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Definimos os milagres como efeitos naturais de causas excepcionais.
A ação imediata da vontade humana sobre os corpos, ou ao menos esta ação exercida sem meio visível, constitui um milagre na ordem física.
A influência exercida sobre as vontades ou inteligências, quer repentinamente, quer num tempo dado, capaz de prender os pensamentos, mudar as resoluções mais firmes, paralisar as paixões mais violentas, constitui um milagre na ordem moral.
O erro comum, relativamente aos milagres é, considerá – los como efeitos sem causas, como contradições da natureza, como resoluções repentinas da imaginação divina; e ninguém pensa que um único milagre desta sorte romperia a harmonia universal e mergulharia o universo no caos.
Há milagres impossíveis ao próprio Deus: são os milagres absurdos. Se Deus pudesse ser absurdo um único instante, nem ele nem o mundo não existiriam mais no instante seguinte. Esperar do arbitrário divino um efeito cuja causa se desconhece ou não existe é o que se chama tentar Deus; precipitar – se no vácuo.
Deus age pelas suas obras: no céu opera pelos anjos e na terra pelos homens. Logo, no círculo de ação dos anjos, os anjos podem tudo o que é possível a Deus, e no círculo de ação dos homens, os homens dispõem igualmente da onipotência divina.
No céu das concepções humanas é a humanidade que cria Deus, e os homens pensam que Deus os fez à sua imagem, porque o fazem à sua.
O domínio do homem é toda natureza corporal e visível na terra, e, se não rege os grandes astros e as estrelas, pode ao menos calcular o seu movimento, medir a sua distância e identificar a sua vontade com a sua influência; pode modificar a atmosfera, agir até certo ponto sobre as estações, curar e fazer ficar doentes seus semelhantes, conservar a vida e dar a morte, e pela conservação da vida entendemos, como dissemos, em certos casos, até a ressurreição.
O absoluto em razão e vontade é o maior poder que seja dado ao homem alcançar, e é por meio deste poder que opera o que a multidão admira sob o nome de milagres.
A mais perfeita pureza de intenção é indispensável ao taumaturgo; depois lhe é necessária uma corrente favorável e uma confiança ilimitada.
O homem que chegou a nada desejar e a nada temer é o senhor de tudo. É o que é expresso por esta bela alegoria do Evangelho, em que se vê o Filho de Deus, três vezes vitorioso do espírito impuro, ser servido no deserto pelos anjos.
Nada resiste, na terra, a uma vontade razoável e livre. Quando o sábio diz: “Eu quero ”, é o próprio Deus que quer, e tudo o que ordena se realiza.
É a ciência e confiança do médico que fazem a virtude dos remédios, e não existe outra medicina eficaz e real a não ser a taumaturgia.
Por isso, a terapêutica oculta é isenta de qualquer medicamentação vulgar. Emprega principalmente as palavras, as insuflaçãos, e comunica pela vontade uma virtude variada às substâncias mais simples: a água, o óleo, o vinho, a cânfora e o sal. A água dos homeopatas é verdadeiramente uma água magnetizada e encantada que opera pela fé. As substâncias que a ela se acrescentam em quantidades, por assim dizer, infinitesimais, são consagrações e como que sinais da vontade do médico.
O que vulgarmente é chamado charlatanismo é um meio de sucesso real na medicina, se este charlatanismo é bastante hábil para inspirar uma grande confiança e formar um círculo de fé. Em medicina, é principalmente a fé que salva. Não há quase vila que não tenha o seu ou a sua praticante de medicina oculta, e estas pessoas têm, em quase toda parte e sempre, um sucesso incomparavelmente maior que o dos médicos aprovados pela Faculdade. Os remédios que prescrevem são, muitas vezes, ridículos ou bizarros, e têm ainda mais sucesso, porque exigem e realizam mais fé da parte dos pacientes e operadores.
Um antigo negociante nosso amigo, homem de um caráter bizarro e um sentimento religioso muito exaltado, depois de se ter retirado do comércio, pôs – se a exercer gratuitamente e por caridade cristã a medicina oculta, num departamento da França. Só empregava, para específicos, o óleo, as insuflaçãos e as preces. Um processo, que lhe foi intentado por exercício ilegal da medicina, pôs o público em condições de verificar que, mais ou menos no espaço de cinco anos, lhe eram atribuídas dez mil curas, e que o número dos crentes aumentava sem cessar, em proporções capazes de alarmar seriamente todos os médicos do país.
Vimos em Mans uma pobre religiosa, que diziam ser um pouco idiota, a qual curava todos os doentes dos campos vizinhos com um elixir e um esparadrapo de sua invenção. O elixir era para uso interno, o esparadrapo para uso externo; deste modo, nada escapava a esta panacéia universal. O emplastro nunca era pregado na pele a não ser nos lugares em que era necessária a sua aplicação; aliás, em toda parte, ele se enrolava e caía; não menos é o que pretendia a boa irmã e o que afirmavam seus doentes. Essa taumaturga teve também processos de concorrência, porque empobrecia a clientela de todos os médicos do país. Foi rigorosamente enclausurada, mas logo foi preciso dá – la, o menos uma vez por semana, ao desejo e à fé das populações. Vimos, no dia das consultas da irmã Joana Francisca, pessoas do campo, chegadas na véspera, esperar a sua ocasião, deitadas à porta do convento; aí tinham dormido sobre a pedra, e esperavam, para voltar, só o elixir e o emplastro da boa irmã. O remédio sendo o mesmo para todas as doenças, pareceria que ela não tinha necessidade de conhecer os sofrimentos dos seus doentes. Todavia, os escutava com atenção e só confiava o seu específico com conhecimento de causa. Aí estava o segredo mágico. A direção de intenção dava ao remédio a sua virtude especial. Este remédio era insignificante por si mesmo. O elixir era aguardente aromatizada e misturada com suco de ervas amargas; o emplastro era feito de uma mistura muito análoga à teriaga, pela cor e pelo cheiro: era, talvez, resina de Borgonha misturada com ópio. Seja o que for, o específico fazia maravilhas e a gente ficaria mal vista, entre as pessoas do campo se pusesse em dúvida os milagres da boa irmã.
Conhecemos, perto de Paris, um velho jardineiro, taumaturgo, que fazia também curas maravilhosas e que punha nas suas garrafinhas o suco de todas as ervas de São João. Este jardineiro tinha um irmão, de espírito forte, que zombava do feiticeiro. O pobre jardineiro, abalado pelos sarcasmos deste incrédulo, começou, então, a duvidar de si mesmo: os milagres cessaram; os doentes perderam a sua confiança e o taumaturgo caído, desesperado, morreu louco.
O abade Thiers, cura de Vibraie, no seu curioso Tratado das Superstições , refere que uma mulher, atingida por uma oftalmia de aparência desesperada, tendo sido repentina e misteriosamente curada, veio confessar- se a um padre por ter recorrido à magia. Ela importunara, por muito tempo, um clérigo que supunha ser mago, para que lhe desse um caráter para trazer consigo, e o clérigo lhe entregara um pergaminho enrolado, recomendando – lhe que se lavasse três vezes por dia com água fresca. O padre pediu o pergaminho e nele achou estas palavras: Eruat diabolus oculos tuos e repleat stercoribus loca vacantia . Traduziu estas palavras à ingênua mulher, que ficou estupefata; mas não era menos verdade que estava curada.
A insuflação é uma das mais importantes práticas da medicina oculta, porque é um sinal perfeito da transmissão da vida. Inspirar, com efeito, quer dizer soprar em alguém ou em alguma coisa, e sabemos, pelo dogma único de Hermes, que a virtude das coisas criou as palavras e que existe uma proporção exata entre as idéias e as palavras, que são formas primárias e realizações verbais das idéias.
Conforme o sopro é quente ou frio, é atrativo ou repulsivo. O sopro quente corresponde à eletricidade positiva e o sopro frio, à eletricidade negativa. Por isso, os animais elétricos e nervosos temem o sopro frio, como se pode fazer a experiência soprando num gato, cujas familiaridades são inoportunas. Olhando fixamente um leão ou um tigre e soprando sobre a sua face, a pessoa os assustaria a ponto de forçá – los a se retirarem e recuarem diante de nós.
A insuflação quente e prolongada restabelece a circulação do sangue, cura as dores reumáticas e gotosas, restabelece o equilíbrio nos humores e dissipa a fraqueza. Da parte de uma pessoa simpática e boa, é um calmante geral. A insuflação fria apazigua as dores que têm por princípio as congestões e acumulações fluídicas. É preciso, pois, alternar estes dois sopros, observando a polaridade do organismo humano e agindo de um modo oposto sobre os pólos, que devem ser submetidos, um depois do outro, a um magnetismo contrário. Assim, para curar levemente o olho são, depois praticar no olho inflamado insuflações frias, a distância e em proporções exatas com os sopros quentes. Os próprios passes magnéticos agem como o sopro, e são um sopro real por transpiração e irradiação do ar interior, todo fosforescente de luz vital; os passes lentos são um sopro quente que reúne e exalta as energias; os passes rápidos são um sopro frio que dispersa as forças e neutraliza as tendências à congestão. O sopro quente deve fazer- se transversalmente ou de baixo para cima; o sopro frio tem mais força se for dirigido de cima para baixo.
Não respiramos somente pelas narinas e pela boca: a porosidade geral do nosso corpo é um verdadeiro aparelho respiratório, insuficiente, sem dúvida, mas muito útil à vida e à saúde. As extremidades dos dedos, nas quais todos os nervos terminam, fazem irradiar a luz astral ou a aspiram conforme a nossa vontade. Os passes magnéticos sem contato são um simples e ligeiro sopro: o contato acrescenta ao sopro a impressão simpática equilibrante. O contato é bom e até necessário para prevenir as alucinações no começo do sonambulismo. É uma comunhão de realidade física que adverte o cérebro e chama a imaginação que se desvia; mas não deve ser muito prolongado quando se quer magnetizar só. Se o contato absoluto e prolongado é útil em certos casos, a ação que deveis exercer então sobre o paciente se referiria antes à incubação ou à massagem do que ao magnetismo propriamente dito.
Apresentamos exemplos de incubações tirados do livro mais respeitado entre os cristãos; estes exemplos se referem todos à cura das letargias reputadas incuráveis, pois que concordamos em chamar assim as ressurreições. Quanto à massagem, ainda está em grande uso entre os orientais, que a praticam nos banhos públicos e se sentem muito bem com isso. É um sistema de fricções, trações e pressões, exercidas longa e lentamente sobre todos os membros e músculos, e cujo resultado é um equilíbrio novo das forças, um sentimento completo de repouso e bem – estar, com um renovamento muito sensível de agilidade e vigor.
Todo o poder do médico ocultista está na consciência da sua vontade, e toda sua arte consiste em produzir a fé no seu doente. Se podeis crer, dizia o Mestre, tudo é possível àquele que crê. É preciso dominar o seu paciente pela fisionomia, pelo tom, pelo gesto; inspirar- lhe a confiança por alguns modos paternais, fazê- los rir por algum bom e alegre discurso. Rabelais, que era mais mago do que parecia, tinha tomado por panacéia especial o pantagruelismo. Fazia seus doentes rirem – se, e todos os remédios que depois tomavam tinham mais sucesso; estabelecia, entre si e eles, uma simpatia magnética por meio da qual lhes comunicava a sua confiança e o seu bom humor; lisonjeava – os nos seus prefácios e lhes dedicava suas obras. Por isso, estamos convencidos que Gargantua e Pantagruel curaram mais humores negros, mais disposições à loucura, mais manias atrabiliárias, nesta época de ódios religiosos e guerras civis, do que a Faculdade de Medicina inteira teria podido constatar e estudar então.
A medicina oculta é essencialmente simpática. É preciso que uma afeição recíproca ou ao menos uma boa vontade real se estabeleça entre o médico e o doente. Os xaropes e julepos não têm virtude alguma por si mesmos; são aquilo que a opinião comum do agente e do paciente julga deles; por isso a medicina homeopática os suprime sem graves inconvenientes. O óleo e o vinho combinados, quer com sal, quer com a cânfora, poderiam bastar para a cura de todas as chagas e para todas as fricções ou aplicações calmantes. O óleo e o vinho são os medicamentos por excelência da tradição evangélica. É o bálsamo do Samaritano, e no Apocalipse , o profeta, descrevendo grandes flagelos, pede às potências vingadoras que poupem o óleo e o vinho, isto é, que deixem um remédio para tantas feridas. O que se chama, entre nós, a extrema -unção, era, entre os primeiros cristãos e na intenção do apóstolo São Tiago, que consignou o preceito na sua Epístola aos fiéis do mundo inteiro, a prática pura e simples da medicina do Mestre. “Se alguém dentre vós estiver doente – escreve ele – faça vir os anciãos da Igreja, que orarão sobre ele e lhe farão unções de óleo, invocando o nome do Mestre ”. Esta terapêutica divina perdeu- se progressivamente e tornou- se o hábito de considerar a extrema -unção como uma formalidade religiosa necessária antes de morrer. Contudo, a virtude taumaturga do óleo santo não poderia ser posta completamente em esquecimento pelo dogma tradicional, e dele se faz referência na passagem do catecismo que se refere à extrema- unção.
O que principalmente curava entre os primeiros cristãos era a fé e a caridade. A maior parte das doenças têm a sua fonte em desordens morais: é preciso começar por curar a alma, e o corpo será, depois, facilmente curado.
Eliphas Levi – Dogma e Ritual da Alta Magia
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