso, uma impressão de um flerte que não se sabe ao certo se foi real ou não?

Não existiria um mundo da simultaneidade, onde os seres não são vistos em sua individualidade, mas na sua fusão e aparência? Não o reino do “eu”, mas o reino do “com”?

E como não pensar em um reino da pura alteridade, onde tudo se transforma em outro e nada é sem diferir de si mesmo?

Vamos mais longe.

Não existiria um mundo particular instaurado e descoberto por cada um dos grandes místicos? Um universo thelêmico, cabalístico, pitagórico, católico, etc.?

E, por fim, não existiria um mundo onde todos esses outros mundos estão englobados, sem hierarquias? (Ainda que o mais comum seja nos apaixonarmos por um destes mundos e desejarmos submeter os outros).

Propomos aqui uma reflexão: explorar esses mundos, com suas lógicas próprias, seus modos de ser, seus habitantes e deuses, não seria uma das abordagens mais inovadoras para repensarmos a espiritualidade contemporânea? Respeitando toda a tradição e as conexões profundas que muitos místicos e estudiosos do ocultismo têm com esses mundos particulares, podemos abrir espaço para novas possibilidades de pensamento e até mesmo para a descoberta de reinos ainda ocultos. Parece-nos que essa é uma das maiores alegrias e aventuras disponíveis na contemporaneidade para os amantes do oculto.


Kaio Felipe C. Cabrera é doutorando em filosofia. Psicanalista. Membro do núcleo de estudos estéticos da UFABC. Professor de psicanálise e de psicologia analítica em diversas instituições. Foi membro do fórum lacaniano. É estudante de ontologia plurais, psicologia e estética. Vocalista da banda de metal moderno e ambiental Strigah, que trata de temas pertinentes ao ocultismo.


Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.

Deixe um comentário


Apoie. Faça parte do Problema.