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Tratado das Doenças Invisíveis

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Paracelso

Com tudo o que dissemos, termino os quatro livros que tratam da luz da natureza, nos quais expliquei as infecções e doenças da parte visível do corpo do microcosmo, com todo o cuidado e experiência possíveis e com uma demonstração suficiente das respectivas doutrinas filosóficas e experimentais.

No entanto, ainda que tudo o que acontece ao corpo visível no microcosmo tenha sido tratado prolixamente em alguns desses livros e cada assunto enunciado e provado nos capítulos correspondentes à luz da natureza, sem omitir detalhe nenhum, o certo é que ainda não falamos de todas as doenças da parte visível do microcosmo que podem molestar o corpo nem das múltiplas formas pelas quais podem aparecer.

O que até agora foi descrito aparece visivelmente aos olhos e pode ser apalpado com as mãos com base na filosofia, sem nenhum vício de origem, com todo o poder que temos, como qualquer um pode comprovar pela própria experiência e sem erro. Nesse ponto reconhecemos que os humanistas elaboraram sua teoria dentro de erros grosseiros, por mais que a suprema beatitude perdoe e esqueça a imperfeição de suas argumentações.

Nestes livros tratamos apenas das doenças que perturbam a metade visível do corpo humano. Por isso vamos agora comentar tudo o que se refere à outra parte, quer dizer, à metade invisível, para que o médico possa encontrar uma opinião completa e possa se referir à totalidade do homem. A metade da qual estamos falando é invisível mas não deixa de ser palpável, o que pode ser compreendido à luz da natureza, de modo semelhante como acontece com os cegos, que apalpam sem ver o que apalpam. Nós vemos e apalpamos mas não sentimos o que tocamos (non sentimus). E contrariamente aos cegos, cujo tato adquire tamanha sensibilidade, nós ficamos surpreendidos que nossos olhos não vejam nem possam perceber o que apalpamos com as mãos.

Consideram esse exemplo com atenção pois afirmo que os cegos serão de grande utilidade para nós, uma vez que a simples presença deles demonstrará, a cada momento, que, por mais que vejamos fisicamente, na verdade estamos cegos para a luz da natureza. Tudo isso merece assim o mais detido exame.

Como poderíamos conhecer todas as coisas que existem sobre a face da terra se não estamos iluminados pela luz da natureza? Sob essa luz vou agora expor o que existe de invisível nas coisas; o que é tão admirável como tudo o visível. Na verdade a luz da natureza torna visível muitas coisas que não o são na realidade. Nada do que está diretamente diante de nossa visão pede ulterior demonstração.

A percepção do macrocosmo nos levará à filosofia do Grande Mundo, no qual tudo é visível, podendo-se afirmar que, tudo o que tenha essa base será visível.

O que vamos expor em seguida nos livros que foram inspirados nos argumentos anteriores é invisível; a propósito disso direi que nem sempre é conveniente tornar visíveis as coisas que naturalmente já o são.

A grosseria e mesquinhez dos discípulos dos mestres antigos são responsáveis pela torpeza com que se comportaram até hoje diante das coisas visíveis.

Para que compreendam melhor o que exporei a seguir, direi que o mundo que vemos e apalpamos é somente a metade do mundo verdadeiro. A outra metade, que não percebemos, é tão considerável e tão rica em sua natureza e propriedades como a parte visível. Isso significa que o homem possui uma parte, até agora não considerada, correspondente ao campo de ação e de influência do mundo invisível.

Segundo esse princípio cada corpo está formado por dois homens e por dois mundos e dois meios mundos que se complementam. Por isso as criaturas da natureza são tão admiráveis, e do mesmo modo aquelas que Deus criou invisíveis somente podem ser estudadas sob a Sua luz suprema. O mesmo pode ser dito das coisas visíveis.

A propósito de tudo isso devo dizer que Deus constrói sempre suas obras maravilhosas à luz da natureza. Ao considerar nossos olhos com tanta certeza tudo o que aparece sob a nossa visão, e ao vermos que tudo é profundamente admirável, ficamos inquietos e curiosos por descobrir tudo o que escapa à percepção.

No entanto por aí estão diante de nós, com toda a evidência, como uma coluna diante de um cego. Essa percepção pelos olhos à luz da natureza aumenta a nossa compreensão e indica com clareza as coisas invisíveis que a nossa arte vai tornar visíveis.

Agora vamos explicar com um exemplo o modo como devemos abrir os olhos.

A luz da natureza brilha muito mais que a luz do Sol, e segundo a comparação que fizemos entre a luz do Sol e a da Lua, do mesmo modo a luz da

natureza brilha muito mais além da capacidade dos nossos olhos e da possibilidade do nosso olhar. Sob essa luz as coisas invisíveis tornam-se visíveis. Lembrem-se pois da suprema qualidade de seu resplendor.

É necessário acreditar na realidade das obras e todos devem também crer pois as coisas sempre dão testemunho da sua procedência e quem tenha pouca fé nunca poderá ver istò. Quando algumas obras são visíveis mas a sua origem nos parece invisível devemos pensar que isso acontece porque estamos fora do campo de sua luz.

Assim, quando ouvimos no escuro o badalar de um sino, nessa circunstância invisível conhecemos entretanto a obra do sino, que é o som. Somente se quisermos ver também o sino, origem do som, devemos nos munir de luz suficiente para projetá-la na direção do som e somente assim teremos condição de ver o sino.

A Lua é uma dessas luzes, mas no entanto é uma luz escura. O Sol ilumina de modo mais fundamental. Por isso é conveniente que não nos conformemos com a luz que irradia das mesmas obras fazendo-as visíveis, mas que tenhamos uma luz maior e mais poderosa que esteja por cima da própria luz das obras.

Todas as coisas possuem uma luz e cada luz ilumina a coisa de onde vem, a qual permanece invisível na presença de uma luz estranha. Aquele que é retido por suas obras além do que ele possa permanecer nelas e portanto não queira deixar-se conduzir pelo seu signo, nunca poderá acreditar em tais obras.

Se acreditamos na obra também acreditaremos em seu autor. Se não nos dirigirmos ao Criador depois de conhecidas as suas obras é porque temos a fé morta e uma natureza infantil.

Está certo que gostemos dos edifícios, mas é lógico que gostemos mais ainda do arquiteto porque os primeiros não podem nos ensinar nada, mas o mestre é que tem toda a ciência.

Vejam ainda outro exemplo.

Cristo era uma luz. E, enquanto foi homem, andando pelo mundo, sua luz era invisível e só se manifestava em suas obras. Por isso os que o reconheceram em suas obras encontraram verdadeiramente a sua luz e seguiram por um caminho tão iluminado que nem todas as estrelas do firmamento poderiam fazer igual.

Ainda que vejamos as coisas sob a mesma luz do sol, esta luz será insuficiente para nos dar o conhecimento do Mestre. Por isso aqueles que quiseram conhecê-Lo e vê-Lo diretamente tal como era tiveram que se submeter à luz que brilhava sobre Ele, e sob a qual se dirigiu aos apóstolos dizendo: “levantaremos três tendas aqui3.

Cada coisa tem então a sua luz correspondente e as que aparentemente não têm é porque devem ser contempladas na luz suprema, pois em verdade lhes digo que quem não quiser ver com ela os corpos invisíveis ficará diante deles como se estivesse em frente a uma grande montanha numa noite de tormentas.

A luz da natureza nos guiará e com ela veremos muito mais do que com a Lua ou mesmo o Sol.

Assim deixamos estabelecido que normalmente só vemos o homem e as criaturas pela metade. E dizemos que assim como São Simeão, o Estilista, não pôde conhecer com a sua própria luz as obras que se produzem pelos mistérios da crucificação, ainda que conhecesse perfeitamente o firmamento astronômico, também não quis afogar-se nesta ignorância, e daí a sua ânsia para ver com toda amplitude o Criador da obra do mundo e encontrar uma luz diferente.

Da mesma maneira devemos procurar nos afogarmos diante das obras, pois somente aquele que procura e chama encontra e é ouvido,

O que acabamos de expor sobre as obras deve ser entendido da seguinte maneira: quando nos encontramos diante de doenças cuja origem não nos seja possível conhecer por meio do corpo visível devemos acender a luz que nos permita falar. Caso contrário as obras que essas doenças representam nos mandarão calar, por mais que isto nos pareça um tanto incompreensível. Se nos guiarmos por esta luz poderemos reconhecer que a outra metade invisível do homem existe realmente e que seu corpo não é somente carne e sangue, mas uma coisa muito brilhante para os nossos olhos grosseiros. Nessa parte estão as doenças invisíveis de todas as doenças.

Estas causas, assim como o corpo sobre o qual operam e as doenças que produzem, serão o objeto imediato do nosso estudo. E digo que com o seu conhecimento conseguirão tornar-se médicos perfeitos.

Já que tratamos das enfermidades visíveis corporais, agora é a vez das invisíveis, ainda que elas também sejam de um certo modo visíveis. Esta obra leva-nos para esse fim, porque tem as marcas do seu Mestre e o modo como Ele as fez.

A maneira como poderemos reconhecer tudo isto será explicada separadamente em cada livro e capítulo, pois definitivamente nada do que é tem uma outra finalidade do que obrigar-nos a buscar e a apreender suas causas, porque todas as obras nos levam a Deus. Mais ainda neste caso, em que as obras referem-se especialmente a nós, impondo-nos o dever de investigá-las. Com isso Deus nos faz compreender através de sua divina Providência que em seus tesouros escondidos encontram-se muitas coisas maravilhosas. E o conhecimento delas nos mostrará gradualmente a sua profunda e infinita sabedoria, saciando assim nossos pobres olhos e pondo a descoberto a grandeza (magnalia) de suas ações sobre todas as coisas.

É conveniente e razoável que abramos bem os olhos e coloquemos toda a nossa disposição no estudo dessas coisas, pois em verdade afirmo que não fomos criados para dormir mas para velar e ficar atentos e disponíveis durante todo o tempo para cumprir suas obras.

Para o sentido corporal do homem que ilumina o seu caminho somente com a luz visível da natureza torna-se injurioso e indigno que ele o exponha aos ataques e seduções do diabo, as quais o estimulam de tal forma que o sentido corporal acaba tornando-se incapaz para qualquer governo ou domínio, fazendo com que o homem se transforme num verdadeiro diabo.

Não é uma obra extraordinária de Deus o fato do homem possuir dentro de si um diabo, quando justamente foi criado à Sua imagem e semelhança? Digo que o diabo está tão longe da natureza humana assim como a pedra ou a madeira.

Mais incrível ainda é que o homem, depois de ter sido salvo do diabo pelo Filho de Deus, tenha sido lançado sem proteção alguma numa prisão tão horrível. Precisaríamos de mais de um capítulo para explicarmos isto devidamente, pois se ele não é mais que uma obra do Criador, devemos acreditar que existe nele uma causa muito maior e mais importante do que aquela que possamos imaginar.

O certo é que Deus quer que conheçamos esta causa e que não abandonemos a sua obra sem ter estudado e investigado a fundo a sua razão de ser.

Já que sabemos como a lã dos carneiros é útil, assim como os pelos que existem nos lombos de outros animais, atribuindo com exatidão aquilo que corresponde a cada coisa, como damos sabor aos alimentos crus por meio do cozinhamento, e construímos lareiras para lutar contra o frio do inverno, tetos para nos proteger contra a chuva, e tudo mais que tem finalidade de dar maior prazer ao corpo, por que então não procurar com mais afinco aquilo que possa ser mais útil e vantajoso para a nossa vida eterna?

O certo é que todo aquele que fere o corpo fere a casa de Deus e se o diabo habita nessa casa, a destruirá. Por isso convém sempre buscar a causa pela qual cada obra foi realizada, e se a sua razão visível não nos convence, devemos buscar a sua razão invisível. O invisível pode assim tomar-se visível como se tivesse essa propriedade, e ficar presente com a sua própria luz de modo que possamos achá-lo sob o seu resplendor.

Essas doenças estão escondidas nas grandes iniciais4 e podem subsistir em nós como doenças espirituais. Acontece como o homem que se difunde e propaga em suas obras e através delas tanto na teoria como na prática. No caso das doenças o espírito é visível à sua luz já que constitui a metade do homem.

Pretendo com isso advertir o leitor para que adote a inteligência do visível e assim possa compreender as enfermidades que vamos expor em seguida. E dizer que se todas as obras são visíveis é preciso que suas causas também o sejam. Não se perturbe ao ver que algumas dessas coisas não estão expostas à luz e lembre-se de que Deus às vezes age em segredo muito além do Sol.

Se ficar surpreso ao perceber que essas coisas existem considere que no fundo é um erro chamá-las de invisíveis, pois na verdade não o são e cada uma delas nos mostra que todas vêm umas das outras.

Uma casa, por exemplo, é uma obra visível, assim como o arquiteto. Neste paradigma a casa é a obra do arquiteto e o arquiteto a obra de Deus. As obras que temos diante dos nossos olhos podem ser vistas e examinadas. E digo que, do mesmo modo, se procurássemos sempre o artesão que as fez, ele seria visível.

Assim a fé torna visíveis (conspícua) todas as coisas eternas. E a percepção das coisas corporais invisíveis consegue-se por meio de luz da natureza.

Não se espante pelo fato de que uma coisa qualquer possa fazer-se visível e pense simplesmente que ainda não estava ordenado que se manifestasse assim.

Acostume-se primeiro a examinar as obras visíveis antes mesmo que elas tomem esse estado.

Uma criança, desde o momento de sua concepção já é um homem apesar de estar ainda invisível nele. Que prejuízo existe em considerá-lo assim? Certamente nenhum, e ao contrário é uma vantagem.

Com isto, leitor, termino este prefácio pedindo que não me julgue até ter conhecido este tema profundamente.

São muitas as obras ilustres que convidam e obrigam a nos aprofundarmos em seus estudos; não só a nossa mas as de muitos outros autores que descobriram e ensinaram diversas coisas a este respeito. Se eles não chegaram à verdadeira luz, não estranharei que estas contemplações sejam julgadas por muitos como obra de sortilégio, prestidigitação, malefício diabólico e superstição agourenta, que na verdade são coisas falsas. E que Deus esteja conosco.

SUMÁRIO

Para que entendam o que vamos dizer é preciso que saibam que a filosofia é dupla. Na primeira tratamos das doenças corporais. Na segunda, que agora começa, trataremos das incorpóreas explicando as razões de sua invisibilidade e dividindo-as em quatro livros.

No primeiro examinaremos as doenças que padecemos pela fé, assim como tudo que com ela se relacione. No segundo veremos as impressões do céu oculto e as maneiras como atuam em nós. O terceiro será dedicado às doenças da imaginação e ao modo como acontecem sem a interferência de nenhuma matéria. O quarto será sobre os segredos das forças naturais que operam pelas propriedades dos seus corpos, fora de toda a razão visível.

Todas essas coisas, obras da natureza, foram estudadas com toda a atenção. Este tratado da cura {de sanaíione) seria imperfeito mesmo assim. Por isso ajuntamos um quinto livro aos quatro que o compõem, com o qual espero que todos recebam a maior satisfação.

CAPÍTULO I

(O que o homem adquire pela fé)

Estas coisas devem estar baseadas nos ensinamentos de Cristo. A razão humana não pode explicá-las e isto é devido ao fato de que todas nos vêm de Adão. A razão deve compreender a doutrina de Cristo por uma fé muito firme, porque o homem não pode dominar por si mesmo as forças da fé, as quais se constituem numa luz muito viva cujo resplendor aparece com muita nitidez na base dos fatos. Essas bases, ou elementos que Deus nos deu para conhecermos corretamente a medicina corporal, existem também nas ervas, nas pedras, no curso do céu etc., o que é verdadeiramente maravilhoso. Devemos neste sentido fazer nossas experiências na Eufrásia1 e nas outras plantas análogas. Assim as obras poderão ser consideradas como causas e motivos, com o que estabeleceremos uma compreensão verdadeira.

As coisas não estão nos objetos para experimentar somente o que concerne ao corpo visível, porque este é apenas uma parte do corpo total do homem. Ao contrário, cada coisa pode e deve ser buscada nas palavras das sagradas escrituras, com que fica confirmado o empenho e o motivo que nos levou a escrever sobre a fé.

O Evangelho dá uma curta exposição (synopsis) da força (virtus) e da potência (potentia) da fé, com esta frase: “se a vossa fé fosse somente como um grão de trigo e dissésseis com a força dessa fé: montanha, lança-te ao mar! A montanha desapareceria nas água”2. Isto quer dizer que a força que possuímos pela carne e o sangue é uma força mínima, sendo muito maior e mais importante aquela que a fé nos proporciona. Da mesma forma como podemos lançar ao mar um grão de trigo sem ao menos perceber o seu peso, também podemos fazer o mesmo com uma montanha inteira apenas com a força da fé.

Isto nos leva a compreender que as ações maravilhosas que a fé nos proporciona nunca podem ser conseguidas pelo espírito do corpo visível. Recordem, por exemplo, que a robustez de Sansão não tinha nada em particular e que sua força apenas era o resultado de sua fé. Assim também Josué e outros personagens bíblicos nos ensinam que a força do nosso corpo terrestre é sempre exígua ao lado da que a fé pode nos dar. Compreendem claramente que qualquer espírito é capaz de lançar o Olimpo no mar Vermelho, despejar o oceano sobre o Etna e outras coisas do gênero se isto está realmente na vontade de Deus. Esses espíritos não precisam do corpo, da carne nem do sangue para ter tal força que apenas é o resultado exclusivo da fé.

Nesta breve citação do Evangelho parece que Cristo quis dizer assim: “o que sois, e que força é a vossa, oh! homens?” Em verdade digo que a nossa força está na fé e que bastaria o volume da fé de um grão de trigo para sermos tão fortes como os espíritos. E ainda que fôssemos simples mortais nossa potência e força seriam tão grandes como as de Sansão.

Pela fé adquirimos qualidades espirituais. E, assim, tudo o que realizamos além da natureza terrestre deve-se à fé, que atua no espírito através de nós. Na verdade nada valemos fora do espírito. Eis aqui o verdadeiro sentido das palavras de Cristo.

Pensem nestes exemplos e imaginem o que poderiam fazer se tivessem fé, não do tamanho de um grão de trigo, mas grande como um melão, ou mais ainda!

Tudo isto prova o enorme poder que o homem pode possuir e conservar sobre a terra graças à fé. Ela o permite ir além dos espíritos e ainda subjugá-los,

pois todos os espíritos nessas condições imobilizam-se diante do homem. Mais ainda, digo que os espíritos sempre perdem todos os combates contra a fé, que obriga-os a ficarem tranquilos deixando o nosso corpo em paz. E para isso basta apenas uma pequena quantidade de fé.

Se compararem isto a um grande pão caseiro, asseguro que bastará uma fé do tamanho da mais insignificante das migalhas. Seria o bastante para vencerem os espíritos que quisessem assaltá-los. Imaginem o que poderia fazer se a fé fosse do tamanho de um pão inteiro.

Essa fé chegou até os nossos dias desde a mais remota antiguidade, graças a Moisés, Abraão e outros semelhantes que souberam conservá-la e sustentá-la com todas as suas forças, mostrando-se assim como homens extraordinários (mirábilis) que estavam acima da natureza humana.

Aqueles que não tiveram essa fé, e confiaram apenas na sabedoria, no poder, e na força errada, foram implacavelmente vencidos pelos espíritos, diminuindo o homem (eoque ignominiae redacti) até o ponto de fazê-lo encurvar-se como diante de um monarca poderoso, o qual adoraram como se fosse Deus.

Esta não é uma força adquirida sem necessidade de armas ou alimentos? Que outra força sem ser esta dos espíritos poderia obrigar a carne e o sangue a ajoelharem-se diante dela? Certamente nenhuma. Saibam também que esta força existe nos diabos e igualmente pela fé. Disto deduzimos um fato da maior importância: o bom e o mau uso que podemos fazer da fé. O bom uso é a fé por si mesma. O mau uso é muito diferente e falaremos sobre ele em seguida.

Os diabos fizeram um mau uso da fé e por isso foram expulsos do céu. Apesar disto ela não lhes foi retirada, mas subordinada ao consentimento e à vontade de Deus (Deus providentia ipsis imperat). Por isso, e sempre que a fé não lhes tenha sido suspensa, também tem o poder de atirar as montanhas ao mar, causar doenças e fazer outros prodígios semelhantes.

O diabo atua sobre o homem assim como o Sol que ilumina igualmente o bom e o mau. De qualquer maneira, as forças do seu poder dependem da quantidade de sua fé. Compreendendo assim estas possibilidades da fé nos espíritos, não devemos estranhar que a mesma permita ao homem ferir uma outra pessoa invisivelmente usando-a para o bem ou para o mal, conforme a permissão de Deus.

As contusões que são feitas deste modo são de tal força que lembram aquelas produzidas por Sansão em seus inimigos com uma simples queixada de burro. Um combate assim só é possível com a autorização de Deus. E se isto não acontece ainda com muita frequência é porque Deus não quer repetir em demasia os seus prodígios sobre a terra.

Apesar da fé nos permitir exorcizar a expulsar positivamente os demônios, ou lançar montanhas ao mar, não devemos na realidade fazer tais coisas. Basta que creiamos. Se Sansão pôde fazer o que fez por meio da fé, sem dúvida foi porque era conveniente e necessário. Se hoje se repetisse uma situação e uma necessidade semelhantes, não apareceria apenas um, mas muitos Sansões no mundo.

Devemos acreditar no Evangelho, nas sagradas escrituras e saber que não é conveniente atuar como aquele que para curar um olho doente, arranca-o para que não moleste mais. Não nos é permitido realizar nada em que acreditamos, porque aquele que para ter a prova de sua fé precisa do milagre, afasta-se da fé e atrai a condenação sobre si.

Deus não disse que devemos atuar, mas crer, saber e conhecer a força que a fé nos dá. Os exemplos de todas essas coisas nos vêm tão frequentemente do Antigo Testamento e do Novo, segundo a distância que o tempo nos separa de uns e outros autores.

Nossa fé no Criador é de tal modo que, apesar de andarmos sobre a terra em nossa carne mortal, apenas podemos exprimi-la. Além disso, os que acreditam verdadeiramente não sentem nenhuma necessidade de testar a força de sua fé, e repelem qualquer prova desse tipo.

A fé age de duas maneiras: nos homens bons para as coisas boas, e nos homens maus para as coisas más. Sobre o primeiro nada temos a dizer. Sobre o outro, escutem isso: quando a fé se extravia para as coisas más acontece o que as sagradas escrituras chamam de “tentação”. Tentar a Deus é empregar nossa fé para coisas diferentes daquelas que nos foram permitidas. Sem dúvida, ao agir assim estamos querendo experimentar e nos convencer se isso é certo ou não. E isto é o que não devemos tentar3. Devemos crer e não tentar. Assim não ficaremos expostos aos efeitos das palavras e nos conservaremos puros na fé.

Em verdade é uma oração estranha esta na qual pedimos a Deus que não nos induza à tentação4, pois se o desejo de tentação correspondesse à vontade de Deus, não poderia deixar as almas expostas a ela, abandonadas de sua proteção. Por isso não tem precedentes nem acontece nunca em nossa vontade o poder-nos livrar do mal. Deus não deixa que os espíritos realizem o que querem, pois em tal caso não existiria nenhuma obra que durasse muito tempo no mesmo estado. E ainda que pudéssemos separar as montanhas e colinas do nosso caminho e andar em terreno plano, isto não se realizaria, pois Deus quer justamente que cada coisa fique em seu lugar. Fora isto, nos permite o mais livre arbítrio.

Acontece como o carpinteiro, que sabendo construir uma casa, pode fazê- la sobre um campo com a permissão do dono do campo, mas não em caso contrário. Tudo isto fica dito a título de exemplo sobre o mau emprego das forças da fé.

CAPITULO II

(Como a fé pode ser causa de doença)

Até agora falei sobre todas as coisas sem alcançar e nem chegar a tocar o motivo de minha prática, ou melhor, como a fé pode ser causa de doença, e o que se refere ao mau uso das coisas que a fé pode causar em nós.

Conforme for um médico, do bem ou do mal, poderá cooperar ou não com o seu poder e com as suas medicinas para curar ou matar seus pacientes. E do mesmo modo poderá administrar a erva cidreira, que lhes devolve a saúde, ou o arsênico, que lhes trará a morte. Como podemos explicar isto?

Simplesmente porque por meio da fé deixamos agir o nosso poder para o bem ou para o mal, um contra o outro, assim como o dono do terreno, consentindo ou não que o carpinteiro construa uma casa.

A fé atua em nós como um artesão que depois de ter feito uma faca pode ferir com ela o seu próximo ou não, conforme foi a intenção que teve ao fazê-la.

Convém meditar e compreender bem isto, especialmente quando se trata de fazer um mau emprego da fé, usando-a contra os princípios para os quais foi dada, dirigindo sua força por um caminho falso, acreditando que a verdade é mentira e vice-versa.

O emprego inconveniente das forças da nossa fé faz com que aceitemos essas situações indevidas e que usemos nossas armas no que acreditamos que existe, sem ser assim de modo nenhum.

Saibam   que   esta   mesma   coisa   que                            forjamos    (fabricatum)      a       que chamamos de arma na nossa linguagem corporal, também podemos chamá-la perfeitamente de espírito, já que os espíritos podem fazer o que o homem faz sem usar os pés ou as mãos, o que explica de certo modo sua mútua semelhança.

Como a fé precisa que todas as coisas possuam uma certa ordem, será bom que recebam uma instrução sumária, ao menos sobre a fabricação destas armas.

Quando em um determinado país aparece uma doença em forma de epidemia, significando a sua presença uma expiação, vingança ou flagelo, pensam que seguramente é assim mesmo. Nestes casos, apesar de tudo parecer natural e lógico, a fé nos faz julgá-lo não natural. O resultado disto é que as pessoas não querem concordar e relacionar estes sinais entre si, com o que tendem a desaproveitar todas as ajudas naturais contra o seu mal. Ainda que a fé nos permita fazer o bem, também consente que nos conduzamos mal. E assim como a montanha que precipita-se no mar, o gérmen da fé também pode desaparecer.

A fé pode produzir todas as espécies de ervas: a urtiga invisível, a celidônia invisível etc. E tudo quanto cresce sobre a terra pode guardar a força da fé. Assim, ela pode se tomar responsável por uma série de doenças.

O impedimento para que os humanos empreguem livremente a força e o poder da fé está precisamente na vontade de Deus.

É certo que podemos matar e provocar-nos mutuamente uma infinidade de males, mas não devemos fazê-lo. E se as coisas corporais não dão toda hora o testemunho do seu poder e dos males que podem nos trazer, o mesmo podemos esperar e pensar da fé, porque nisto somos como os espíritos. E como eles, podemos fazer invisivelmente tudo o que o corpo faz de maneira visível.

Não é possível, com efeito, repelir a fé de nós mesmos nem prescindir do instrumento que nos dá como uma verdadeira arma. Digo que a mesma força que lança a montanha ao mar pode fazer com que a terra nos ofenda ou nos envenene.

O mau uso da força da fé nos levará a desejar o mal aos nossos semelhantes e a condenar os homens à morte, ou a serem coxos e aleijados. As doenças naturais tomam-se assim sobrenaturais. Quando essas superstições invadem e tomam conta de um país, acontece que seus próprios médicos — como Cristo em sua terra — não podem compreender nem explicar um grande número dos seus sinais1, pois chegam a perder a fé, acreditando-se condenados à desgraça que tal estado consome.

Deus quer que nos mantenhamos na verdadeira fé, com a qual podemos curar e curar-nos. Levando esta fé dentro de nós acreditaremos que tudo pode ser possível através dela, ainda que nada se traduza exteriormente diante dos nossos olhos.

Por isso Deus quer que isto seja guardado em  segredo na fé, sem nenhuma espécie de demonstração exterior.

Os verdadeiros médicos são aqueles que trazem para nós as obras da caridade divina, não perturbando com suas obras a fé que guardamos no fundo do nosso ser e com a qual podemos caminhar sobre as águas.

A razão porque Deus permite que a força da nossa fé seja usada às vezes para fazer doentes, e que sobreviva a superstição, está fora do alcance do nosso entendimento; sobre isto Ele é o único juiz.

CAPITULO III

(Sobre o discernimento da fé)

A fé deve ser entendida no sentido de não considerar a de Cristo como salvadora, mas aquela que é inata em Deus Pai. Não trataremos aqui da fé à qual devemos a nossa Salvação, porque ela somente vai e volta na pessoa do Cristo. Tanto é assim que Cristo não disse que se acreditássemos nele as montanhas se precipitariam no mar, mas que nos salvaria se acreditássemos nele.

Em sua qualidade de Filho de Deus, Cristo não salvou ninguém da doença ou da morte. O que Ele faz é em função de ser a segunda pessoa da divindade. Essa é a sua verdadeira força.

Quando esteve entre nós limitou-se em nos livrar do demônio das pompas e vaidades da terra e do inferno. Por isso o povo ignorante que não queria crer nos testemunhos das escrituras precisou que Ele revelasse os sinais e as obras que somente o Filho de Deus podia fazer. Assim, ao ver e crer em suas obras, reconheceram Jesus.

Neste ponto convém observar a questão da saúde e da cura (sanatio). Quando Cristo devolve a saúde a alguém, seja por Ele mesmo ou através de outro em seu nome, a cura acontece não como um resultado da fé, mas pela virtude de Deus: suas preces e orações obtiveram a misericórdia do Pai, à qual é preciso atribuir — e não a outra coisa — o alívio das doenças e enfermidades.

Digo isto para que saibam que, apesar das rezas e pedidos à misericórdia divina, não se alcança a saúde e ao contrário se consegue logo através da fé de uma maneira maravilhosa (miro modi), e isto se deve às suas próprias crenças. Sobre este tipo de cura é que eu me propus falar, porque nunca devemos curar pela fé mas pela misericórdia divina. A fé não nos permitirá dar a vista a um cego de nascença nem devolver a vida a um morto. Isto só se consegue pela oração e pela misericórdia divina.

Quando usamos nossa fé somente para que uma montanha se precipite ao mar ou para que um determinado espírito entre em nós, agimos segundo o orgulho enquanto recusamos obter a misericórdia pela oração, considerando-nos como deuses e usando o poder da nossa fé para mutilar-nos ou fazer com que sejamos desgraçados.

Se Deus permite essas coisas é para que comprovemos o poder, a força e a virtude da nossa fé. Que podemos causar doenças com ela assim como curar. Isto, conforme o direito alemão, entende-se como uma vida desesperada no qual vivemos, obstinados em nosso erro, esquecendo-nos de Deus e de sua misericórdia.

Desde o começo do mundo todas as doenças apareceram sempre umas depois das outras, o que fez que o povo as considerasse estranhas e singulares, dando-lhes o significado de flagelo ou castigo divino. Invocando os homens mais respeitáveis e poderosos nestas horas de angústia, acreditando assim estarem sob sua proteção contra os diversos males e feridas, caíram na superstição sem perceber que esses males devem ser evitados e prevenidos por meios completamente diferentes. Com isso a fé foi mal empregada em diversas ocasiões, especialmente pelos egípcios, contribuindo para criar entre eles e em outros povos pagãos a pior das idolatrias. Este mau emprego da fé continuou até Esculápio e Macaon, que se aderiram tão firmemente aos princípios da medicina e ao curso natural das coisas, reconhecendo e considerando as doenças como fenômenos naturais, descrevendo-as e revelando-as nos livros de acordo com a natureza e não pela sua qualidade de pragas e castigos. Por este meio sem dúvida conseguiram atenuar a perversidade da má fé e o uso nocivo de suas inspirações, como convém ao conhecimento que o médico deve ter destas coisas.

Estas ideias, desapreciáveis apesar de tudo, cresceram e se difundiram igualmente entre os cristãos de tal maneira que, assim como os pagãos tiveram seus sacerdotes de Apoio (Sacerdotes apollineos), eles tiveram os seus, fazendo- se antonistas, wolfgangistas1 etc., atuando assim a fé, esquecendo todas as misericórdias e orações dirigidas a Deus, e ocupando-se somente das boas aparências e em arrojar montanhas ao mar.

Com respeito ao que acontece em nossos dias digo que a maioria passa a vida tirando uns aos outros a montanha dos pés, do ventre, ou outras partes, a ponto de não deixar um só membro nem uma só doença ao abrigo desta montanha. Estas doenças são pois sobrenaturais precisamente porque obrigam aquele que lançou a montanha ao mar com a força de sua fé, coloque-a com a mesma fé no seu lugar anterior. Assim é a verdadeira arte da medicina nestas doenças.

Quando a fé é mal usada aparece a superstição que nos obriga a atuar (negotium sumere) e a nos ocupar com a mesma montanha que tentamos expulsar. Assim confundimos a montanha com os santos transferindo para ela o poder correspondente àqueles, e tomando uma coisa pela outra.

E ainda que não possamos lançar os santos como a montanha, podemos no entanto arrojar a fé esculpida (sculpit), ou melhor, suas imagens. Essa fé pode dar o valor dos santos às suas réplicas plásticas, às suas esculturas e imagens, assim como nós mesmos que podemos desta maneira lançar os santos ao mar.

Daí nasceram as imagens dos santos entalhadas na madeira. Devo dizer que assim como o corpo movimenta e gesticula (ludi et gesticulatur) conforme sua fantasia, também a fé pode animar com um sopro idolátrico2 esse mesmo poder do espírito dos sonhos. Essa forma de fé nos é lançada do mesmo jeito como se tomássemos o cajado de São Dionísio, a roda de Santa Catarina ou o gancho de São Wolfgang e o atirássemos na cara de um aldeão. Pois se estes santos são capazes de produzir doenças sobrenaturais, o seus símbolos terão o mesmo poder, porque na linguagem da fé tanto vale o espírito como o corpo do espírito, que na realidade estão intimamente unidos, sendo tanto um como o outro bons e eficazes.

Quem pode duvidar que possamos colocar a força que Deus deu ao nosso corpo terrestre nesses ídolos de madeira, mediante a fé? Ninguém, porque tudo o que o corpo faz ao corpo, a fé pode fazer também.

As doenças e as curas adquiridas e conseguidas desta maneira somos nós que fazemos e não o diabo, o qual sem dúvida se delicia profundamente com isto.

Saibam que a fé pode produzir tudo o que o corpo produz, inclusive a morte, tão bem como um tiro de arcabuz. Que este exemplo lhes sirva de ensinamento e aprendam através dele que somos visíveis e corporais, mas além disto e ao mesmo tempo não o somos, e que tudo o que faz o nosso corpo visível, o invisível também faz.

Saibam também que as imagens tomaram sua força da sua forma específica (in specie). Por isso, quando modelarem uma estátua de cera com o nome do seu inimigo e a ferirem, estarão ferindo também a pessoa. Ao permitir que façamos essas coisas Deus quer mostrar tudo o que somos e o que podemos, mas não para que as realizemos a não ser se desejamos provar e tentar a Deus. Por isso digo: pobre daquele que se permite semelhante coisas!

Os feiticeiros e encantadores (incantadores) trabalham precisamente assim: fazendo moldes, gravando imagens nas paredes, golpeando-as e ferindo- as com varas e ganchos e ao mesmo tempo com seus espíritos, graças à fé removedora de montanhas que eles têm, mas da qual Deus se encontra totalmente ausente.

Daí também vieram esses amantes (amatores) que encantavam as mulheres com sortilégios variados, como o de modelar os retratos das amadas com cera enterrando-os em seguida sob a lama, satisfazendo e excitando assim seu espírito com a luz invisível.

Os egípcios, caldeus, e outros também talharam diversas figuras segundo o curso do firmamento, sem perceberem com os seus olhos ingênuos que todos esses movimentos e palavras das estátuas estavam além do poder das forças da natureza.

Todas estas maravilhas somente são possíveis com o consentimento de Deus. Contar a quantidade de encantamentos que esses magos conseguiram — ainda sem saber se os fizeram com o consentimento de Deus — se constituiria no mais surpreendente dos relatos e a crônica mais maravilhosa.

Na realidade Deus permitiu essas coisas para que as conhecêssemos e soubéssemos que nós também podíamos fazer as montanhas desaparecerem no mar e tornar invisíveis os nossos corpos e espíritos.

Falo assim para evidenciar a necessidade que temos de aprofundar pela fé a razão de ser dos santos, a virtude e o poder do qual estão investidos para dar aos homens a saúde e a doença, de acordo com os fundamentos que a doutrina observa a propósito das imagens. Tudo isso pode voltar-se contra o corpo se for feito um mau uso da fé.

Em resumo: a fé confere ao homem o poder de se tomar invisível como um espírito criando nele tudo o que o corpo imagina e que somente por suas forças é incapaz de realizar. A menos que a Providência divina disponha outra coisa, não é possível reunir as virtudes do espírito e a força do corpo. Se Deus quiser fazer alguém doente sem alterar sua força ou seu bem-estar, o prejudicaria em suas mãos ou em seus pés. Deste mesmo modo pode prejudicar a fé dos ímpios (improbi).

Diremos finalmente que esses sinais dos santos sempre foram usados, mesmo antes da vinda de Cristo, e por isso não podem ser honrados ou louvados cristãmente3, pois são tão velhos como verdadeiros avós, e a fé cristã não os tem.

Os homens cuja fé mereceu a confiança de Deus podem conseguir um grande poder, que se for mal empregado, enfiando os pés pela cabeça4 , terão que se julgarem por si mesmos e pôr os pés na fé, com o que não é de se estranhar que Deus se afaste definitivamente.

Não devemos nos surpreender se estão descontentes com essa adoração, esquecendo que Deus não recomendou São Pedro a ninguém. Também seguindo os costumes dos antigos egípcios e pagãos, fizeram derivar de Apoio o apóstolo Santiago, já que, tanto Apoio como seus semelhantes puderam chegai a isto pela fé. Por isso um menino não deve ser chamado de Apoio nem Santiago, pelo fato de receber o espírito. Na verdade somente os especuladores da fé, cujos nomes ninguém conhece real mente, puderam tentar trazer a montanha até nós e com isto nos tentar, da mesma forma como aqueles que tentaram a Cristo.

Quem quiser tentar e produzir os sinais da fé continuamente, esquece que somente devemos crer, sem pedir nem esperar que se produzam essas manifestações. Ao contrário, podemos e devemos pedir os sinais que a misericórdia divina nos oferece e que vem verdadeiramente de Cristo. Só devemos considerar cristão o que se deduz da misericórdia, do amor e da fidelidade, e que todo o resto, inclusive Santiago e Apoio, estão muito longe disto, tendo se equivocado assim tanto os cristãos como os pagãos.

Também eles se esqueceram grosseiramente que ninguém que não tenha feito mal uso da fé pode por isso ser censurado. Quer dizer, caíram em superstição, com a qual pretendem devolver a saúde (sanitas supersíitionis), quando sabemos que, na realidade, toda cura emana exclusivamente da divina Providência. A medicina constitui assim o melhor exemplo de que a cura é sempre uma obra de misericórdia.

Deus, que criou e deu aos nossos olhos e à nossa língua a volúpia e a aptidão para nos conduzirmos segundo o nosso arbítrio, conhece perfeitamente as feridas e doenças que por causa disso podemos adquirir, criando com a ciência infusa da divindade toda a medicina e todos os homens nela competentes, quer dizer, os médicos que são bons conhecedores das doenças e das medicinas necessárias para cada caso.

Ao homem, sendo o último ser da criação e existindo a misericórdia somente com ele e a partir dele, não será difícil compreender que é devido à misericórdia e não à fé todas essas coisas maravilhosas.

Observem aqui que do mesmo modo que a saúde vem da medicina, também vem da misericórdia, e de igual maneira tudo o que Deus criou colabora para a certeza da primazia da misericórdia sobre a fé. É certo que o Evangelho de Cristo afirma que “os sinais serão manifestados”, mas isso deve ser entendido no sentido de que o poder e a força provêm da fé e não da misericórdia, à qual corresponde levar para a fé segundo o caminho devido.

A propósito disso devemos fazer uma ressalva uma vez que toda espécie de sinais pode ser produzida, sempre que Deus o permita, sendo justamente seu ardor contra nós o que melhor estimula a misericórdia de Deus a nós prometida.

O desígnio do diabo não é outro que o de causar a nossa ruína e nossa danação e o de excitar a nossa maldade, levando-nos ao mau uso da fé para que façamos tudo aquilo que nos passe pela cabeça, sem nenhum freio.

Se apesar de tudo o diabo ainda acredita que não somos tão desgraçados assim, acrescentará coisas suplementares, contudo de nenhuma utilidade para ele nem que com isso ganhe mais algum poder para o seu reino. Seu desígnio é fazer-nos desesperar da misericórdia de Cristo, seu inimigo, e destruir toda a nossa esperança, nosso amor, nossa fé em Cristo, porque só assim poderemos ser

condenados. Fora disso todo o seu esforço será inútil, estéril e infantil.

Os espíritos diabólicos podem determinar impressões acessórias (ludicrum accesorium) através das santas invenções (apud commentitios divos) dos pagãos e cristãos. Algo assim como se um aldeão muito rude vendo o artesão trabalhar o ouro fino quisesse que o mesmo fosse realizado com excrementos. Por isso o diabo se conforma em deixar os seus sinais nos porcos e nas vacas, prova de que o seu poder está limitado e não pode usar da fé com liberdade, porque, se pudesse, há muito teria destruído com muito mais violência do que podemos imaginar.

CAPÍTULO IV

(Da doença chamada doença de São Valentim) (Epilepsia)1

Podemos agora saber que o curso natural dos astros e outros elementos atingem os homens e neles produzem uma doença que aniquila o desgraçado que a sofre, destroçando-o, agitando todos os seus membros, mãos e pés com convulsões terríveis e distorcendo a sua boca e olhos com os mais espantosos e variados sinais.

A origem da doença foi atribuída a diversos santos, aos quais irritamos de muitas maneiras. E eles, impossibilitados de vingar-se neste mundo, dada a pobreza e aridez da terra, o fizeram lá do céu desse modo terrível.

Isso chegou a ser artigo de fé, de uma fé semelhante àquela de transportar montanhas. Consequentemente, criou-se com esta crença uma espécie de duende2 que penetra em nosso corpo e que, agindo de um modo imprevisível, nos agita como se nos pegasse pelos cabelos e nos sacudisse, jogando-nos para um e outro lado.

Se a medicina alivia as nossas doenças que vêm das coisas naturais, por que a fé não pode operar se nada deu resultado e os médicos se encontram prostrados no mais completo desespero?

É curioso contudo observar (como alguma gente simples já o fez) de que modo influenciam, aumentam e irritam essas doenças as mudanças da Lua e dos planetas em geral, assim como as variações celestes, a ponto de criar determinadas seitas, algumas acreditando nas estrelas, outras nos santos.

Aos médicos compete nessas circunstâncias opinar sobre as contradições das seitas, ordená-las, explicar e revelar o verdadeiro fundamento das coisas.

CAPÍTULO V

(Sobre a doença que produz chagas, úlceras e apostemas chamada “penitência de São Quirino” e “vingança de São João”)1

(Tumores, varizes, furúnculos)

No homem a natureza corrosiva e muito poderosa de alguns sais dá lugar à rachadura e ruptura da carne e da pele. Como os sais são tão numerosos, compreende-se que possam atingir-nos dc muitos modos2 de acordo com as suas respectivas naturezas, produzindo diversos tipos de dor e de doenças.

O povo, antes que descobrissem o verdadeiro sentido da medicina, pensava que a doença de São Quirino era análoga às demais doenças, tendo essa superstição durado até o tempo dos cristãos, que acreditaram que São Quirino era mais santo do que os outros e tinha maior poder curativo, e assim designaram muitas doenças com o nome dele.

As úlceras e os reumatismos das pernas3 também foram chamadas “penitências de São Quirino”. Com isso fizeram numerosas imagens do santo para advogar, com a sua fé, a sua proteção.

Do mesmo modo levantaram monumentos e imagens dedicadas a São João, também muito popular, ao qual atribuíram por estupidez a autoria de numerosas doenças.

De tudo o que acabo de narrar e por causa da adoração a que tudo isso levou, não vou dizer das minhas suspeitas de que o diabo tenha entrado em tudo isso e que seja o autor de tantos desses sinais. Na realidade, a fornicação, a avareza, e outros tantos vícios desagradáveis podem efetivamente levar o povo à perdição, empurrando-os a um fé maldosa e a numerosas fornicações e vilezas, estimuladas pelo demônio, que fica satisfeito com esses vícios degradantes, e assim opera a fé sem deixar o povo perceber a maldade de suas obras4 estimulando com isso todos esses procedimentos e sacerdócios.

Além disso o diabo não poderia suscitar sozinho esses sinais, nem os grandes nem os pequenos. O que sem dúvida pode fazer é introduzir-se ao lado de tudo isso e confundir os sintomas, quando eles são produzidos, para com isso tirar todo o nefando proveito possível.

CAPÍTULO VI

(Do fogo natural, chamado também de “Santo Antônio”)1 (Erisipela, gangrena, cólera)

A natureza produz também um fogo alimentado pelo enxofre do homem, do mesmo modo como o relâmpago e as estrelas cadentes fazem no céu, e os fogos fátuos das minas e cemitérios. Esta doença contudo não foi descrita pelos médicos segundo a sua verdadeira origem, ainda que a natureza a tenha indicado através dos resultados e das obras da medicina, já que se conhece perfeitamente a sua essência natural

Os pregadores desses males expiatórios contudo, de tanto forçar essas coisas em versos e refrões, e de tanto se referir a elas com seus estilos de oráculos, conseguiram, apesar da incredulidade do povo, que ele acreditasse, vencido por essa contumaz persuasão.

O Santo Antônio dessas histórias não é nenhum senhor do fogo, nem soprou em tempo algum nenhum forno ou chaminé; não é pois nenhum senhor dos elementos e, se hoje vivesse, reconheceria tudo o que venho falando e bateria a mão no peito em sinal de penitência.

Esse Santo Antônio não deve ser confundido com Vulcano e posso afirmar que nunca apagou o Etna2. Apesar de tudo isso todo o mundo acredita que ele é obrigado a apagar o fogo de todas as pernas podres e inchadas. Não há dúvida que enquanto viveu realizou algumas dessas curas, mas não em maior grau e número do que aquelas que podem ser consideradas justas. Nada disso pode, por outro lado, ser-nos hoje de utilidade, pois tudo isso já foi consumado, como pode ser lido no livro dós santos, o que o exclui da categoria de mero bruxo ou encantador.

No entanto a fé foi realizando a sua obra, forjando um Santo Antônio com estranho e intenso parentesco com Vulcano, que do mesmo modo que este, sopra, estimula o fogo como um ferreiro quando põe o ferro em brasas sobre o forno.

Se em vez disso observássemos atentamente e compreendêssemos o curso espontâneo dessas coisas, veríamos como todas essas doenças perdem a sua força natural.

CAPÍTULO VII

Sobre a doença chamada “Baile de São Vito”1)

(Atetoses, corea, Parkinson, histeria, neuroses de situação, sono e sonhos)

Com ligeiras variações, segundo seus comentaristas, esta doença apareceu da seguinte maneira:

Existiu numa certa época uma mulher chamada Trofea (Die Frau Troffea) de caráter tão especial, tal orgulho e obstinação contra o seu marido que quando este lhe ordenava qualquer coisa ou a importunava, fingia que estava doente por meio de uma série de simulações estudadas previamente. Nessas circunstâncias parecia estar tomada por uma força sobrenatural que a obrigava a dançar, sabendo que esta atitude era muito desagradável para o seu marido. Adotava uma série de gestos e atitudes como se tratasse realmente de uma doença, com saltos, gritos, contorções e cantorias, movendo suavemente as articulações (parum movebat ex artubus convellabatur) e dormindo em seguida. Assim conseguiu tudo o que quis do seu marido, fazendo-o pensar que estava mesmo doente.

Depois muitas outras mulheres aprenderam esta artimanha, instruindo-se mutuamente sobre os sintomas da suposta doença.

O povo entretanto a considerou como uma penitência e começou a pensar na causa que poderia destruí-la. No começo a fé foi dirigida para Magor, o espírito pagão, mas logo a atenção popular foi dirigida para São Vito, do qual fizeram um falso deus, dando o seu nome à doença. Pouco a pouco esta crença se difundiu e com ela a enfermidade na qual caíram todos aqueles que gostavam de dançar; assim se perpetuaram o baile e a doença.

Vejam como alguém pode facilmente se aventurar numa noção preconcebida e com isso criar uma verdade, cuja reiterada afirmação vai

aumentando o poder de sua crença e de sua eficácia, acabando por afirmá-la definitivamente. Deste modo são geradas muitas doenças e não somente esta dança. Quando alguém se persuade desta estranha possessão, cria a verdade em sua ideia preconcebida, da mesma forma como aqueles que se orgulham de estar afetados pela doença de São Valentim na qual caem logo em seguida.

O mal francês, cuja soberania foi atribuída a São Dionísio, tem esta mesma forma de origem, como a peste; pelo desespero e medo o povo pode chegar a ficar doente de uma maneira mais grave do que realmente aconteceria. Em tais circunstâncias a medicina não é capaz de socorrer razoavelmente, e mesmo a fé não pode fazer com que as forças humanas devorem esta grande montanha.

A fé ao contrário pode lhes dar tal poder que consigam envenenar o céu, transmitir a peste e fazer muitas outras coisas desse tipo, de uma maneira que somente a fé pode conseguir.

Acontece assim que uma grande parte das aflições e das desastrosas doenças que nos afligem surgem por nossa culpa, porque nos comportamos diante dela como um homem que estando armado com todas as armas se assustasse diante de um outro pequeno e aleijado trazendo nas mãos uma espingarda acesa7.

Nosso poder contra os astros é parecido com este exemplo. Só a dúvida (trepidatio) pode nos enfraquecer, permitindo que a mesma força da fé nos fira como um disparo pela culatra. Assim, mil laços e cadeias nos oprimem por este mecanismo, consumindo-nos em todos os tipos de lamentações.

Quando pretendemos resistir e negar a fé, esquecemos que Deus disse que ela pode nos fazer cair em tentação e que está escrito: apesar de tudo temos que ter a fé antes de alcançarmos a misericórdia. Não pode existir nada mais doloroso para nós do que este vale de lágrimas!

Semelhantes a estas operações da fé, existem muitas outras como o Baile de São Vito, que só pode tomar conta de cabeças obstinadas. A base de tudo isto está na inveja que se aninha nos corações de alguns médicos, fazendo com que aceitem apenas aquilo que lhes agrada e comentem os textos das sagradas escrituras conforme suas obstinações e caprichos.

Quando tais indivíduos chegam a incrustar estas ideias em seus cérebros ajuntando além disso a força da fé, acontece que esta mesma força os possui, fortalecendo-os tão poderosamente que não duvidam em entregar as próprias vidas para defenderem suas opiniões. Os anabatistas são um bom exemplo deste modo frenético e abusivo de acreditar, pelo qual chegam a se matar antes que abandonem seus preconceitos.

A mesma  base  sustenta  todas  as  seitas  deste  tipo  de  verdadeiro

encantamento. Não a causa da feitiçaria de outros homens, mas pela vontade de reforçar a sua fé até abrasar-se nela, sem se preocupar com a lógica, a razão ou a verdade.

Digo que para meter-se no fogo obedecendo à vontade divina falta um motivo mais importante do que ter recebido uma, duas ou três vezes a água do batismo. Garanto que Deus nunca ordenou nada parecido a ninguém para sustentar esta causa.

É natural que os que querem morrer pela palavra de Deus com toda a beatitude se inundem do Espírito Santo. Aqueles que não aceitam a fé sem as obras que ela pode se provar, são obrigados a forçar nela para não perdê-la. Como se dissessem assim: “se Deus não quer cumprir em nós o que prometeu, nós mesmos temos que cumpri-lo em seu nome”. Por isso não encontraram nada melhor do que morrer em homenagem a uma causa, cuja profissão de fé e espírito somente sugere saltar e dançar.

Os homens possuídos por esta dança perdem o entendimento de tal maneira que, como os anabatistas, deixam-se queimar antes de renegar sua fé. Para chegar a este martírio é preciso estar movido por algo muito diferente do que uma simples razão.

Darei um tremendo exemplo sobre isto: imaginem alguém que levando sobre os ombros uma enorme montanha fosse atraído com ela para o fundo do mar, atacado por uma súbita fraqueza que o fizesse cair e morrer. E que outro fundamento existe nas escrituras sobre a opinião preconcebida de que a fé nos provê?

Acrescentarei que todos esses sinais são os prodígios anunciados pelo Filho de Deus. Por isso, dá na mesma que ganhem o pão com o suor do rosto e que deem ou tomem do próximo, que cumpram as seis partes da misericórdia etc., pois a superstição os afastará num outro sentido. Entretanto, se querem morrer por tais coisas, quem deixaria de reconhecê-los como mártires?

O certo é que se quisessem imolar suas vidas pelas obras da misericórdia nenhuma chama os queimaria; ao contrário, escapariam muitas vezes da morte e não se queimariam com tanta alegria.

Os motivos pelos quais oferecem suas vidas mostram que tais obras e tal fé não são do agrado de Deus. Antes que seus escritos os levem para a fogueira, ou para o caldeirão de azeite fervente, devem pensar que os santos muitas vezes foram salvos da morte e dos suplícios, mesmo sem terem se defendido, sendo milagrosamente protegidos, escapando das prisões, justamente porque foram gratos diante dos olhos de Deus que preferiu empregá-los durante mais tempo.8

A vida dos apaixonados doentios não têm utilidade se for prolongada, e, por isso, quando a morte se aproxima, lançam-se em seus braços dançando. Os verdadeiros santos se aproximaram da morte tremendo e chegaram nela com o coração oprimido, apesar da carne nunca ter conseguido dominá-los. Só assim pode-se cumprir verdadeiramente os ensinamentos das obras de misericórdia, cuja base está no amor ao próximo.

O que podem pensar sobre uma obra apodrecida e roída de mentiras? De uns homens que não vestem os pobres, não consolam os doentes, nem abaixam os olhos, e que mesmo assim não enxergam o que têm pela frente? Essa fé sedutora pode ser considerada como uma doença e digo que se compararem suas vidas com as dos santos, verão que nunca puderam lançar uma montanha ao mar e nem tirá-la dali. Não é a mesma coisa morrer pela fé (coisa sempre venturosa) e pelas leis que os homens redigiram, que sempre contêm uma grande quantidade de superstições e cuja morte é de pureza muito menor.

Qual obra beneficente ou útil pode resultar desse fato de serem queimados na fogueira9 E que frutos de santidade podem nascer do batismo recebido duas vezes?

Também não é um fruto dc santidade fazer pouco caso do próximo, nem rezar pelos que os perseguem e marginalizam. Digo que se São Paulo tivesse conhecido essa conduta também os teria renegado. Por isso é preciso que rezem muito para ele se querem que interceda pela sua salvação.

Aqueles que os renegam não são precisamente os mesmos para os quais rezam. Quem tem que se meter com tais indivíduos deve considerar que a fé e as obras que os desgastam seriam melhores se fossem dirigidas para Deus, procurando conhecerem-se melhor antes de conhecer os outros. Esses sujeitos estão tão persuadidos da exclusividade de sua fé que são incapazes de desagarrarem-se dela, ficando aferrados às suas doenças, da mesma forma que os dançarinos de São Vito.

Se todos fossem como eles, nenhum faminto seria saciado, nenhum nu seria vestido, nem nenhum doente curado pois todas essas coisas precisam de um bem superior.

Em vez disso evitam o trabalho que lhes corresponde transferindo-o para o vizinho, vivem na preguiça como parasitas e ensinando isto aos outros. Quem só pensa em sua cozinha pode falar de fé? E quem ilude as leis bíblicas e evangélicas? Ou aquele que ignora a ordem superior das coisas? Quem nestas condições pode dizer que morrerá como cristão?

É como se dissessem a frase de São Lourenço:10 virem-me para assar-me dos dois lados! Em verdade, quanto mais cedo desaparecerem do mundo tanto melhor, o que mostra daramente por que Deus não intervém: nestas mortes não há nenhum proveito.

A fé pode inclusive provocar estranhas alucinações. E quem as sofre consegue ver os santos diretamente, assim como muitas outras maravilhas e prodígios.

A esta fé são devidas algumas surpreendentes interpretações de determinados sonhos. Porque, o que são os sonhos senão formas esvoaçantes da Fé? O que esses indivíduos creem, chega a se apresentar de tal maneira a eles, que acabam acreditando que eles mesmos são santos. Assim a fé pode fazer santos da mesma forma que os escultores podem fazer estátuas de madeira. A fé põe em suas mãos a varinha mágica da adivinhação, faz apagar as velas, girar as chaves, atrai as tesouras c faz rodar o cernidor.

Saibam que nessas demonstrações da arte o que hoje nos parece bom, é mau amanhã, e que para um “sim” há dez “não” (em ja, zehen neirt) e cada vez que aparece a verdade aparecem também dez mentiras: assim são os sonhos e as visões sem distinção: verdadeiros e cheios de engano.

A fé nos sonhos faz com que esses sonhadores se pareçam com os alquimistas, que pesquisam e pesquisam insistentemente logrando algumas vezes descobertas insólitas. Apesar disso, para cada um que realmente descobre alguma coisa, vinte fracassam e por cada vez que logram a verdade, todas as outras vezes enunciam falsidades.

Com a fé acontece do mesmo modo. Quando acreditam que nada sabem, na realidade nada sabem; e a fé o compreende perfeitamente, pois nada é tão parecido a nós mesmos como a nossa fé.

Apesar de tudo, por mais semelhança que tenhamos com os espíritos, não é necessário que todas as coisas se manifestem no corpo de forma sensível.

Afirmo que se cremos com leviandade, somente levianamente podemos estimar o que cremos. Devemos portanto crer efetivamente que podemos realizar todas essas coisas, mas não devemos desejar em demasia vê-las; do mesmo modo não devemos deixar-nos morrer ou matar pelo fato de termos sido batizado, pois a medicina que pode nos propiciar a saúde, pode também matar- nos.

Assim devemos comprender a fé e incluí-la deste modo em todas as nossas obras.

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