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Lemos no tratado De Enti Spirituali, de Paracelso, que o espírito (ens spirituale) é produzido (fabricat) pela vontade ou desejo, sendo “tão forte quanto o grau que a vontade tenha alcançado”. A ação do espírito pode ser exercida de forma consciente ou inconsciente, pois ele possui um certo grau de independência e livre arbítrio. O mundo dos corpos difere do dos espíritos no qual “existem os desejos, os ódios, as discórdias e toda uma série de sentimentos semelhantes que atuam e se manifestam sem o consentimento ou conhecimento do corpo”. O espírito de cada corpo parece substancial, visível, tangível e sensível para outros espíritos com os quais pode dialogar, utilizando “uma linguagem especial com a qual conversam livremente, sem nenhuma relação com os discursos humanos”. Mas o espírito gerado por nossas sensações e meditações quotidianas não deve ser confundido com a alma (anima), a razão (mens), nem com as “obras, efeitos ou conspirações” dos maus demônios (cacodoemones). Contudo, como ele não é gerado pela razão nem pela fé, mas pela vontade por intermédio do livre arbítrio, “todos os que vivem de acordo com a sua vontade vivem no espírito, assim como todos os que vivem de acordo com a razão o fazem contra o espírito”. Quando dois se buscam e se unem num amor ardente e aparentemente insólito, “seu afeto não nasce nem reside no corpo, mas provém dos espíritos de ambos os corpos, unidos por laços e afinidades superiores, ou então por tremendos ódios recíprocos que também podem mantê-los estranhamente unidos”. A luta acontece quando, por uma vontade fixa, firme e intensa, desejamos “um transtorno ou uma pena qualquer para um outro indivíduo” ou ainda “quando dois espíritos lutam e se ferem reciprocamente sem a vontade ou o conhecimento dos homens, estimulados por sua inimizade mútua ou pela influência de outras doenças”.
Se desejarmos com toda nossa vontade (plena voluntas) o mal de outra pessoa, esta vontade que está em nós acaba conseguindo uma verdadeira criação no espírito, impelindo-o a lutar contra o da pessoa que queremos ferir. Então, se este espírito é perverso — mesmo que o corpo correspondente não o seja — acaba deixando nele (no corpo) uma marca de pena ou sofrimento, de natureza espiritual em sua origem, ainda que seja corporal em algumas de suas manifestações. Quando os espíritos travam essas lutas, acaba vencendo aquele que pôs mais ardor e veemência no combate. Segundo esta teoria, devem compreender que em tais contendas se produzirão feridas e outras doenças não-corporais. Por conseguinte, toda uma série de padecimentos do corpo pode começar desta maneira, desenvolvendo-se em seguida conforme a substância espiritual.
Quando os corpos se ferem numa luta nada acontece aos espíritos, “mas quando os espíritos brigam entre si os corpos são afetados”. Por isso Paracelso define a entidade espiritual como uma potência perfeita que tem a finalidade de conservar seu próprio corpo e destruir o do inimigo ad corpus universum violandum. Quem possui conhecimento da matéria e domina a técnica pode causar lesões espirituais até produzir a morte da vítima ou transforma-la num escravo. Segundo Paracelso os adeptos da nigromancia são capazes de causar malefício utilizando bonecos.
Se minha vontade se encher de ódio contra alguém, precisará expressar este sentimento de alguma maneira. E isto será feito justamente através do corpo. Sem dúvida, se minha vontade for demasiadamente violenta ou ardente, pode acontecer que meu desejo chegue a perfurar e ferir o espírito da pessoa odiada. E também posso encerrá-lo à força (compeliam) numa imagem que eu consiga fazer dele, deformando-a e distorcendo-a a meu gosto, atingindo assim também a intenção de atormentar meu inimigo. — Quando alguém modela uma figura parecida com a do homem que se quer castigar, ou a desenha numa parede, golpeando-a com picadas ou pancadas, tudo isso acontece na realidade. A vontade do espírito transfere assim o sofrimento simbólico da figura para a pessoa real que ela representa. Por isso concluímos que os espíritos combatem entre si da mesma forma que os homens. — Quando modelamos uma imagem de cera, a enterramos e a cobrimos de pedras, projetando sobre ela a vontade do espírito contra a pessoa representada (pela tal imagem), essa pessoa será atacada pela ansiedade, principalmente, no local onde foram acumuladas as pedras. E só se livrará da angústia quando sua imagem for desenterrada. Da mesma forma, quando durante essas provas uma das pernas da imagem se quebra, a pessoa representada sofrerá a mesma lesão. Assim também acontecerá se quisermos provocar feridas, picadas, e outras coisas semelhantes. — Quando todo este trabalho da vontade estiver consumado pelo espírito influenciador sobre o sujeito onde mora o espírito influenciado, ou em sua figura ou imagem, o segundo terá se tornado prisioneiro do primeiro, sendo obrigado a executar o que lhe seja ordenado.
O ex-padre Eliphas Levi não ignorava a advertência de Paracelso contra a tese católica da influência demoníaca, mas compilou variantes dos “enfeitiçamentos pelas imagens de cera” onde os praticantes teriam a intenção primária de agradar o diabo:
Os necromantes da Idade Média, ansiosos de agradar por sacrilégios àquele que consideravam como seu senhor, misturavam esta cera com óleo batismal e cinzas de hóstias queimadas. Padres apóstatas sempre se encontravam para lhes dar os tesouros da Igreja. Formavam com a cera maldita uma imagem tão parecida quanto possível com aquele que queriam enfeitiçar; cobriam esta imagem com vestidos iguais ao dele, davam-lhe os sacramentos que ele tinha recebido, depois pronunciavam sobre a cabeça da imagem todas as maldições que exprimiam o ódio do feiticeiro e cada dia infligiam a esta figura maldita torturas imaginárias, para atingir e atormentar, por simpatia, aquele ou aquela que a figura representava. O enfeitiçamento é mais infalível se a pessoa puder obter cabelos, sangue e, principalmente, um dente da pessoa enfeitiçada. É o que deu lugar a este modo de falar proverbial: “Tendes um dente contra mim”. — Para o enfeitiçamento pela figura de cera, é preciso fazer uma figura mais perfeita, pôr da própria pessoa tudo o que puder dar, pôr-lhe ao pescoço os sete talismãs, colocá-la no meio de um grande pentáculo representando o pentagrama e esfregá-la levemente, todos os dias, com uma mistura de óleo e bálsamo, depois de ter pronunciado a conjuração dos quatro para desviar a influência dos espíritos elementares. No fim de sete dias, será preciso queimar a imagem no fogo consagrado, e podereis ter certeza de que a estatueta fabricada pelo enfeitiçado perderá, no mesmo instante, toda a sua virtude.
Apesar de desejar o auxílio do diabo ser algo totalmente diferente de efetivamente consegui-lo, o povo acostumado a peneirar utilidades em manuais de magia acatou as receitas sem dar ouvidos às inúmeras críticas do feiticeiro arrependido. É por isso que, para curar uma mulher que se contorce em convulsões, o Dr. Mago – personagem da HQ ‘Feitiço’, escrita e ilustrada por Rick Sarkey –, grita “Saiam malditos demônios”, e eles saem mesmo. Depois destrói um “centro de macumba” situado na residência de um mago-negro porque ele havia realizado o “trabalho” por encomenda de um homem rejeitado: “Ao recusar o amor de Robert Jones ela foi enfeitiçada pelo maldoso Kaluk! O boneco da moça foi feito e espetado por longos alfinetes! A morte era certa, mas o mago resolveu enfrentar o terrível mestre da magia-negra!”. É curioso notar que toda produção editorial é moldada ao gosto do patrocinador e essa revista anuncia os livros Umbanda: Religião e Magia, O Grande e Legítimo Livro Vermelho e Negro de São Cipriano, Cruz de Caravaca, O Livro das Bruxas e O Livro dos Sonhos e da Sorte, todos da editora Tróia.
O culposo lutador inconsciente ou doloso mago-negro que castiga seu boneco vodu não é um vampiro. Ele está causando malefícios sem valorar sua vitima como alimento. Mas chega uma hora que ele cai numa armadilha do destino. Como sempre existe a probabilidade de perder a luta “aquele que permanece impregnado de ódio” pode “atrair para si todo o mal desejado aos outros” e contrair doenças espirituais contra as quais os medicamentos mundanos de nada adiantam. O chavão da lei tríplice é uma interpretação do desfecho dessa trama. Quando alguém inicia uma partida de vale-tudo, por exemplo, há duas possibilidades: Ganhar ou perder. Como um resultado absolutamente perfeito – um nocaute no primeiro soco – é raríssimo, mesmo vencendo o lutador normalmente carrega ferimentos após a luta. Cicatrizes se acumulam a cada briga, enfraquecendo-o, até que a derrota do espírito agressor se torna inevitável. Neste caso é necessário fazer uso de remédios capazes de curar os males “que correspondem ao espírito”.Ao comentar a medicina simpática “que medicava membros de cera e operava sobre o sangue dado pelas chagas para curar as próprias chagas”, Eliphas Levi alega crer que “a homeopatia é uma reminiscência das teorias de Paracelso e uma volta às suas práticas sábias”. O próprio Paracelso exalta as virtudes do “nephesh habashar” ou “anima carnis” (Levítico 17:12-13) que não é o sangue e sim a bioenergia do sangue. Aplicando este medicamento seu espírito se tornará são e “o corpo será curado imediatamente”.
Shirlei Massapust
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