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Apesar de pertencerem a contextos distintos as religiões neo-pagãs e as obras de J.R.R. Tolkien compartilham alguns pontos em comum que vão além da proximidade histórica e geográfica em que ambas surgiram. Ambos, cada um a sua maneira representam o ressurgimento de antigos arquétipos mitológicos nascendo no seio de uma sociedade essencialmente cristã mas em rápida transformação.
Tanto Tolkien quando Wicca e outras religiões neo-pagãs tem aeverência pela natureza é um tema constante e compartilham um interesse profundo por mitologia, folclore e tradições culturais europeias. Escrevi este texto descrevendo os grupos que desenvolveram algum tipo de religiosidade baseada nos livros escritos por J.R.R Tolkien, com base no trabalho de Markus Altena Davidsen “The Spiritual Tolkien Milieu: A Study of Fiction‐based Religion“.
Davidsen lida com várias questões em seu trabalho, como a origem desses grupos, sua lógica e justificação internas, seus rituais (baseados no Legendarium ou não), fusões com outras religiões, passagens nos livros de Tolkien e outros escritos que dariam razão a essas crenças, outros trabalhos e autores que lidam com esse tema, etc. Abaixo, escrevi um resumo desses grupos, sua origem, propósito, rituais, visão espiritual e influência que tiveram nas obras de Tolkien.
Mytle Receeo
O primeiro grupo que Davidsen menciona foi Mytle Receeo, uma mulher residente no sul da Califórnia em 1973. Ela acreditava que as histórias escritas por Tolkien eram “reais, embora [Tolkien] por conveniência ‘tenha escrito a crônica em forma de ficção’.” Ela afirmava ter conversas com Elfos, Anões e Hobbits e que Bilbo apareceu para ela uma vez quando criança e revelou a ela o retorno dos Nove Caminhantes (A Sociedade do Anel). Seu grupo tinha a intenção de desenterrar Minas Tirith do Deserto de Mojave (Califórnia), que ela teria localizado por poderes psíquicos. No entanto, o projeto sempre foi adiado e o grupo se desintegrou.
The Elf Queen Daughters
Em 1972, “Arwen” e “Elanor” fundaram o grupo feminista “The Elf Queen Daughters”, alegando terem sido orientadas em uma sessão de Ouija. Esses não eram seus nomes reais, mas foram tirados do livro O Senhor dos Anéis. As duas estabeleceram centros em Illinois e em toda a América. Eram praticantes de Wicca, no entanto, e usavam elementos das obras de Tolkien apenas como complementos. Entendiam que Elbereth seria Arda ou Gaia e cantavam canções para ela em rituais. O uso de Varda era realmente metafórico, usado para venerar o “feminino”, assim como sua identificação como Elfos era uma referência ao respeito pela natureza.
Zardoa Love and Silverflame
Esse movimento foi sucedido mais tarde por “Zardoa Love and Silverflame”, que pode ser encontrado aqui . Zardoa conheceu as Elf Queen Daughters e começou a receber suas cartas. Depois, em uma noite, ele afirmou ter “despertado como um elfo” e recebido sua iniciação no grupo Elf Queen Daughters. Após esse evento, ele fundou seu próprio centro em Carbondale (Illinois). Ao contrário do grupo feminista, Zardoa levava a sério sua “identidade élfica” e despertar. Zardoa, em parceria com Silverflame, afirmava que sem Tolkien eles provavelmente não se chamariam de Elfos e se refeririam a si mesmos como “Silver Elves”. Entre suas crenças, eles ligavam Arda a Gaia e acreditavam na reencarnação cíclica dos Elfos para ajudar na evolução do Homem. Embora se referissem ao Silmarillion e O Senhor dos Anéis em várias de suas cartas, eles abandonaram o Legendarium anos depois. Além disso, eles não consideram as histórias de Tolkien como realidade factual, apenas como fonte de inspiração.
Tribunal of Sidhe
Em 1984, o “Tribunal of Sidhe” foi fundado em Sacramento (Califórnia). Um de seus fundadores é conhecido como “Lady Danu”. O Tribunal of Sidhe seguia a linha neo-pagã e seus membros se autodenominavam “Changeling”, ou seja, criaturas míticas/fadas encarnadas em um corpo humano do “Plano Astral”. O grupo sintetizava elementos do Legendarium de Tolkien com Wicca, mitologia celta e suas próprias crenças pessoais. Eles usavam a mitologia de Tolkien, assim como várias outras mitologias conhecidas, para rituais, alegando que antigas lendas, mitos e histórias sobre fadas e elfos refletiam o fato histórico de que eles coabitavam a terra. Correlacionando o trabalho de Tolkien, o grupo considerava que a casa do Changeling no plano astral seria o “Reino Abençoado”, onde habitariam os “kin people” (Otherkin: alguém que sente que não é humano), ou seja, os Valar, Maiar e Elfos. Eles afirmavam que Tolkien próprio era um Changeling e que seu trabalho era “a história do Changeling em forma mítica”, tendo o autor alterado algumas coisas para que sua história parecesse menos controversa.
Alternative Tolkien Society
Na “Alternative Tolkien Society”, que você pode acessar aqui (http://alt-tolkien.com/), ativa de 1996 a 2005, os membros compartilhavam, entre outras coisas, visitas à Terra-média por meio de rituais e encontros com Elfos. Foi o fundador do site, Martin Baker, que apresentou Calantirniel e Nathan Elwin, fundadores do grupo Tië Eldaliéva e de seu braço Ilsaluntë Valion, do qual falaremos abaixo. Baker, interessado no esoterismo ocidental, considerava as obras de Tolkien espiritualmente fortes, assim como outros mitos. Ele escreveu uma série de artigos que chamou de “Manuscrito Tresco”, que afirmava ter vindo até ele por “Alice Bailey“, nos quais a historicidade das obras de Tolkien seria comprovada. Neles, o autor estendeu a trama de Tolkien conectando a Terra-média e a Inglaterra anglo-saxônica. Ele afirmava que o manuscrito e a tradição relacionada eram “intensamente reais”, se não “realmente verdadeiros”.
Tië Eldaliéva
Tië Eldaliéva foi fundado em 2005 por Nathan Elwin e Calantirniel. Acesse o site deles aqui https://elvenspirituality.com/. Elwin procurou por décadas pessoas que compartilhassem sua crença de que as histórias de Tolkien não eram ficção, mas sim “mito-história com elementos euhemerísticos**”. O que ele sempre encontrava era uma “espiritualidade tolkieniana” misturada com elementos neo-pagãos. Depois de ler “A Gnose de J.R.R. Tolkien para nossos Dias” de Stephan Hoeller, Elwin fundou uma comunidade online para exploração gnóstica e mito-histórica do Legendarium de Tolkien. Após conhecer Calantirniel, ambos decidiram criar um “caminho espiritual incorporando Tolkien”. Embora a intenção inicial de Elwin fosse se afastar de outras crenças, a história de Tolkien não trata de rituais, então o grupo decidiu criar seu próprio calendário lunissolar, incorporando práticas como magia cerimonial daHermetic Order of Golden Dawn e Wicca. O grupo Ilsaluntë Valion (https://forum.westofwest.org/) nasceu precisamente por causa das diferenças entre os membros deste grupo. Enquanto em sua raiz Tië Eldaliéva tratava de uma “visão espiritual élfica”, alguns membros preferiam uma visão espiritual dos Homens (ou Humanos), ou uma abordagem que abrangesse ambos os lados. Alguns membros também estavam incomodados com as adições de rituais pagãos usados pelos líderes com o propósito de “preencher as lacunas”, ou seja, a falta de atos rituais nas obras de Tolkien exigindo uma exploração rigorosa do Legendarium, sem adições. Outro grupo, divergente na forma de rituais, preferia práticas xamânicas, enquanto outros preferiam a magia wiccana. Por esse motivo, Elwin se separou do grupo e fundou Ilsaluntë Valion. O novo grupo se afirmava contra a visão Otherkin¹, mas abria a possibilidade de ancestralidade élfica no gene humano (Meio-Elfos do Legendarium) e mesclava uma visão espiritual tanto élfica quanto humana. O grupo enfatizava uma linha de interpretação gnóstica e considerava os contos de Tolkien como mito-históricos*, juntamente com a intenção de identificar paralelos entre as histórias de Tolkien e o mundo real, embora não totalmente.
Middle-Earth Pagans
Middle-Earth Pagans foi um grupo fundado em 2004 por Laurasia Sluyswachter para ser um espaço para compartilhar experiências de integração do trabalho de Tolkien com “caminhos espirituais”. Acesse aqui https://mepagans.proboards.com/. A maioria de seu grupo, assim como a fundadora, se encontrou nos filmes O Senhor dos Anéis de Peter Jackson. Ao contrário de outros grupos, este focava seus rituais nos próprios personagens dos filmes por meio de rituais wiccanos. Ela correlacionava cada personagem com um poder e função a serem reivindicados em seus rituais. Para o grupo, os personagens de O Senhor dos Anéis seriam uma expressão metafórica do Deus e da Deusa pagã. Laurasia disse que alguns membros do grupo imaginavam que a Terra-média existiria em uma dimensão diferente e que poderiam se conectar com ela visitando o “plano astral”. Muitos dos membros perderam interesse após algum tempo. O site era amplamente utilizado para discussões diversas não relacionadas à ideia central e nunca foi institucionalizado ou centrado em ideias básicas. O grupo eventualmente se dispersou.
Children of Varda
Children of Varda nasceu em 2003, nos grupos do Yahoo, e era um grupo voltado para pagãos e crentes na existência de elfos. O grupo também acolhia cristãos, ambos unidos em sua apreciação pelas obras de Tolkien e crença em elfos. Alguns membros também exibiam o fator de auto-identificação élfica. Os tópicos proeminentes eram sobre música élfica e memórias élficas do passado, que geralmente estavam ligadas à Terra-média, seja no plano astral ou na pré-história do mundo. No entanto, o grupo diminuiu após algum tempo. O foco da discussão se voltou para assuntos alternativos, como tarô, horóscopo, reiki, karma, anjos da guarda, etc. Assim como no Middle-earth Pagan Group, a variedade de assuntos e a falta de foco fizeram com que os membros migrassem para grupos mais organizados. Desde 2006, não houve mais atividade no grupo.
Elendë
O grupo Elendë foi criado em 2005 no Yahoo (originalmente chamado de Quest for Middle-earth and the Elves) por Dana. A premissa de seu grupo era reunir pessoas que acreditavam que a Terra-média era um lugar real, assim como os Elfos. Ao contrário de outros grupos, Elendë não realizava rituais e apenas uma minoria dos membros se auto-identificava como um elfo. As discussões se concentravam centralmente em debater encontros e experiências com elfos. Embora fundado na ideia da realidade da Terra-média, a maioria dos membros descartava essa possibilidade, adotando em vez disso a interpretação da existência de outro mundo habitado por elfos ou sua existência no mundo real não vinculada ao Legendarium de Tolkien. A partir desse pensamento, as discussões desapareceram e não havia mais nada a ser dito, já que o estudo de elfos de outras mitologias nunca foi incentivado, nem foi empregada qualquer conexão ritualística. Desde 2004, o grupo passou a maior parte do tempo inativo.
Indigo Elves
Indigo Elves é um fórum de discussão ativo desde 2005 no Proboards (visite https://indigocrystals.proboards.com/ aqui). Seu foco está na crença na auto-identificação e na natureza élfica, em seu despertar e retorno. Seu líder, Ravenwolf, desencoraja rituais direcionados aos Valar, já que, nas obras de Tolkien, eles seriam mais como anjos do que deuses a serem adorados. Ele também se opõe à visão de encarnação élfica, defendendo, no entanto, a descendência élfica por gene. Além disso, ele acredita que a Terra-média e os elementos centrais do Legendarium de Tolkien ocorreram em tempo real em nosso mundo físico. Ele menciona que, após o dilúvio, ainda houve um período em que elfos e magia permaneceram fortes, mas depois disso eles “desapareceram”. No entanto, a linhagem élfica ainda permanece entre os humanos de Arwen e Aragorn. Quanto ao nome do grupo, “Indigo” se refere a uma pessoa considerada mais sensível e espiritualmente desenvolvida. Alguns membros do grupo se identificam como Indigos e consideram o trabalho de Tolkien, assim como antigas lendas sobre Elfos e Changelings, uma maneira metafórica de se referir ao fenômeno real dos Indigos.
Resumindo essas informações, a religião baseada em Tolkien tem uma conexão profunda e inseparável com o paganismo quando praticada. Na maioria dos casos, aqueles espiritualmente afetados pelo Legendarium procuram correlações em religiões preestabelecidas e são encontrados principalmente no neopaganismo e na adoção ritualística da Wicca.
Podem ser observados dois grupos distintos: aqueles que adotam a visão mitopoiética*** das obras, afirmando que o Legendarium de Tolkien carrega expressões espirituais universais encontradas em várias religiões e culturas, e aqueles que veem as histórias de maneira mito-histórica, sempre vinculando-as a outros mitos e visões espirituais como uma forma de justificação. Com poucas ressalvas, as religiões apresentadas tentaram pelo menos algum tipo de ritual, dando mais importância à experiência de conexão ritual do que à exploração e correspondência histórica do Legendarium.
*Mito-histórico: “o texto é uma história dramatizada”. **Euhemerístico: “o texto é uma lenda”.
***Mitopoiético: “o texto revela entidades sobrenaturais de maneira metafórica”.
Embora tenha encontrado divergências de crença nesses grupos, nenhum deles se encaixa nos parâmetros que estou procurando aprender mais: uma crença não ecumênica, não ritualística, mito-histórica e monoteísta. Se algum de vocês tiver informações sobre isso, gostaria de saber.
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