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De Noús a Hermes – Corpus Hermeticum

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Retenha bem meu discurso, Hermes Trismegistos, e mantenha na memória o que te digo. Quanto a mim, não hesitarei a declarar o que me vai no espírito. – Falou-se bem e muito relativamente ao Todo, a Deus e estes assuntos são contraditórios, tanto que não consegui, no que me concerne, apreender a verdade: esclareça-me sobre o assunto, Senhor. Pois é a ti e a ti somente que me será possível crer, se desejas desvelar-me a questão.

Escuta então, o que concerne a Deus e ao Todo.

Deus, a eternidade, o mundo, o tempo, o futuro.

Deus fez a Eternidade, a Eternidade fez o mundo, o mundo fez o tempo, o tempo fez o futuro. De Deus, a essência por assim dizer é (o bem, o belo, a beatitude) a sabedoria; da eternidade é a identidade; do mundo é a boa ordem; do tempo é a mudança; do futuro é a vida e a morte. Deus tem por energia o intelecto e a alma; a Eternidade a duração e a imortalidade; o mundo o apocatastasis e o apocatastásis oposto; o tempo o crescimento e o decrescimento; o futuro e qualidade e a quantidade. Assim a Eternidade está em Deus; o mundo na Eternidade, o tempo no mundo, o futuro no tempo. E enquanto a Eternidade se mantém imóvel em Deus, o mundo está em movimento na Eternidade o tempo se cumpre no mundo e o futuro se desenrola no tempo

3 Deus é portanto a fonte das coisas, a Eternidade lhes é essência e o mundo a matéria. A Eternidade é a Potência de Deus, e a obra da Eternidade é o mundo, que não tem começo, mas que é continuamente no futuro pela ação da Eternidade. Eis porque tudo o que está nesse mundo não perecerá jamais (pois a Eternidade é imperecívell nem será destruído, porque o mundo está totalmente envolvido pela Eternidade. – Mas o que é a Sabedoria de Deus? – É o bem e o belo e a beatitude e a virtude total da Eternidade. A Eternidade faz do mundo uma ordem, introduzindo a imortalidade e a duração na matéria.

4 Com efeito, o devir da matéria depende da Eternidade, como a Eternidade depende de Deus. O devir e o tempo se encontram no céu e na terra, mas possuem duas naturezas diferentes: no céu não se transformam e são imperecíveis, na terra são mutáveis e perecíveis. E da Eternidade Deus é a alma, do mundo é a Eternidade, da terra é o céu. Deus está no intelecto, o intelecto na alma, a alma na matéria: e todas essas coisas subsistem, através da Eternidade. Todo esse grande corpo no qual se acham contidos os corpos, uma alma plena de intelecto e de Deus o completa no interior e o envolve no exterior, vivificando o Todo no exterior desse vasto e perfeito vivente que é o mundo, no interior de todos os viventes e no alto, no céu dura sem mudar, idêntica a si mesma, embora embaixo, na terra, produza as variações do devir.

5 É a Eternidade que mantém coeso todo esse mundo, por meio da necessidade, ou da providência, ou da natureza, ou de seja lá o que for que se possa pensar hoje ou depois. E tudo que produz pela sua atividade, é Deus, e a energia de Deus, força insuperável, e à qual não se podem comparar as coisas humanas ou divinas. Por esta razão, ó Hermes, nunca vá pensar que alguma das coisas daqui de baixo ou de cima são semelhantes a Deus, pois te afastarás da verdade: efetivamente nada há de semelhante ao Dissemelhante, Só e único. E não pense também que ele dá parte de sua potência seja lá a quem for. Existe depois dele algum outro criador da vida, da imortalidade, da transformação? E ele que poderá fazer além de criar? Pois Deus não é inativo, de outra forma o Universo também seria inativo: pois tudo é pleno de Deus. Mas, de fato, não se verifica inatividade em parte alguma, nem no mundo, nem em qualquer outro ser que seja. Inatividade é uma palavra vazia, relativamente àquele que criou e àquele que vem a ser.

6 Ora é necessário que tudo venha a ser, e sempre, segundo a influência própria a cada lugar. Pois aquele que cria está em todos os seres, não permanece fixado em um deles e não criou um apenas, mas todos: pois sendo uma força sempre atuante não tira sua suficiência dos seres criados mas são os seres criados que lhe são submissos.

Contempla, por mim o mundo que se oferece à tua visão e considera atentamente sua bondade: esse corpo sem mácula que nada ultrapassa em antigüidade, eternamente na força da idade e jovem, e sempre mais florescente!

7 Vê também a hierarquia dos sete céus formados em boa ordem segundo uma disposição eterna, preenchendo cada um por um curso diferente a eternidade. Vê todas as coisas repletas de luz sem que haja fogo em parte alguma: pois a amizade e combinação dos contrários e dos dissemelhantes tornou-se luz, repleta embaixo pela energia do deus que é gerador de todo bem, chefe e condutor de toda a boa ordem dos sete céus. Veja a lua que corre à frente de todos esses céus, instrumento da vida física, transformando a matéria daqui de baixo. Veja a terra, estabelecida no meio do Todo, bem estabelecida como fundamento deste mundo tão belo, nutriz dos seres terrestres. Considera ainda quão grande é a multiplicidade dos viventes imortais, imensa aquela dos mortais e veja, mediatriz entre mortais e imortais, a lua que prossegue sua ronda.

8 Tudo está cheio de alma, todos os seres estão em movimento, uns no céu, outros na terra e nem os que devem estar à esquerda seguem à direita e nem aqueles que devem estar à direita seguem à esquerda, nem os que devem estar no alto estão embaixo, nem os que devem estar embaixo estão no alto. Que todos esses seres foram produzidos, caríssimo Hermes, não precisas ouvir de minha boca: esses são com efeito os corpos, possuem uma alma, e são movidos. Ora todos esses corpos não podem convergir para um único ser sem alguém que os reúna. É preciso portanto que esse alguém exista e seja absolutamente único.

9 Pois, como os movimentos são diversos e múltiplos e como os corpos são dissemelhantes, como, portanto, a velocidade total imposta a esses corpos é única, não podem existir dois ou mais criadores: realmente, quando se é múltiplo não se mantém a unidade da ordem e não se pode ser múltiplo sem que resulte ciúme relativamente ao mais possante. E eu te direi, suponha que haja um segundo criador para os viventes mutáveis e mortais, seria tomado então do desejo de criar também os imortais e da mesma forma o criador dos imortais quereria criar os mortais. E mais ainda, suponha que existam dois enquanto que a matéria é uma e a alma uma, a qual dos dois pertencerá o cuidado de efetuar a criação? E se o cuidado pertence a ambos, qual dos dois tomará maior parte nele?

10 Pensa que todo corpo vivente é composto de matéria e de alma, tanto o imortal quanto o mortal, tanto o racional quanto o irracional. Pois todos os corpos viventes são animados e os não viventes são simplesmente a matéria que subsiste à parte nela mesma, deposta que está entre as mãos do criador e é então o criador dos imortais que é o autor da vida: como não criaria também os outros viventes que não imortais?

11 Que existe alguém que criou estas coisas é evidente. E agora está absolutamente manifesta a sua unicidade: na verdade a alma é uma, a vida é uma, a matéria é uma. Qual é então esse criador? Quem pode ser ele senão o único Deus? A quem seria conveniente criar viventes providos de alma, se não a Deus somente? Deus é portanto único. É coisa evidentemente visível! Reconheceste que o mundo é sempre um, o sol um, a lua uma, a atividade divina uma, e queres que Deus seja membro de uma série?

12 É Deus, portanto, que sozinho criou as coisas. E o que há de maravilhoso no fato de Deus ter criado ao mesmo tempo: a vida, a imortalidade, as transformações, se fazes, também, tantas coisas diversas? Pois vês, falas, escutas, cheiras, tocas, andas, pensas, respiras, e não é um outro que fala, que escuta, um outro que cheira, um outro que anda, um outro que pensa e um outro que respira, mas é um único ser que faz tudo isto. E as atividades divinas também não podem ser separadas de Deus. Pois se paras de fazer estes atos, não és mais um vivente e o mesmo se dá com Deus, pois se cessa de o fazer, coisa ímpia de se dizer, não é mais Deus.

13 Pois se demonstraste que não podes existir sem alguma atividade, quanto mais Deus! Com efeito, se existe alguma coisa que não crie, Deus, coisa ímpia de se dizer, é imperfeito; e se Deus não é inativo, mas contrariamente perfeito, é porque criou todas as coisas.

Se quiseres, ó Hermes, prestar-me um pouco de atenção, conceberás que Deus possui apenas uma obra, é fazer com que as coisas venham a ser, o que vem, o que veio há um momento, o que virá no futuro. É isto, caríssimo, que é a vida, que é o belo, que é o bem, é isto que é Deus.

14 E se quiseres compreendê-lo pela tua própria experiência, percebe o que se passa em ti quando queres engendrar. Verdadeiramente quando se trata de Deus, o ato de engendrar não é nem um pouco semelhante: Deus seguramente não encontra prazer sensível e não possui nenhum colaborador. Com efeito, como opera sozinho, sempre é imanente à sua obra, sendo ele mesmo o que ele produz. Pois se suas criaturas fossem separadas dele, dobrar-se-iam e pereceriam necessariamente, não mais possuindo vida. Mas, como tudo é vivente e como a vida também é uma, Deus é certamente único. Por outro lado, já que tudo é vivo, os seres do céu e os da terra, e como a vida é única em todos, é produzida por Deus e é ela que é Deus, é portanto pela ação de Deus que todas as coisas vêm a ser e a vida é a união do intelecto e da alma. Quanto à morte, ela não é a destruição dos elementos reunidos, mas ruptura da união.

15 Assim como a Eternidade é a imagem de Deus, o mundo imagem da Eternidade, o Sol imagem do mundo, o ser humano é a imagem do Sol. Quanto à transformação, é chamada morte porque o corpo se dissolve enquanto a vida se dissipa no invisível. Ora os seres que se dissolvem desta maneira, meu caríssimo Hermes, e o mundo, declaro que se transformam pelo fato de que, a cada dia, uma parte do mundo vai para o invisível, mas não que se dissolvam. E eis o que são as paixões do mundo: rotações e desaparições. Ora a rotação é revolução, e desaparição é renovação.

16 Destarte o mundo é omniforme, não que possua as formas abrigadas em si, é em si mesmo que ele se transforma. E sendo então o mundo omniforme, o que pode ser aquele que o criou? Não digamos que seja sem forma! Por outro lado, se também é omniforme, é semelhante ao mundo. Mas e se ele possui apenas uma forma? Será sob este ponto de vista inferior ao mundo. Que diremos que ele é para não deixar o discurso sem término? Pois nada é inconcluso na nossa concepção de Deus. Deus possui apenas uma figura – se alguma figura é própria a Deus – que não se oferece aos olhos corporais – incorpórea, e desvela todas as formas por meio do corpo.

17 E não te espantes que possa existir uma figura incorpórea, ela existe efetivamente, como a figura da palavra. E da mesma forma, nas pinturas, vêem-se cimos de montanhas se elevando muito acima, quando na verdade são chatas e lisas. Examina ainda o que acabo de te dizer de um ponto de vista mais ousado, mas também mais verdadeiro. Da mesma forma que o ser humano não pode existir sem a vida, Deus também não o pode sem produzir o bem. É isto precisamente que é a vida e movimento de Deus, o fato de mover todos os seres e de lhes dar a vida.

18 Certos termos devem ser tomados em uma acepção particular, considera por exemplo o seguinte argumento. Todos os seres estão em Deus, mas não estão colocados como em um lugar, (na verdade o lugar é um corpo, e um corpo imóvel, e o que está no lugar não possui movimento): mas é de uma outra maneira que estão colocados na faculdade incorpórea de representação. Concebe então aquele que contém todos os seres e compreende que não há nada que possa circunscrever o incorpóreo, nem que seja mais rápido e possante que ele, de fato é o incorpóreo que é incircunscritível, mais rápido e possante que todos os seres.

19 Julga-o também da maneira seguinte, segundo os teus critérios. Ordena à tua alma que esteja na Índia e eis que, mais rápida que tua ordem lá estará, não por ter viajado de um local e outro, mas como se já estivesse lá. Ordena que voe para o céu, e não necessitará a mesma de asas: nada pode impedí-la, nem o fogo do sol, nem o éter, nem a revolução do céu, nem os corpos dos outros astros: mas, cortando todos os espaços, subirá em seu vôo até ao último dos corpos.

E se quiseres passar a abóbada do universo e contemplar o que existe além dela (se é que algo existe depois dela): tu o podes.

20 Vês que potência, que velocidade possuis! E se podes tudo isto, Deus não o poderia? É desta maneira então que deves conceber Deus: tudo que é contido nele como pensamentos, o mundo, ele mesmo, o Todo. Se não te fazes igual a Deus, não podes compreender a Deus: pois o semelhante só é inteligível ao semelhante. Faça-te crescer até corresponder à grandeza sem medida, por um salto que te libere de todo corpo; eleva-te acima de todo tempo, torna-te o Aíòn: então compreenderás Deus. Sabendo que não é impossível para ti, estima-o imortal e capaz de tudo compreender, toda arte, toda ciência, o caráter de todo ser vivente. Sobe acima de toda altura, desce mais que toda profundidade, reúna em ti as sensações de todo o criado, do fogo e da água, do seco e do úmido, imaginando que estás ao mesmo tempo na terra, no mar, no céu e que ainda não nasceste e que estás no ventre materno, que és adolescente, ancião, que estás morto e que estás além da morte. Se alcanças com o pensamento essas coisas ao mesmo tempo: tempo, lugar, substância, qualidade, quantidade, podes compreender Deus.

21 Mas se mantens tua alma aprisionada no corpo, se a abaixas e dizes: “Eu não concebo nada, eu não posso, tenho medo do mar, não posso subir ao céu; não sei o que sou, não sei o que serei” que queres com Deus? Pois não podes alcançar com o pensamento nenhuma das coisas belas e boas, tanto amas teu corpo e és malvado. O vício supremo, indubitavelmente, é não conhecer o divino. Contrariamente, ser capaz de conhecer, e ter tido a vontade e a firme esperança, é a via direta que conduz ao Bem e uma via fácil. Durante tua marcha, ele virá em toda parte e teu encontro, em todo lugar se oferecerá à tua vista, mesmo no lugar e na hora em que não o esperas, estejas em vigília ou em repouso, navegues ou caminhes, de noite ou de dia, falando ou calando-te: pois nada existe que ele não seja.

22 Dirás agora: “Deus é invisível?” Não fala assim, o que é mais manifesto que Deus? Ele criou tudo para que o vejas através de todos os seres. Eis o bem de Deus, o poder miraculoso de Deus de se manifestar através de todos os seres. Pois nada há de invisível mesmo entre os incorpóreos. O intelecto se torna visível no ato de pensar, Deus no ato de criar.

Minhas revelações cessam neste ponto, ó Trismegistos. Para o resto siga o mesmo método e não serás decepcionado.

Corpus Hermeticum


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