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Magia do Caos

A Magia da Linguagem

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Patrick Dunn
Excerto de ‘Postmodern Magic’ tradução Natalia Naraani

Uma das principais preocupações da arte e da literatura pós-modernas é a linguagem. Autores pós-modernos frequentemente tratam a linguagem como um personagem por si só, permitindo que ela molde e determine cenas e enredos, e às vezes tome o controle, por design, de toda uma história. Alguns artistas criaram obras que dependem menos da peça em si e mais do que as pessoas dizem sobre ela. Por exemplo, um artista que conheço projetou uma galeria em que os corredores entre as exposições eram estreitos e absurdamente pequenos. A verdadeira arte consistia nas reclamações dos visitantes e na visão de todos se contorcendo em posições desconfortáveis. De maneira similar, escritores como William Burroughs brincam com a linguagem, cortando textos antigos e rearranjando-os ou experimentando formas incomuns de publicação.

O interesse pela linguagem surge, pelo menos em parte, da constatação de que, apesar dos avanços científicos, não entendemos a linguagem. Mesmo após um século de estudos linguísticos, ainda não conseguimos explicar aspectos fundamentais da linguagem: como ela funciona em nossas mentes, o que significa comunicar-se ou mesmo se possui uma estrutura subjacente. Noam Chomsky, Stephen Pinker e outros linguistas e psicólogos argumentam que a linguagem é uma habilidade humana fundamental e inata. Mas eles não conseguem explicar como adquirimos essa habilidade ou se ela faz parte de nosso cérebro físico ou é um fenômeno emergente de nossa consciência. Na verdade, a linguística é um campo repleto de mistérios. Como nos comunicamos? Teoricamente, comunicar-se é impossível. Como começamos a nos comunicar? Não sabemos se a linguagem foi inventada uma única vez ou várias vezes. Qual é o papel da linguagem em nossa consciência? O raciocínio não verbal é possível, mas crianças privadas de exposição precoce à linguagem desenvolvem sintomas de doenças mentais. A linguagem é um mistério.

A linguagem pode não parecer particularmente milagrosa, já que a usamos todos os dias, mas considere a gama desconcertante de informações que alguém precisa processar para administrar até mesmo uma frase simples. Primeiro, você precisa saber, mesmo inconscientemente, milhares de regras e dezenas de milhares de exceções a essas regras. Depois, é necessário conhecer um vasto vocabulário—um milhão de palavras ou mais! Finalmente, é preciso ser capaz de traduzir experiências em palavras, frases e sentenças que não têm nenhuma relação genética real com essas experiências. Considere o que isso significa: é como se, toda vez que pedíssemos um hambúrguer, pintássemos um belíssimo quadro a óleo de um hambúrguer.

Na verdade, podemos expressar mais com a linguagem do que com qualquer outro meio abstrato. A linguagem é mais complexa e flexível do que a pintura a óleo. Com a linguagem, não só posso pedir um hambúrguer, mas também posso lhe contar tudo sobre hambúrgueres. Posso fazê-lo imaginar o sabor e o cheiro dos hambúrgueres. Posso até contar histórias fantásticas sobre hambúrgueres—histórias de eventos que nunca aconteceram e nunca poderiam acontecer. Além disso, posso falar sobre filosofia abstrata. Posso explicar coisas em linguagem que ninguém jamais viu ou ouviu. Toda frase que falo tem o potencial de ser algo que ninguém jamais ouviu antes.

Fundamentalmente, a linguagem é um sistema mágico. Os antigos sabiam disso—muitas religiões têm pelo menos uma lenda sobre a linguagem. Os egípcios consideravam seu sistema de escrita sagrado. Na verdade, hieróglifos significa “escrita sagrada” em grego, e Ísis ressuscita seu marido Osíris parcialmente por meio de uma palavra secreta. A lenda judaica nos ensina que cada letra do alfabeto veio diante do Senhor, e o Senhor criou o universo por meio de palavras. Por muito tempo, o nome desse Senhor, aliás, foi considerado uma palavra tão poderosa que até mesmo pronunciá-la era proibido. Os cristãos começam um de seus evangelhos com um paralelo entre Deus e a linguagem: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1:1). João usa a palavra grega logos, que significa tanto “palavra” quanto “razão”. Segundo a filosofia estoica, logos é o sistema de ordem subjacente ao cosmos.

No Gênesis, quando o Deus judaico-cristão quer tirar o poder dos seres humanos de desafiá-lo, ele confunde suas línguas para que não possam se comunicar. Até mesmo as palavras “encanto” e “feitiço” lembram etimologicamente a ligação entre magia e linguagem: “feitiço” vem da mesma raiz de spiel (um discurso longo), e “encantar” significa literalmente “cantar para”.

Por milhares de anos, os pagãos romanos enviaram cartas aos deuses jogando preocupações escritas em poços profundos. Frequentemente, essas cartas continham maldições e queixas, e às vezes incluíam o que poderíamos chamar de “feitiços de amor”. Essas defixiones, como eram chamadas, pareciam ser preparadas com sacrifícios e rituais complexos, mas consistiam fundamentalmente em uma placa de chumbo inscrita com uma fórmula mágica. Essas placas eram, às vezes, dobradas ou enroladas com um prego atravessado. Escavações de poços recuperaram um grande número dessas defixiones. Elas oferecem um raro vislumbre da mente cotidiana de uma pessoa dessa época e cultura.

Explorar as defixiones e suas contrapartes gregas, katadesmoi, levou-me finalmente a uma constatação surpreendente sobre a natureza da linguagem e da magia.

Percebi que a linguagem é um milagre. Ela se conecta tão profundamente ao que chamo de teia semiótica, a estrutura subjacente de significados complexos e caóticos, que é uma verdadeira tecnologia para magia. Não me refiro apenas às chamadas línguas mágicas, como o enoquiano ou o ouraniano bárbaro. As línguas reais e vivas também são mágicas. Os gregos e romanos escreviam suas defixiones usando linguagem cotidiana (e até coloquial). Não havia necessidade de sabedoria transmitida, e as defixiones exigiam muito pouca ou nenhuma habilidade específica. O criador simplesmente escrevia o que desejava realizar, sacrificava um animal, rezava e jogava a defixio em um poço.

Nesse sentido, a magia é absurdamente simples. Coisas relativamente surpreendentes podem ser realizadas apenas escrevendo um desejo em um pedaço de papel, dobrando-o e descartando-o de acordo com as preferências estéticas de cada um.

Os rituais complicados (como o sacrifício, entre outros) envolvidos na criação das defixiones antigas ainda são necessários até hoje, mas apenas no sentido de que a satisfação estética é vital para a magia. Você pode encontrar satisfação estética queimando o papel, enterrando-o, fazendo uma oração sobre ele todas as manhãs ou de diversas outras formas. Lembre-se de que o ato de autoridade mágica é simplesmente expressar o desejo de maneira estética.

Exercício: Uma Defixio Moderna

Crie um espaço, tanto físico quanto mental. Não trate a defixio com leviandade—ela pode ser simples, mas é um ato de magia.

Pegue um pequeno pedaço de papel, grande o suficiente para expressar seu desejo de forma sucinta, mas pequeno o bastante para ser facilmente manipulado. Você pode querer usar uma caneta especial para isso e um estilo de escrita diferenciado. Eu, por exemplo, escrevo minhas defixiones em uma minúscula latina modificada, usando uma caneta de caligrafia, mas o que me agrada esteticamente pode não agradar a você. Você pode escrever parte ou toda a mensagem em uma língua estrangeira ou incluir uma fórmula de invocação às divindades de sua preferência. De qualquer forma, é melhor decidir como proceder antes de começar.

Escreva seu desejo de forma sucinta no pedaço de papel. Use uma linguagem clara, simples e direta. “Eu quero ser amado” é menos poderoso, mesmo na prosa cotidiana, do que “As pessoas me amam” ou até “Pessoas me amam”. Seja específico também. “Pessoas me amam” não é tão eficaz quanto “Pessoas altas e magras com cavanhaques me amam” ou “Estranhos inteligentes e interessantes gostam de conversar comigo”.

Depois de escrever o seu desejo, você precisará descartá-lo de alguma forma. Tradicionalmente, os criadores lançavam as defixiones em poços, porque poços simbolizavam uma abertura para o submundo. Os gregos e romanos imaginavam deuses tanto acima quanto abaixo. Muitos dos deuses da magia viviam no subsolo, assim como os Titãs, que tinham uma natureza algo maligna. Como a maioria das defixiones eram maldições (a nossa não precisa ser), esse simbolismo também se liga bem a túmulos e sepulturas, que são subterrâneos.

De qualquer modo, você não está limitado às práticas dos antigos gregos e romanos. Talvez você prefira queimar sua defixio porque considera o fogo um símbolo de poder e vontade. Ou talvez você queira enterrá-la no seu jardim, porque seu jardim é um lugar de crescimento e estrutura. Eu mantenho minhas defixiones no meu altar, próximo à minha estátua de Buda. Quando acumulo muitas delas, leio-as em voz alta em uma pequena cerimônia de gratidão. Depois, rasgo-as e as espalho ao ar livre.

Resultados e Cuidados

Acredito que suas experiências com defixiones irão surpreendê-lo. Quando percebi que a magia, mesmo uma magia espetacularmente eficaz, podia ser tão simples, isso mudou completamente minha visão sobre o tema. O resultado foi uma nova atitude minha como mago.

Por causa da simplicidade das defixiones, há um risco de usá-las de forma impulsiva, buscando um objetivo em momentos de raiva, desejo ou ganância. A defixio frequentemente funciona de forma mais poderosa do que o esperado. Por exemplo, alguém pode ingenuamente realizar uma defixio para um encontro sexual e acabar sofrendo algo próximo a um estupro. Seja cuidadoso e específico e, acima de tudo, espere que a magia funcione.

Um método simples como a defixio não pode ser eficaz para objetivos muito complicados. Não se pode viajar astralmente ou invocar deuses de maneira muito eficiente por meio da defixio, embora uma defixio preliminar bem feita possa ajudar. Muitos magos que não usam a técnica da defixio declaram seus objetivos antes de iniciar um ritual. Sugiro ir além, não apenas declarando o objetivo, mas escrevendo-o.

Cada palavra em português (ou em qualquer idioma) é, por si só, um pequeno ritual—um sigilo ou símbolo de uma ideia. Combinar o sigilo vocal (a pronúncia da palavra) com o sigilo visual (a palavra escrita) só aumenta o poder. Sua língua nativa é uma língua mágica.


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