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O Tarô na História

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Arthur Edward Waite

Excerto de A Chave Pictórica do Tarot

O nosso próximo objetivo é falar das cartas no que diz respeito à sua história, de modo que as especulações e fantasias    que    se    perpetuaram  e se multiplicaram nas escolas das pesquisas ocultistas possam ser postas de lado de uma vez por todas, como prometi no prefácio deste livro.

Deve ficar entendido logo que há vários conjuntos ou seqüências de cartas antigas que apenas em parte nos interessam. O Tarô dos Boêmios, de Papus, revendo a interpretação imperfeita, traz algumas informações úteis sem tal sentido, e, a não ser pela omissão de datas e de outras provas de natureza arqueológica, servirá ao objetivo para o leitor comum. Não pretendo aqui ampliá-lo de maneira que possa ser chamado de considerável, mas são necessários certos acréscimos, assim também como um modo diferente de apresentação.

Entre as cartas antigas que são mencionadas com relação ao Tarô, há primeiramente as de Baldini, que constituem o célebre conjunto atribuído pela tradição a Andrea Mantegna, embora esse ponto de vista seja hoje geralmente rejeitado. Supõe-se que a sua data esteja em torno de 1470, e acredita-se que não haja mais de quatro coleções restantes na Europa. Uma cópia ou reprodução suposta ser de 1485 é talvez igualmente rara. O conjunto completo contém cinqüenta números, divididos em cinco denários ou seqüências de dez cartas cada uma. Não parece haver indícios de que eram usadas para algum jogo, de azar ou de habilidade; dificilmente poderiam ser usadas para a adivinhação ou mais do que ocioso atribuir um profundo significado simbólico aos seus desenhos evidentemente emblemáticos. O primeiro denário abrange Condições de Vida, como se segue: (1) o Mendigo, (2) o Vilão, (3) o Artesão, (4) o Mercador, (5) o Nobre, (6) o Cavaleiro, (7) o Doge, (8) o Rei, (9) o imperador, (10) o Papa. O segundo contém as Musas e o seu Chefe Divino: (11) Calíope, (12) Urânia, (13) Terpsícore, (14), Erato,    (15)    Polínia,    (16)    Tália,    (17), Melpôneme, (18) Euterpe, (19) Cio, (20) Apoio. O terceiro combina parte das Artes e Ciências Liberais com outros setores da sabedoria humana, como se segue: (21) Gramática, (22) Lógica, (23) Retórica, (24), Geometria, (25) Aritmética, (26) Música, (27) Poesia, (28) Filosofia, (29) Astrologia, (30) Teologia. O quarto denário completa as Artes Liberais e enumera as Virtudes: (31) Astronomia, (32) Cronologia, (33) Cosmologia, (34) Temperança, (35) Prudência, (36) Fortaleza, (37) Justiça, (38) Caridade, (39) Esperança, (40) Fé. O quinto e último denário apresenta o Sistema dos Céus: (41) Lua, (42) Mercúrio, (43) Vênus, (44) Sol, (45) Marte, (46) Júpiter, (47) Saturno, (48) Oitava Esfera, (49) Primum Mobile, (50) Primeira Causa.

Devemos pôr de lado as fantásticas tentativas de extrair completas seqüências do Tarô desses denários; não devemos dizer, por exemplo, que as Condições de Vida correspondem aos Trunfos Maiores, as Musas aos Pentáculos, as Artes e Ciências a Copas, as Virtudes, etc. a Paus e as condições de vida a Espadas. Esse tipo de coisa pode ser feita por um processo de contorção mental, mas que não tem lugar na realidade. Ao mesmo tempo, é difícil que as cartas individuais não apresentem certas, e mesmo gritantes, analogias. O Rei, Cavaleiro e Vilão de Baldini sugerem as cartas de corte correspondentes dos Arcanos Menores. O Imperador, Papa, Temperança, Força, Justiça, Lua e Sol são comuns às cartas de Mantegna e aos Arcanos Maiores de qualquer baralho de Tarô. Há também a tendência de relacionar-se o Mendigo e o Bobo, Vênus e a Estrela, Marte e o Carro, Saturno e o Ermitão, mesmo Júpiter, ou a alternativa da Primeira Causa, com a carta do Mundo do Tarô. (1) As mais destacadas feições dos trunfos Maiores, contudo, faltam na série de Mantegna, e não acredito que a seqüência bem ordenada da última tenha originado outras. Romain Merlin sustenta esse ponto de vista, e atribui positivamente as cartas de Baldini ao fim do século XIV.

Se se admitir que, a não ser acidental e esporadicamente, as figuras emblemáticas ou alegóricas de Baldini têm apenas uma pálida e ocasional conexão com as cartas do Tarô, e qualquer que seja a sua data mais provável, não podendo ter oferecido qualquer motivo originador, segue-se que ainda estamos procurando não apenas uma origem no lugar e no tempo para os símbolos pelos quais estamos interessados, como também o caso específico de sua manifestação no continente europeu, para servir de ponto de partida, seja para trás, seja para diante. Ora, é bem sabido que no ano de 1393 o pintor Charles Gringonneur que, por motivos que não sei quais sejam, foi chamado de adepto do ocultismo e da cabala por um escritor inglês indiferente — desenhou e iluminou algumas espécies de cartas para diversão de Carlos VI da França, quando este se encontrava sofrendo das faculdades mentais, e surge a questão de se saber se algo pode ficar esclarecido sobre a natureza das mesmas. A única resposta que se tem é que, em Paris, na Bibliothéque du Roi, há dezessete cartas desenhadas e iluminadas em São belíssimas, antiguidades de valor inestimável; as figuras têm um fundo de ouro e uma orla de prata; não são, porém, acompanhadas por nenhuma inscrição ou nenhum número.

E certo, de qualquer maneira, que incluem os Trunfos Maiores do Tarô, cuja lista é a seguinte: Bobo, Imperador, Papa, Amantes, Roda da Fortuna, Temperança, Fortaleza, Justiça, Lua, Sol, Carro, Ermitão, Enforcado, Morte, Torre e Juízo Final. Há também quatro cartas de Tarô no Musée Carrer, em Veneza e cinco outras alhures, fazendo um total de nove. Incluem dois Pajens ou Valetes, três Reis e duas Damas, ilustrando assim os Arcanos Menores. Essas coleções foram todas identificadas com o jogo produzido por Gringonneur, mas a imputação foi contestada até o ano de 1848, e, segundo parece, não foi apresentada em nossos dias, mesmo por aqueles que se mostram mais interessados em evidenciar a antigüidade do Tarô. Sustenta-se que todas são de origem italiana e algumas, pelo menos, sem dúvida de origem veneziana. Tem-se sustentado mais com autoridade que o Tarô veneziano constitui a forma mais antiga e verdadeira, que é o pai de todos os outros; eu deduzo, porém, que jogos completos de Arcanos Maiores e Menores pertencem a períodos muito posteriores. Acredita-se que o baralho consistia de setenta e oito cartas.

Não obstante, porém, a preferência mostrada pelo Tarô veneziano, sabe-se que algumas porções de um baralho minciano ou florentino remontam àquele período, entre 1413 e 1418. Estiveram elas em poder da Condessa Gonzaga, em Milão. Um baralho minciano completo, contendo noventa e sete cartas, e a despeito desses vestígios, é considerado, falando-se de um modo geral, como evolução posterior. Há quarenta e um Trunfos Maiores, sendo os números adicionais copiados da série emblemática de Baldini ou nela inspirados. Nas cartas da corte dos Arcanos Menores, os Cavaleiros são monstros do gênero centauro, enquanto os Valetes ora são guerreiros, ora serviçais. Outra diferença reside na predominância de idéias medievais cristãs e completa ausência de qualquer sugestão oriental. Resta, todavia, a questão de se saber se há vestígios orientais em quaisquer cartas do Tarô.

Chegamos, enfim, ao Tarô Bolonhês, às vezes considerado como veneziano e tendo os Trunfos Maiores completos, mas os números 20 e 21 são trocados de ordem. Nos Arcanos Menores, o 2, o 3, o 4 e o 5 das cartas pequenas são omitidos, do que resulta que há sessenta e duas cartas ao todo. A terminação dos Trunfos Maiores na representação do Juízo Final é curiosa, e um tanto impressionante como um ponto de simbolismo; isso, porém, é tudo que parece necessário observar a respeito do baralho de Bolonha, a não ser que se diz ter sido ele inventado — ou, como um Tarô, mais corretamente, modificado — no começo do Século XV, por um Príncipe de Pisa exilado, residente naquela cidade. A finalidade para a qual era usado parece bastante evidente pelo fato de ter, em 1423, São Bernardino de Sienna pregado contra o jogo de cartas e outras formas de jogo. Quarenta anos depois, no tempo do Rei Eduardo do IV, foi proibida a importação de cartas pela Inglaterra. Essa é a primeira menção certa acerca do assunto.

E difícil examinar-se exemplos perfeitos dos baralhos enumerados antes, mas não é difícil encontrarem-se descrições minuciosas e ilustradas, e eu acrescentaria: contanto que o autor não seja ocultista, pois os relatos emanando de tais fontes são habitualmente imperfeitos, vagos e preocupados com considerações que obscurecem as questões críticas. Um exemplo disso é oferecido por certos pontos de vista expressados com relação ao códice de Mantegna, se é que posso continuar a atribuir a cartas de baralho tal denominação. Tem-se estabelecido — como vimos — que Apolo e as Nove Musas correspondem aos Pentagramas, mas a analogia não provém de um trabalho de pesquisa; e o sonho deve se avizinhar do pesadelo antes que possamos identificar a Astronomia, a Cronologia e a Cosmologia com o naipe de Copas. As figuras de Baldini que representam tais assuntos são emblemas de seu tempo, e não símbolos, como o Tarô.

Em conclusão a esta parte, devo observar que tem havido uma tendência entre os especialistas de achar que os Trunfos Maiores não estão originalmente relacionados com os naipes numerados. Não pretendo apresentar um ponto de vista pessoal; não sou especialista em história dos jogos de azar, e odeio o profanum vulgus dos recursos divinatórios; aventuro-me, porém, a observar, com toda a reserva, que se, as recentes pesquisas justificam tal concepção exceto para a velha arte de ler a sorte e adulterar o chamado destino — será muito melhor para os Arcanos Maiores.

Até aqui, o que parece indispensável como preliminar aos aspectos históricos das cartas de Tarô; passarei agora ao lado especulativo do assunto e a apresentar os ensaios de avaliação. Em meu prefácio de o Tarô dos Boêmios, salientei que o primeiro escritor que tornou conhecido o caso das cartas foi o arqueólogo Court de Gebelin, que, pouco antes da Revolução Francesa, gastou vários anos com a publicação de seu Monde Primitif, que se estendeu por nove volumes in quarto. Ele foi, em seu tempo, um erudito, maçom de grau elevado, membro da histórica Loja dos Philalethes e um virtuoso com profundo e permanente interesse no debate sobre as antigüidades universais, antes que existisse uma ciência sobre o assunto. Ainda hoje, os seus memoriais e as suas dissertações, coligidas sob o título que citei, merecem atenção. Por um acaso, ele travou conhecimento com o Tarô que era então inteiramente desconhecido em Paris, e imediatamente concebeu a idéia de que se tratava de remanescentes de um livro egípcio. Realizou pesquisas a propósito e verificou que o Tarô circulava em uma parte considerável da Europa — Espanha, Itália, Alemanha e Sul da França. Era usado como jogo de azar ou de habilidade, segundo o modo habitual de jogar cartas; e verificou mais como se jogava. Também era usado, contudo, para a finalidade mais elevada de adivinhação ou leitura da sorte, e, com a ajuda de um amigo erudito, Court de Gebe- lin, descobriu a significação atribuída às cartas, juntamente com o método de arranjo adotado para esse fim. Em uma palavra, foi valiosa a sua contribuição para o nosso conhecimento, e ainda constitui uma fonte de referência, mas apenas como questão de fato, e não na sua querida hipótese de que o Tarô contém a pura doutrina egípcia. Ele, contudo, criou a opinião que prevalece até os nossos dias, por intermédio das escolas do ocultismo, segundo a qual estava perdida a origem das cartas, no mistério e, portanto, na estranha noite dos deuses, na língua estranha e nos hieróglifos não decifrados que simbolizavam o Egito no fim do Século XVIII. Assim sonhava um dos característicos literatos da França, e até podemos compreender e simpatizar com ele, pois o país do Delta e do Nilo estava começando a ocupar ampla-mente a curiosidade dos eruditos, e omne ignotum pro AEgyptiaco era o caminho da ilusão para o qual rumavam aqueles espíritos. Então, era bastante desculpável, mas não há desculpa para o fato de haver continuado a loucura e, dentro do círculo encantado das ciências ocultas, ainda ser transmitida de boca em boca. Vejamos, pois, as provas apresentadas por M. Court de Gebelin a favor de sua tese, que procurarei resumir, tanto quanto possível, com as suas próprias palavras.

As figuras e disposição do jogo são manifestamente alegóricas; (2) as alegorias estão na conformidade da doutrina civil, filosófica e religiosa do antigo Egito; (3) se as cartas fossem modernas, nenhuma Alta Sacerdotisa estaria incluída entre os Arcanos Maiores; (4) a figura em questão traz os chifres de Ísis; (5) a carta chamada o Imperador tem um cetro que termina com uma tríplice cruz; (6) a carta intitulada a Lua, que é Ísis, mostra gotas de chuva ou orvalho no ato de serem derramadas pela luminária, e tais gotas são — como vimos as lágrimas de Ísis, que encheram as águas do Nilo e fertilizaram os campos do Egito; (7) a décima sétima carta, ou Estrela, é Sírio, que foi consagrada a Ísis e simboliza o começo do ano; (8) o jogo jogado com o Tarô se baseia no número sagrado sete, que tinha grande importância no Egito; (9) a palavra Tarô é pura-mente egípcia: no idioma egípcio, Tar = estrada ou caminho, Ro = rei ou real, e Tarô significa, portanto, Estrada Real da Vida; (10) alternativamente, deriva de A = doutrina; Rosh = Mercúrio = Tot, e o artigo T em suma, Tarosh; e, portanto, o Tarô é o Livro de Tot, ou o Quadro da Doutrina de Mercúrio.

Tal é o testemunho, ficando entendido que deixei de lado várias afirmações fortuitas, sem qualquer espécie de justificativa. São, portanto, dez as colunas que sustentam o edifício da tese, e são colunas de areia. O Tarô é, sem dúvida, alegórico — quer dizer, é simbolismo — mas as alegorias e símbolos são católicos — pertencem a todos os países, todas as nações e todos os tempos: não são mais egípcios do que mexicanos; são da Europa e de Catai, do Tibete além do Himalaia e das sarjetas de Londres. Como alegoria e símbolo, as cartas correspondem a muitos tipos de idéias e de coisas; são universais e não particulares; e o fato de que não correspondem especial e peculiarmente à doutrina egípcia — religiosa, filosófica ou civil — se torna claro pela impossibilidade de Court de Gebelin ir além de uma simples afirmação. A presença de uma Alta Sacerdotisa entre os Trunfos Maiores se explica mais facilmente como lembrança de alguma antiga superstição, o culto de Diana, por exemplo, cuja persistência na Itália moderna tem sido exposta com notáveis resultados por Leland. Também devemos lembrar a universalidade dos chifres em todos os cultos, sem excetuar os do Tibete. A tríplice cruz é despicienda como exemplo do simbolismo egípcio; é a cruz da sé patriarcal, tanto grega como latina de Veneza e Jerusalém, por exemplo — e é a forma de persignação usada até hoje por sacerdotes e leigos no rito ortodoxo. Deixo de lado a ociosa alusão às lágrimas de Isis, porque outros autores ocultistas nos têm dito que se trata de Jods hebraicos; no que diz respeito à décima sétima carta, trata-se da estrela Sírio ou de outra que se prefira; o número sete era sem dúvida importante no Egito, e qualquer tratado sobre o misticismo mostrará que o mesmo se aplica em toda a parte, mesmo se preferirmos ignorar os sete Sacramentos Cristãos e os sete Dons do Espírito Santo. Final-mente, no que diz respeito à etimologia da palavra Tarô, é bastante observar que ela foi oferecida antes da descoberta da Pedra de Rosetta e quando nada se conhecia sobre o idioma egípcio.

A tese de Court de Gebelin não foi perturbada no espírito da época, tendo apelado para os homens cultos exclusivamente por meio de um quarto volume. Deu uma oportunidade às cartas do Tarô em Paris, como centro da França e de todas as coisas francesas no universo. A sugestão é de que a adivinhação por meio de cartas tinha a apoiá-la a inesperada garantia da antiga ciência oculta, e que a raiz de tudo se encontrava nas maravilhas e mistério do Egito refletiram-se quase que como uma dignidade divina; dos limites da prática oculta da cartomancia saiu para entrar na moda e assumiu no momento fei- ção quase pontifical. O primeiro a tomar o papel de bateleur, mágico e prestidigitador, foi um iletrado mas zeloso aventureiro, Alliette; em segundo lugar, como uma espécie de Alta Sacerdotisa, cheia de intuição e revelações, apresentou-se Mlle. Lenormand, mas essa pertence a um período posterior; enfim, surgiu Julia Orsini, mais semelhante a uma Rainha de Copas do que a uma portadora de clarividência. Não me interesso por essas pessoas como leitoras da sorte, quando o próprio destino se encarregava de embaralhar e distribuir as cartas no jogo universal da revolução, ou por cortes e cortesãos como os de Luís XVIII, Carlos X e Luis Felipe. Mas sob a designação oculta de Etteilla, anagrama de seu nome, Alliette, aquele perruquier levou em consideração a si mesmo com muita seriedade e apresentou-se mais como um sacerdote de ciências ocultas do que como um entendido comum em l’art de tirer les cartes. Até hoje há gente, como o Dr. Papus, que pensa salvar do esquecimento uma parte daquele bizarro sistema.

O longo e heterogêneo relato de Le Monde Primitif foi terminado em 1782; em 1783 as páginas de Etteilla começaram a ser publicadas, atestando que ele já gastara trinta, ou melhor, quase quarenta anos, no estudo da magia egípcia, e que encontrara afinal as chaves. Eram, de fato, as Chaves do Tarô, que eram um livro de filosofia e o Livro de Tot, mas ao mesmo tempo fora realmente escrito por dezessete Magos em um Templo de Fogo, nos limites do Levante, a cerca de três léguas de Mênfis. Continha a ciência do universo, e o cartomante tratava de aplicá-lo à Astrologia, Alquimia e leitura da sorte, sem a mais leve hesitação ou reserva em revelar que visava a uma atividade lucrativa. Não tenho dúvida, realmente, de que o considerava como um métier legítimo, e que ele próprio foi a primeira pessoa que convenceu a respeito de seu sistema. Mas o que quero salientar é que, a partir daquele modo, a antigüidade do Tarô foi geralmente trombeteada. Os livrinhos de Etteilla constituem uma prova cabal de que ele não conhecia sequer o seu próprio idioma; quando, com o decorrer do tempo, publicou um Tarô reformado, mesmo aqueles que o encaram com a maior simpatia admitiram que ele deturpara o seu simbolismo; e, no que diz respeito à antiguidade, ele tinha apenas Court de Gebelin como a sua autoridade universal.

Os cartomantes sucederam-se uns aos outros do modo que mencionei, e houve, naturalmente, adeptos rivais desses mistérios diminutos; mas os estudos sérios sobre o assunto, se se pode dizer que existem, baseiam-se todos no volume in-quarto de Court de Gebelin há algo mais de sessenta anos. Por sua autoridade, não se pode duvidar que quem travou conhecimento, na teoria ou na prática, por acaso ou intencionalmente, com a questão das cartas de

Tarô, aceitou o seu caráter egípcio. Tem-se dito que as pessoas são geralmente aceitas pelo que dizem de si mesmas, e — seguindo, como acontece, a linha da menor resistência — a mentalidade geral pouco especulativa aceita as pretensões arqueológicas mais ousadas e aqueles que as sustentam. O primeiro que se apresentou para reconsiderar o assunto com algumas credenciais foi o escritor francês Duchesne, mas sou obrigado a deixá-lo de lado com uma simples referência, e assim também algumas interessantes pesquisas sobre o assunto geral de cartas de jogar por Singer, na Inglaterra. Esse último acreditava que o velho jogo veneziano chamado Trappola foi a forma européia mais antiga de jogos de carta, que sua origem era árabe e que as cinqüentas e duas cartas usadas derivam daquela região. Não creio que qualquer im- portância tenha tido esse ponto de vista.

Duchesne e Singer foram seguidos por outro autor inglês, W. A. Chatto, que reviu os fatos disponíveis e a onda de especulações já provocada pelo assunto. Isso ocorreu em 1848, e a sua obra ainda teve uma certa autoridade, mas — a não ser algumas observações corretas atribuíveis ao seu espírito independente — o resultado é medíocre ou mesmo fraco. Foi, contudo, característico em sua maneira de apreciar a incerteza do Século XIX. Chatto rejeitou a hipótese egípcia, mas, como pouco se preocupou com ela, dificilmente poderia desbancar Court de Gebelin, se esse último tivesse qualquer terreno sólido para apoiar a sua hipótese. Em 1854, outro escritor francês, Boiteau, encarou a questão em geral, sustentando a origem oriental das cartas do Tarô, embora sem tentar prová-la. Não tenho certeza, mas creio que ele foi o primeiro autor que as identificou com os ciganos; para ele, contudo, o lar original dos ciganos era a Índia, e o Egito não entrava, portanto, em seus cálculos.

Em 1860, surgiu Eliphas Lévi, um brilhante e profundo illuminé, que é impossível aceitar e ainda mais impossível rejeitar. Jamais houve uma boca declarando tão grandes coisas, de todas as vozes ocidentais que proclamaram ou interpretaram a ciência chamada oculta e a doutrina chamada mágica. Parece-me que, fundamentalmente falando, ele se preocupava tanto e tão pouco quanto eu pela parte fenomenal, mas explicava os fenômenos com a segurança de alguém que abertamente admitia ser o charlatanismo um grande meio para um determinado fim, se usado em prol de uma causa justa. Ele se apresentou e se acreditou, também por sua própria avaliação, como um homem de grande saber — que nunca foi — e como revelador de todos os mistérios, sem ter sido iniciado em nenhum. Creio jamais ter havido exemplo de um escritor com grandes dons, em sua peculiaridade, que os tenha utilizado de maneira tão medíocre. Afinal de contas, ele era apenas Etteilla encarnado pela segunda vez, dotado em sua transmutação de uma boca de ouro e de um conhecimento casual mais vasto. Não obstante isso, ele escreveu a mais completa, brilhante e agradável História da Magia jamais escrita em qualquer idioma. Levou muito a sério o Tarô e a hipótese de Gebelin, e toda a França ocultista e a Grã-Bretanha esotérica, martinistas, cabalistas semi- instruídos, escolas de soi disant teosofia — aqui, ali e acolá — aceitaram o seu juízo a respeito com a mesma confiança com que aceita-ram as suas interpretações dos grandes clássicos da Cabala, pelos quais antes passou os olhos do que os leu. Para ele, o Tarô era não somente o mais perfeito instrumento de adivinhação e a pedra angular da ciência oculta, como também o livro primitivo, o único livro dos antigos Magos, o volume milagroso que inspirou todos os escritos sagrados da Antigüidade. Em sua primeira obra, todavia, Lévi se contentou em aceitar a construção de Court de Gebelin e reproduzir o sétimo Trunfo Maior com umas poucas características egípcias. A questão da transmissão do Tarô através dos ciganos não o preocupou, até que J. A. Vaillant, um bizarro escritor com grande conhecimento do povo cigano, levantou a hipótese em suas obras sobre aquelas tribos errantes. Os dois autores quase coincidiram e refletiram um ao outro, de então para diante. Coube a Romain Merlin, em 1869, salientar o que deveria ser evidente, isto é, que cartas de baralho de alguma espécie eram conhecidas na Europa antes da chegada dos ciganos, cerca de 1417. Mas, como essa foi a data de sua chegada a Luneburg, e como a sua presença pode ser assinalada anteriormente, a correção perdeu grande parte de sua força; o mais seguro, portanto, é dizer que as provas do uso do Tarô pelas tribos ciganas só foram apresentadas depois do ano de 1840; o fato de alguns ciganos, antes daquele tempo, terem sido encontrados usando as cartas é perfeitamente explicável, admitindo-se a hipótese, não de que eles as tenham trazido para a Europa, e sim de que já as encontraram ali e as adotaram.

Já vimos que não há a menor prova da origem egípcia das cartas de Tarô. Olhando- se em outras direções, observou-se certa vez que cartas de algum tipo foram inventadas na China, cerca do ano de 1120 da nossa era. Court de Gebelin acreditava, em seu entusiasmo, que as descobrira em uma inscrição chinesa considerada antiqüíssima, que se dizia refletir-se ao abaixamento das águas do Dilúvio. Os caracteres de tal inscrição estavam contidos em setenta e sete compartimentos, e isso constitui a analogia. A Índia também teve as suas tabuletas, fossem cartas ou outras coisas, o que sugeriu também semelhanças igualmente tênues. Mas a existência, por exemplo, de dez seqüências ou estilos, de doze números cada um, e representando os avatares de Vixnu, como um peixe, uma tartaruga, um javali, um leão, um macaco, um guarda-chuva ou um arco, assim como um bode, uma tenda e um cavalo, não vai nos ajudar a descobrir a origem dos nossos próprios Trunfos Maiores, nem coroas e harpas — nem mesmo a presença de possíveis moedas como sinônimos de dinheiros e talvez como um equivalente de pentagramas — contribuíram sensivelmente para elucidar os Arcanos Menores. Se todos os idiomas, povos, regiões e épocas possuíram suas cartas — se também com elas filosofaram, adivinharam e jogaram — o fato seria bastante interessante, mas a não ser que fossem cartas do Tarô, o fato

 

só denotaria a tendência universal do homem de buscar as mesmas coisas mais ou menos da mesma maneira.

Termino, pois, a história desse setor repetindo que não há história anterior ao Século XIV, quando se ouviram as primeiras informações referentes às cartas. E possível que existissem há séculos, mas mesmo isso parece duvidoso, ainda que só fossem usadas no jogo ou para prever o futuro; por outro lado, se continham indícios profundos da Doutrina Secreta, o Século XIV parece cedo demais, ou, pelo menos, a esse respeito não podemos saber grande coisa.


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